Financiamento DIP: conceito, disciplina e alguns exemplos práticos
8 de janeiro de 2024, 16h22
Um expediente contratual extremamente frequente no contexto da recuperação judicial é a captação de crédito por parte do devedor em recuperação, mediante a contratação de financiamento (i.e., um mútuo oneroso). Trata-se, em muitas ocasiões, de uma das principais formas de se suprir a falta de caixa na empresa a fim de financiar despesas operacionais e propiciar a sua reestruturação, inclusive com vistas ao regular cumprimento do plano de recuperação judicial (“PRJ” ou “Plano”).
Por força da influência da experiência estadunidense no tema, popularizou-se o uso da expressão “debtor-in-possession (DIP) financing”. Tal expressão, ao menos como aplicada na práxis nacional, corresponde ao financiamento contraído por um devedor em recuperação judicial.
A origem da expressão pode ser assim resumida: “debtor-in-possession (DIP)” é a denominação adotada para o empresário que apresenta um pedido de reestruturação (funcionalmente equivalente à nossa recuperação judicial)[1] com base no “Chapter 11″ [2]— denominação metonímica (e já célebre) referente ao Capítulo 11 do Título 11 do Código de Leis dos Estados Unidos da América (“U.S. Code”). O “debtor-in-possession (DIP)”, justamente pela sistemática da recuperação, segue na administração (ou seja, permanece na posse — “in possession”) dos bens, diferenciando-se, assim, do empresário falido.
Compreende-se, nesses termos, o porquê de o financiamento (“Financing”) obtido pelo empresário em recuperação judicial (“debtor-in-possession (DIP)”) [3] ser comumente referido por “DIP Financing” — ou, ainda, “Financiamento DIP” em peculiar mistura do vernáculo com a expressão em inglês. Por se tratar de expressão encontradiça na práxis, priorizaremos doravante a menção a “Financiamento DIP”.
Questões linguísticas à parte, é certo que a expressão “Financiamento DIP” pode ser utilizada para se fazer menção a uma miríade de modalidades de financiamento concedido ao devedor em recuperação judicial, sendo igualmente muito plurais as formas de previsão e aprovação dos Financiamentos DIP.
DIP Financing no contexto anterior à reforma promovida pela Lei nº 14.112/2020
A despeito da recorrência e da relevância prática do Financiamento DIP, a Lei nº 11.101/2005 (“Lei de Recuperação de Empresas e Falência” ou “LREF”), em sua redação original, não continha previsão expressa que disciplinasse pormenorizadamente o tema. O cenário normativo apenas viria a se alterar, em boa hora, com a reforma legislativa promovida pela Lei nº 14.112/2020.
Até então, a questão apenas era tratada, de forma genérica, por dispositivos esparsos. O caput do artigo 66 da LREF, em sua redação original, em princípio vedava a alienação ou oneração, pelo devedor em recuperação, de “bens ou direitos de seu ativo permanente, salvo evidente utilidade reconhecida pelo juiz, depois de ouvido o Comitê, com exceção daqueles previamente relacionados no plano de recuperação judicial”. Dessa forma, o devedor dependia de autorização judicial ou aprovação de previsão no PRJ para oferecer qualquer tipo de garantia ao financiador que envolvesse bens do seu “ativo permanente” (o que viria a ser alterado pela Lei nº 14.112/2020, que substituiu a expressão por “ativo não circulante”).
Por sua vez, o caput do artigo 67 da LREF dispunha (e segue a dispor, eis que inalterado pela reforma) que os créditos contraídos durante a recuperação judicial, “inclusive aqueles relativos a despesas com (…) contratos de mútuo”, serão considerados extraconcursais em caso de falência. Nesse contexto, o financiador era equiparado a qualquer outra parte que permanecesse fazendo negócios com o devedor em recuperação, sem uma posição prioritária entre os credores extraconcursais.
Com efeito, no que diz respeito à ordem de classificação de pagamentos de credores extraconcursais no âmbito da falência, nos termos da redação original do artigo 84 da LREF, o crédito relativo ao financiamento fornecido ao devedor em recuperação (hipótese enquadrada no original inciso V do artigo 84) estaria em situação menos favorável do que os demais credores extraconcursais. Desse modo, mesmo sendo considerado crédito extraconcursal, o crédito decorrente do Financiamento DIP seria o último a ser pago em relação aos demais credores extraconcursais descritos no artigo 84 da LREF.
Nesse cenário, apontava-se a existência de desestímulos, de variadas ordens, à concessão de Financiamento DIP. [4] De uma parte, haveria certo desestímulo aos potenciais concedentes do Financiamento DIP, em razão da sua posição pouco privilegiada no âmbito dos créditos extraconcursais em caso de falência, como destacado acima.
De outra parte, haveria certa insegurança jurídica quanto à própria validade (e quanto aos contornos da disciplina jurídica) do Financiamento DIP diante da ausência de previsão legal específica sobre o tema. Por exemplo, a legislação não indicava de modo expresso a (des)necessidade de aprovação do Financiamento DIP pelos credores do devedor em recuperação, tampouco a (des)necessidade de autorização judicial.
Possivelmente em razão da falta de maior segurança jurídica, não era incomum, antes da reforma da legislação, que houvesse previsões especiais disciplinando o destino na hipótese de superveniente falência da devedora, dos créditos decorrentes de financiamento contraído no curso da recuperação judicial. A título exemplificativo, destaca-se a recuperação judicial da OGX. Nesse caso, estava previsto no PRJ tratamento diferenciado que seria dado ao crédito relativo ao Financiamento DIP em caso de falência. Segundo o Plano, seria dado “tratamento privilegiado e precedência absoluta de recebimento, inclusive em hipótese de superveniente falência da OGX e/ou Garantidores, conforme previsto nos Artigos 67, 84 e 149 da Lei de Falências“. [5]
Lei nº 14.112/2020 e os novos contornos da disciplina do DIP Financing
A partir da reforma promovida pela Lei nº 14.112/2020, houve uma significativa mudança no regime de financiamento durante a recuperação judicial, em razão da introdução, no Capítulo III da Lei nº 11.101/2005, da Seção IV-A (composta pelos artigos 69-A a 69-F), dedicada a tratar especificamente do financiamento do devedor e do grupo devedor durante a recuperação judicial. Assim, garantiu-se a positivação expressa do Financiamento DIP, trazendo, por consequência, maior segurança jurídica para os investidores. Passa-se, então, a destacar algumas dessas inovações.
O artigo 69-A da LREF, incluído pela reforma, estabelece que, no curso da recuperação judicial, o devedor pode requerer autorização judicial para celebrar contratos de financiamento garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária “de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante” a fim de financiar suas atividades e as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos.
Essa disposição se relaciona diretamente com a previsão do já referido artigo 66 da LREF, que veda a alienação ou oneração de bens integrantes do ativo não circulante da devedora em recuperação. A propósito, vale destacar que, com base em leitura a contrario sensu, a rigor não haveria necessidade de autorização judicial para que a devedora em recuperação contratasse um financiamento sem garantias ou, ainda, para que a devedora que apenas onerasse bens pertencentes ao ativo circulante. [6]
Outra destacável inovação se colhe do artigo 69-B, segundo o qual a reforma da decisão de autorização do financiamento em grau de recurso não pode alterar a natureza extraconcursal do crédito na falência “nos termos do artigo 84 desta lei”, nem desconstituir as garantias outorgadas pelo devedor, desde que o financiador tenha efetivamente desembolsado os valores e tenha agido de boa-fé. Dessa forma, segundo a doutrina, a norma busca estimular o acesso ao crédito, pois o investidor tem a garantia de segurança suficiente para a liberação dos recursos em favor da devedora logo após a decisão judicial de autorização do financiamento. [7] Vale ressaltar, porém, que alguns autores questionam a constitucionalidade do dispositivo, especialmente em razão de possível violação à inafastabilidade do controle jurisdicional (CRBF, artigo 5º, XXXV). [8]
Controvérsia à parte, cumpre ressaltar que o artigo 84 da LREF (ao qual faz remissão expressa o referido artigo 69-B) foi alterado para consagrar uma nova ordem de classificação dos credores extraconcursais na falência. No que mais diretamente importa ao presente artigo, tem-se que o Financiamento DIP passou a estar previsto no inciso I-B do artigo 84, logo após os créditos relativos “às quantias referidas nos artigos 150 e 151 desta lei” (inciso I-A do artigo 84 da LREF).
Portanto, a reforma garantiu a preferência dos créditos efetivamente entregues pelo financiador ao devedor em recuperação. Isso é especialmente evidenciado quando comparado aos demais fornecedores que mantêm negócios com o devedor durante a recuperação judicial (conforme artigo 67 da LREF), que, diante da nova sistemática, estão previstos no inciso I-E do artigo 84 da LREF e recebem seus créditos apenas após, por exemplo, o administrador judicial e demais prestadores de serviço da massa falida. Em outras palavras, o financiador passou a ter um menor risco quanto ao recebimento do seu crédito em eventual falência, possibilitando, assim, que o Financiamento DIP seja ofertado de maneira mais atrativa ao devedor em recuperação.
Dentre as previsões dos artigos incluídos pela reforma, outro incentivo para o financiador está no artigo 69-D da LREF, que prevê que, em caso de convolação da recuperação judicial em falência antes da transferência integral dos valores pelo financiador ao devedor, o contrato será considerado rescindido automaticamente, ressalvando-se que as garantias constituídas serão conservadas no limite do montante efetivamente entregue ao devedor antes da sentença de convolação da recuperação em falência. Como se pode notar, o artigo 69-D traduz exceção à regra geral do artigo 117 da Lei nº 11.101/2005, segundo o qual “[o]s contratos bilaterais não se resolvem pela falência“.
Destaca-se, ademais, a previsão do artigo 69-E quanto aos possíveis sujeitos legitimados a concederem Financiamento DIP. Segundo o dispositivo, qualquer um pode ser financiador do devedor em recuperação judicial, inclusive credores sujeitos ou não à recuperação judicial, familiares, acionistas ou integrantes do grupo econômico do devedor. Dessa forma, assevera a doutrina que a legislação garantiu formas de ampliação do número de investidores, favorecendo a recuperação da devedora. [9]
Notas conclusivas
Pelo exposto, a análise das mudanças na legislação em paralelo aos exemplos concretos aponta que a reforma promovida pela Lei nº 14.112/2020 na Lei nº 11.101/2005 proporcionou um incremento de segurança jurídica e de incentivos econômicos aos potenciais sujeitos concedentes de Financiamento DIP. No entanto, não se pode desconsiderar que, conquanto com menor frequência, antes mesmo da reforma foram aprovados com sucesso financiamentos durante a recuperação judicial.
De modo geral, podem ser consideradas alvissareiras as alterações promovidas na matéria pela Lei nº 14.112/2020, uma vez que, ao atribuírem maior conforto aos investidores, findam por trazer uma certa esperança de potencialização dos instrumentos para o soerguimento dos empresários em situação de crise. Espera-se, em suma, que a compreensão e a disseminação dos devidos contornos do Financiamento DIP possam servir de mola propulsora para a consecução dos objetivos gerais do próprio instituto da recuperação judicial, na esteira do artigo 47 da LREF.
[1] Como elucidam, por exemplo, AYOUB, Luiz Roberto; CAVALLI, Cássio Machado. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas [livro digital]. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
[2] 11 USC Ch. 11, §1101: “In this chapter – (1) ‘debtor in possession’ means debtor except when a person that has qualified under section 322 of this title is serving as trustee in the case; (…)”.
[3] Segundo Marcelo Barbosa Sacramone, “[p]elo sistema adotado pela Lei n. 11.101/2005 do debtor-in-possession (DIP), após a distribuição do pedido de recuperação judicial e a menos que a Assembleia Geral de Credores aprove plano de recuperação judicial que substitua o devedor, esse empresário em recuperação judicial permanecerá na condução da atividade” (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência [livro digital]. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2023).
[4] Para uma visão mais detalhada dos obstáculos existentes antes da reforma, veja DIAS, Leonardo Adriano Ribeiro. Financiamento na recuperação judicial e na falência. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 265-300.
[5] TJRJ. Processo nº 0377620-56.2013.8.19.0001. Juiz: Gilberto Clovis Faria Matos. 4ª Vara Empresarial. Plano de Recuperação Judicial. Fls. 6.687-6.734.
[6] Nesse sentido, Marcelo Barbosa Sacramone sustenta que “[a] autorização judicial somente será necessária para a obtenção de financiamento às atividades e às despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos, com a oneração ou alienação fiduciária de bens e direitos, se os credores, pela Assembleia Geral ou pelos modos alternativos de deliberação, não tenham aprovado o plano de recuperação judicial com a previsão do referido meio de soerguimento” (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência [livro digital]. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2023).
[7] COSTA, Daniel Carnio; MELO, Alexandre Nasser de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2023, p. 357.
[8] Assim, por exemplo, embora reconheça o ganho de segurança jurídica para os investidores, Manoel Justino Bezerra Filho afirma que “o dispositivo resvala para o campo da inconstitucionalidade, como aliás ocorre também com o § 2º do art. 39, ao investir, aparentemente contra o princípio da indeclinabilidade da jurisdição” (BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falência: Lei 11.101/2005 comentada artigo por artigo. 16 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022, p. 343). Por outro lado, a sustentar uma interpretação constitucional a favor da higidez do dispositivo legal, v. CIAMPOLINI NETO, Cesar; SACRAMONE, Marcelo Barbosa; PIVA, Fernanda Neves. O financiamento da empresa em recuperação judicial diante reforma da lei de recuperação de empresas e falência. In: VASCONCELOS, Ronaldo et al (Coord.). Reforma da Lei de Recuperação e Falência (Lei n. 14.112/20). São Paulo: Editora Iasp, 2021, pp. 790-793.
[9] V., por todos, COSTA, Daniel Carnio. MELO, Alexandre Nasser de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2023, p. 359.
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