Opinião

Lei 14.813/24, novo marco regulatório dos serviços de praticagem

Autor

26 de fevereiro de 2024, 6h30

A Lei 14.813, de 15/01/2024, alterou as Leis nos 9.537/1997 e 10.133/2001 entrando em vigor em 16/01/2022.

Em que pese a Lei nº 9.537/1997 possuir maior abrangência, pois trata da segurança do tráfego aquaviário como um todo, a Lei nº 14.813/2024 objetivou implementar um novo arcabouço normativo para os serviços de praticagem.

Foram incluídas novidades como a regra que privilegia a livre negociação, a atribuição de novos deveres e direitos aos práticos, bem como a criou procedimentos para regulamentar os preços dos serviços de praticagem, objetivando, inclusive, evitar práticas que possam configurar abuso de poder econômico.

Por outro lado, a lei manteve o Ministério da Marinha como ente responsável pela fixação de quantitativo e lotação dos práticos em cada zona e, ainda, regulamentação da lei, para as hipóteses ali estabelecidas.

A seguir, apresentaremos e comentaremos as principais alterações.

A definição de “zona de praticagem” (artigo 2º, XXII)
Em que pese “zona de praticagem” ser uma expressão que já vinha sendo utilizada desde a edição da Lei nº 9.537/1997, essa norma não contemplava definição explicita a respeito, só concretizada com a inserção do Inciso XXII, do artigo 2º pela Lei nº 14.813/2024:

Zona de Praticagem – área geográfica delimitada em razão de peculiaridades locais que dificultam a livre e segura movimentação de embarcações, de forma a exigir a Constituição e a disponibilidade permanente de serviço de praticagem“.

A essencialidade do serviço de praticagem – continuidade e eficiência
Acerca desse tema, a lei acrescentou três parágrafos ao artigo 12.

O acréscimo do § 1º. trouxe a definição do serviço de praticagem e seu objetivo: “garantir o interesse público da segurança da navegação, da salvaguarda da vida humana e da proteção ao meio ambiente.”

“§1º. O serviço de praticagem é atividade essencial, de natureza privada, cujo objetivo é garantir o interesse público da segurança da navegação, da salvaguarda da vida humana e da proteção ao meio ambiente.”

Já o § 2º explicita a necessidade de o serviço de praticagem “estar permanentemente disponível, de forma a prover a continuidade e a eficiência do tráfego aquaviário.”

Reprodução

“§2º. O serviço de praticagem deve estar permanentemente disponível, de forma a prover a continuidade e a eficiência do tráfego aquaviário.”

Essa essencialidade referida no § 2º acima, se vincula à obrigação conferida ao Estado de garantir o serviço de praticagem, conforme se vê no § 3º.

“§3º É dever do Estado garantir a adequada e livre prestação do serviço de praticagem, nos termos desta Lei.”

Composição do serviço e obrigações dos práticos
caput do artigo 12-A dividiu em três partes o serviço de praticagem: prático, lancha e atalaia.

Pode-se sistematizar o dispositivo acima com as seguintes responsabilidades conferidas aos práticos:

  1. Implantação e manutenção da infraestrutura e dos equipamentos necessários à execução dos serviços de praticagem,
  2. Treinamento de colaboradores e
  3. Permanente disponibilidade da estrutura dos serviços de praticagem.

A quem compete a execução do serviço de praticagem
A partir da edição da Lei nº 14.813, de 2024, a redação do artigo 13 ficou assim:

“Art. 13. O serviço de praticagem será executado exclusivamente por práticos devidamente habilitados pela autoridade marítima.”

A compreensão literal da atual redação é que foi eliminada a possibilidade da execução e contratação dos serviços de praticagem tanto por entidades associativas como por empresas.

Contudo, já existem controvérsias sobre a real interpretação e consequente alcance desse preceito.

As condições para manutenção da habilitação do prático
No tocante aos parágrafos que compõem o referido artigo 13, a nova lei manteve o § 1º que impõe a exigência de concurso, de características especiais para habilitação do profissional (o prático) pela autoridade marítima.

Esse § 1º, não alterado pela Lei nº 14.813/2024, dispõe que “a inscrição de aquaviários como práticos obedecerá aos requisitos estabelecidos pela autoridade marítima, sendo concedida especificamente para cada zona de praticagem, após a aprovação em exame e estágio de qualificação”.

Contudo, houve substancial alteração do § 2º, definindo de modo mais detalhado as condições para manutenção da habilitação do prático:

“§2º A manutenção da habilitação do prático dependerá:

I – do cumprimento da frequência mínima de manobras estabelecida pela autoridade marítima;   

II – da realização dos cursos de aperfeiçoamento determinados pela autoridade marítima; e     (Incluído pela Lei nº 14.813, de 2024)

III – do cumprimento das recomendações e das determinações oriundas dos organismos internacionais competentes, desde que reconhecidas pela autoridade marítima.”

Como se constata, existe agora um número maior e mais detalhado de exigências para os práticos se manterem habilitados, relacionadas à frequência mínima de manobras, à participação em cursos e/ou eventos de aperfeiçoamento e ao cumprimento de recomendações e determinações feitas por organismos internacionais, ressalvada a necessidade de que tais recomendações e determinações sejam acatadas pela autoridade marítima.

A instituição do Certificado de Isenção de Praticagem
O preceito até então vigente conferia plenos poderes à autoridade marítima para isentar os comandantes de embarcações de bandeira brasileira a substituírem os práticos, não constando qualquer critério que seria exigido para conferir essa isenção.

Com a edição da Lei nº 14.813/2024, houve alteração do § 4º, ficando a isenção condicionada à expedição do Certificado de Isenção de Praticagem, mediante o atendimento de critérios  mais explícitos que, necessariamente, deverão ser atendidos.

Importante observar que, mesmo com a imposição de limitações – “navios de bandeira brasileira que tenham até 100 m (cem metros) de comprimento e cuja tripulação seja composta de, no mínimo, 2/3 (dois terços) de brasileiros”, a implementação dessa norma necessita de regulamentação pela autoridade marítima, conforme se conclui da expressão: “desde que atendidos os requisitos por ela estabelecidos em regulamento específico”.

Enfatize-se que a alteração legislativa, também tratou de obrigações e requisitos que deverão ser cumpridos pelos comandantes que portarem o Certificado de Isenção de Praticagem. Patente que esse conjunto de ressalvas necessita de regulamentação detalhada da autoridade marítima.

A exigência expressa de homologação da escala de rodízio dos práticos feita pela autoridade marítima
A nova legislação consolida a dinâmica de rodízio único para os serviços de praticagem, explicitando claramente a necessidade de uma escala necessariamente atrelada a uma determinada zona de praticagem.

Também imputou a obrigatoriedade de os profissionais da praticagem comunicarem sua escala de rodízio, cabendo à autoridade marítima a homologação dessa escala.

Entendemos ainda que a lei conferiu à autoridade marítima o poder de vetar e alterar a escala apresentada, ainda que haja exigência de atender a determinados requisitos relacionados à qualidade, distribuição equitativa de manobras e a permanentemente disponibilidade, de forma a prover a continuidade e a eficiência do tráfego aquaviário.

A obrigatoriedade do serviço de praticagem em função da arqueação da embarcação
O § 6º, inserido na nova legislação, estabelece a obrigatoriedade do serviço de praticagem nas zonas de praticagem para embarcações com arqueação bruta superior a quinhentos. No entanto, esse mesmo parágrafo prevê duas exceções:

Hipóteses regulamentadas pela autoridade marítima: Em tais casos, as embarcações dispensadas devem comunicar suas manobras aos agentes da autoridade marítima.

Embarcações regionais e de navegação interior: Essas embarcações, independentemente da arqueação, estão isentas da obrigatoriedade de praticagem, desde que arvorem a bandeira brasileira.

Medidas explicitadas na lei, no sentido de garantir a continuidade do serviço de praticagem
Foi implementada uma nova redação do parágrafo único do artigo 14, o qual já tratava de assegurar a disponibilidade permanente do serviço nas zonas de praticagem estabelecidas.

Enfatizando como regra inafastável a continuidade plena do serviço de praticagem (sem interrupções), a lei manteve a autoridade marítima como responsável para adoção de medidas com esse propósito, conforme estabelecido nos incisos I, II e III.

A nova redação legislativa manteve a autoridade marítima como ente responsável pela definir o contingente de práticos em cada zona de praticagem. Só que houve aprimoramento dessas disposições em relação à norma anterior, a qual não estabelecia a obrigatoriedade de a autoridade marítima editar, para essa finalidade, “norma específica própria”, a qual deve ser “periodicamente revisada”.

Outro ponto a ser ressaltado é que, com a nova redação, retirou-se da autoridade marítima o poder de, ordinariamente, fixar preços em cada zona de praticagem.

A fixação de preços em cada zona de praticagem pela autoridade marítima
Apenas em caráter excepcional e temporário essa fixação de preços poderá ocorrer, uma vez que, com essa nova legislação, prevalece como norma geral a livre negociação (vide artigo 15-A, § 3º).

A remuneração do prático – o princípio da livre negociação como regra
A inclusão do artigo 15-A e seus parágrafos permitiu estabelecer uma melhor compreensão acerca da remuneração de prático, além de esclarecer como devem ser feitas negociações objetivando acertar posições divergentes quanto a essa remuneração.

O §2º estabelece que, ordinariamente, o preço do serviço será livremente negociado entre, os tomadores e os prestadores do serviço. A regra passa a ser sempre a livre negociação. A autoridade marítima só detém competência na fixação de preços, nas excepcionais hipóteses contempladas e disciplinadas nesse artigo 15-A.

Registre-se não existir impedimento que essa negociação, inclusive com a implementação de uma Tabela de Preços, possa ser feita entre entidades que congregam cada categoria: de um lado, a que representa os práticos e, de outro, entidade que congrega as agências de navegação, estas representando os armadores.

As condições de trabalho dos práticos
O § 1º do artigo 15-A dispõe sobre condições de trabalho que devem ser asseguradas aos práticos, especialmente no que tange a situações especiais que envolvem jornadas de revezamento desses profissionais.

Imputa ao comandante da embarcação a obrigação de oferecer ao prático condições que assegurem um descanso satisfatório e adequado.

A configuração de abuso do poder econômico
Observe-se, no entanto, que o referido § 2º veda comportamentos que possam configurar abuso do poder econômico.

“§2º No rito ordinário, o preço do serviço será livremente negociado entre os tomadores e os prestadores do serviço, reprimidas quaisquer práticas de abuso do poder econômico.”

Nessa linha de compreensão, os parágrafos 3º, 4º e 5º estabelecem regras procedimentais para, em caráter extraordinário, provocar a autoridade marítima no sentido de que esta, em caráter excepcional e pelo prazo de um ano, estabeleça os preços dos serviços de praticagem.

A fixação de valores pela autoridade marítima (em caráter extraordinário) poderá ocorrer nas seguintes hipóteses (artigo 15-A, § 3º):

  1. cumprimento do disposto no inciso II do parágrafo único do art. 14 desta Lei – “fixar, em caráter excepcional e temporário, o valor referente aos serviços em cada zona de praticagem”; ou
  2. quando comprovado o abuso de poder econômico ou a defasagem dos valores do serviço de praticagem.

Nesses casos, é necessário que a autoridade marítima reconheça que a controvérsia se amolda às hipóteses legais do § 3º (juízo de admissibilidade), apresentando por decisão fundamentada, quanto à provocação referente a abuso de poder econômico por quaisquer das partes ou defasagem dos valores de serviço de praticagem (artigo 15-A, § 4º).

Entendemos que, assim como os práticos podem questionar a defasagem dos valores do serviço de praticagem, os contratantes desses serviços (armadores ou seus representantes, congregados no Sindicato das Agências de Navegação), podem também oferecer reclamação sobre a tabela de preços, ou determinados itens dessa tabela, quando constatada situação extremamente vantajosa e desproporcional em favor dos práticos.

Regra para o diálogo “praticagem x pessoal da embarcação”
A alteração legislativa também inseriu norma destinada a explicitar melhor as atribuições relacionadas ao diálogo “praticagem x pessoal da embarcação”, por meio do artigo 15-B, onde ficou

explicitamente definido que as orientações sobre rumos e velocidades, em assessoria ao Comandante da embarcação, serão transmitidas exclusivamente pelo prático ao comandante, quando sua embarcação estiver navegando nas zonas de praticagem.

A fixação do quantitativo de práticos e respectiva lotação
A lei inseriu o artigo 15-C, o qual confirma a autoridade marítima como responsável para fixação do quantitativo de práticos e respectiva lotação em cada zona de praticagem.

Por sua vez, a fixação desse quantitativo será normatizada pelo Ministério da Marinha, que deverá atender os requisitos previstos nos incisos I a IV desse artigo 15-C.

Evidente a tentativa de estabelecer critérios objetivos para quantificação desses profissionais em cada zona de praticagem.

No entanto, alguns desses critérios são ainda bastantes subjetivos.

Revogação do depósito prévio para interposição de recurso administrativo contra pena de multa
Por fim, a última alteração da Lei 9.537, de 1997, foi a revogação do § 2º do seu artigo 24.

Essa alteração objetiva atender ao que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, ao editar a Súmula Vinculante nº 21, cuja redação é a seguinte:

“É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo”.

Conclusões
Constata-se que que muitas das alterações prevista nesse novo marco legal ainda dependerão de regulamentação pelo Ministério da Marinha.

Ainda assim, se constata que a Lei nº 14.803/2024 aprimora e traz mais segurança jurídica na contratação e execução dos serviços de praticagem.

Importante consignar que as regras de praticagem permaneciam as mesmas desde a edição da Lei nº 9.537, editada em 1997, ou seja, há mais de 20 anos.

As pouquíssimas alterações na lei de segurança do tráfego aquaviário, ocorridas no ano de 2009, nada trataram sobre o serviço de praticagem, tema extremamente relevante e que desempenha um papel crucial na navegação.

Mesmo com algumas críticas que começaram a surgir, o certo é que a nova legislação busca aprimorar a regulação e a eficiência desse setor, implementando medidas específicas relacionadas a preços, para os quais a regra sempre será a livre negociação.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!