Segunda leitura

Magistrados, a complexa decisão de aposentar-se e o day after

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

4 de fevereiro de 2024, 10h22

Jovens magistrados não acreditam que um dia irão aposentar-se, voluntária ou compulsoriamente. Olham os velhos desembargadores como seres de outro planeta e creem que a velhice é algo tão distante que nem merece maior atenção. Quando se aproximam os cinquenta anos, surgem os primeiros sinais. A profissão torna-se rotineira, algumas desilusões, carreira por vezes inviabilizada por falta de vagas nas instâncias superiores. E lá pelos sessenta anos, a dúvida: aposento-me ou não.

Vladimir Passos de Freitas

Aposentar-se deve — ou deveria ser — um ato de alegria. Uma fase de descanso, de usufruir as coisas boas da vida. Por isso a língua espanhola usa jubilar-se, ou seja, supõe alegria, satisfação, contentamento. No entanto, aposentar-se para um magistrado não é a mesma coisa que aposentar-se em uma atividade comum. A diferença não é sutil, ao contrário, é de fácil identificação. Juiz tem poder e isto significa ser tratado com mais atenção e ter facilidades. Isto acaba com a aposentadoria.

Neste particular as magistradas são bem mais inteligentes que seus colegas do sexo masculino. Cultivam outros interesses e adaptam-se com facilidade à nova vida.

Registro que estou me referindo apenas aos aspectos existenciais do fim da atividade e não da redução da remuneração dos que se aposentam, que é uma realidade. Sobre isto, há bons estudos como, por exemplo, o de Rodrigues e Rodrigues.i

Sensíveis ao problema, algumas instituições vêm propondo medidas paliativas, já que a transição não é fácil e um dia todos terão que esvaziar as gavetas e desocupar o gabinete. O Conselho Nacional de Justiça instituiu o Programa de Preparação à Aposentadoria e de Valorização do Magistrado (PPA).ii A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) possui uma diretoria específica e nela se realizam ações de estímulo a atividades culturais, inclusive com publicações.iii

Nada há, porém, que se compare à prática do juiz sênior existente em alguns estados e na Justiça Federal dos Estados Unidos da América. Como escrevi nesta coluna, lá se permite ao juiz aposentar-se, porém continuar trabalhando com uma carga reduzida de trabalho.iv Lucra a sociedade, ganha o magistrado. Iniciativas como esta certamente contribuem para que os EUA sejam a nação mais rica do planeta e o Brasil não avance.

Frise-se, contudo, que mesmo sendo importante o apoio institucional e iniciativas como o juiz sênior, a preparação deve vir, acima de tudo, do próprio magistrado. Isto se faz tendo consciência de que seu poder é finito e que amizades antigas devem ser mantidas e novas devem ser feitas, estas com a cautela de identificar-se quando são verdadeiras ou quando não passam de bajulação interesseira.

Assim, um primeiro passo deve ser dado quando ainda estiver em atividade, qual seja, pertencer a alguma entidade ou grupo informal que tenha interesse estranho à magistratura. Clubes de servir, confrarias, esportes, pescarias, pesquisas históricas, trabalho voluntário ou outra qualquer. No leque de oportunidades, o céu é o limite. Tudo que seja outra conversa, outro foco, algo que persistirá independentemente do cargo. Lá estão as pessoas que darão o apoio emocional quando a agitação da rotina judiciária terminar.

O segundo alerta é compenetrar-se que, publicado o ato de aposentadoria no Diário Oficial, o tratamento será outro. Pouco a pouco o doutor será substituído pelo “seu” e o senhor por tu ou você. E na nova condição se perde influência na Corte. Querer opinar sobre isto ou aquilo, ou participar de uma promoção na carreira, será pura perda de tempo. Quanto a interferir em um julgamento, o risco é maior. Poderá vir uma resposta atravessada, à qual se seguirão comentários pouco elogiosos, que alimentarão as conversas dos corredores judiciários por bom tempo.

Como terceira regra, o aposentado deve evitar ficar a contar casos dos velhos tempos das andanças pelo interior, pela simples razão de que para os mais novos, inclusive os netos que estudam Direito, eles fazem parte de tempos pré-históricos. As únicas exceções admissíveis serão para o caso de um raro e eventual interessado ou passagens engraçadas, pois estas dão graça à vida.

Aqueles que construíram suas vidas na magistratura de outro estado, às vezes distantes centenas de quilômetros, não devem ter a ilusão de que ao voltar, 30 anos depois, serão recebidos com festejos. Além das amizades, salvo exceções, perderem o fulgor com o tempo, quem parte vê o mundo de forma diversa dos que ficam. Tornam-se diferentes. As recordações da juventude não bastam para que resultem em uma oferta de sala no escritório, vaga como professor na Faculdade de Direito ou cargo público em comissão.

Se a escolha for o exercício da advocacia, que seja exercido com competência e ética. Não são comuns os casos de sucesso, pois quem foi juiz tende a ver com aguçado sentido crítico a ação dos colegas em atividade e, em pouco tempo, abandona a ideia. Neste particular, os que vieram pelo quinto constitucional, na classe de advogados, têm mais facilidades. No ensino superior há alguns casos, mas são cada vez mais raros, pois as exigências das Faculdade de Direito são cada vez maiores. Ocupando cargos públicos relevantes, são pouquíssimos.

Mas então, disto tudo se concluirá que é impossível ser feliz após o jubilamento? Não, absolutamente. É possível, sim, e a aspiração é legítima. Apenas há que se ter habilidade para encontrar a via certa. Afinal, como diz a poetisa Adélia Prado, aquilo que amamos tem vocação para emergir das profundezas, romper os cadeados e assombrar de vez em quando.v Portanto, o segredo é achar o que se ama.

Isto significa que fazer o que se ama é o melhor caminho para esta fase da vida. Os que vez por outra sentem saudade do ambiente forense, do exercício das funções, podem recorrer aos serviços judiciários, principalmente na área da conciliação, seja nos tribunais ou nos juizados. Mas atenção, mesmo sendo iniciativa de serviço voluntário, podem surgir dificuldades em conseguir um posto. Terceiros, pelas mais diversas razões, podem opor-se. É da natureza humana.

Servir em associações de classe também pode ser muito gratificante. É um bom local para reencontrar colegas e fazer algo prazeroso. Redes de aposentados no WhatsApp são interessantes, desde que se evite tocar em política, hipótese em que divergências podem pôr a perder amizades antigas.

Em suma, preparar-se para a terceira etapa da vida, para os magistrados, começa cedo, por volta dos 50 anos. Exige sabedoria e estratégias. Mas, aos que trilham o caminho certo, é, sim, possível viver boas experiências e ser feliz na terceira idade.


i Rodrigues, Rodnei Doreto e Rodrigues, Gustavo Doreto. REGIME PREVIDENCIÁRIO DOS MAGISTRADOS IMPLICAÇÕES DAS REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS INCONSTITUCIONALIDADES E DECORRÊNCIAS. Disponível em: https://www.anamatra.org.br/attachments/article/24411/00003419.pdf. Acesso em 2 fev. 2024.

ii Conselho Nacional de Justiça. CNJ institui programa de preparação à aposentadoria da magistratura, 3 out. 2023. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-institui-programa-de-preparacao-a-aposentadoria-da-magistratura. Acesso em 2 fev. 2024.

iii AJUFE. Caderno Artístico. Diretora Maria Helena Rau de Souza, dez. 2023, ano 2, nº 4. Disponível em: https://www.ajufe.org.br/images/2023/PDF/CadernoArtistico04.pdf. Acesso em 2 fev. 2024.

iv FREITAS, Vladimir Passos de. Judiciário deveria aderir à experiência da figura do Juiz Sênior. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 19 abr. 2009. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-abr-19/judiciario-deveria-aderir-experiencia-internacional-figura-juiz-senior/. Acesso em 2 fev. 2024.

v PRADO Adélia. Jornal Classivale. Aroma de Poesia, 30 jun. 2022. Disponível em: https://jornalclassivale.com.br/noticia/1982/-aroma-de-poesia. Acesso em 3 fev. 2024.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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