Opinião

Musk tem razão? Revolução das redes, bem jurídico informação e sua proteção

Autor

  • Sidney Duran Gonçalez

    é advogado criminalista palestrante escritor especialista em teoria jurídica do delito mestre em Direito Penal e doutorando em Direito Penal todos pela Universidad de Salamanca (Espanha).

9 de abril de 2024, 6h35

“não concordo com o que dizes, mas defendo até a morte o direito de o dizeres”
Voltaire

O bilionário Elon Musk, dono da rede social “X”, antigo Twitter, fez neste fim de semana declarações imputando ao ministro Alexandre de Moraes ato de censura em contas de usuários brasileiros em sua plataforma. O herdeiro sul-africano vai além das críticas e ameaça liberar as contas suspensas judicialmente por ordem do Supremo Tribunal brasileiro. [1]

Musk, que é um dos homens mais ricos do mundo e mora fora do Brasil, parece não se importar com o Judiciário brasileiro, tampouco parece temer algum tipo de punição. Já orienta seus usuários a utilizar o recurso VPN para navegar na rede “X”, antecipando-se a um possível bloqueio de sua rede social em território nacional.

Musk se torna com essa postura, baluarte da extrema-direita no Brasil, que prega (como se pregava nos primórdios da internet) redes sociais completamente livres da intervenção do Estado.

Aliás, assim se busca ser nos Estados Unidos, onde a Suprema Corte discute se é possível regular a internet sem violar a liberdade de expressão. A Suprema Corte americana já decidiu que as plataformas digitais não são responsáveis pelas publicações de usuário [2], e discute a constitucionalidade de Leis da Flórida e do Texas que impedem as empresas de mídia social de remover postagens e bloquear contas de políticos. [3]

Nos EUA, ainda se discute muito sobre a possibilidade de restrição à liberdade de expressão na internet por órgãos do Estado, sendo que recentemente a Suprema Corte americana ao analisar as Leis do Texas (H.B. 20) e da Flórida (S.B. 7072), formou maioria na direção de que o governo não pode restringir ou moderar conteúdos, como fundamenta John Roberts, ministro presidente da Suprema Corte:

“Quando a questão é se os governos ou as empresas de mídia social têm o poder de decidir quais vozes serão ouvidas em uma plataforma em particular, a Primeira Emenda coloca um dedo na balança a favor das empresas. A Primeira Emenda proíbe os governos — não entidades privadas — de censurar a expressão.” [4]

A questão que se encontra em parte controvertida nos EUA, no Brasil e na Europa é completamente pacífica, ou seja, o direito à liberdade de expressão que é direito constitucionalmente reconhecido não pode ser utilizado para lesar bens jurídicos também protegidos por nossa Constituição.

O Superior Tribunal de Justiça brasileiro tem decidido reiteradamente quanto a afastar a utilização da liberdade de expressão como excludente penal quando se verifica abuso do direito, como elucida a questão o brilhante voto do saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino:

“Ao cidadão não é dado o direito de difamar, caluniar, injuriar e destruir a reputação de terceiros, não lhe aproveitando a escusa do exercício absoluto da liberdade de expressão. Quem abusa de um direito comete ato ilícito e por ele responderá.” [5]

Já no Supremo Tribunal Federal, temos em vias de julgamento o Tema 837, que busca definir os:

“limites da liberdade de expressão em contraposição a outros direitos de igual hierarquia jurídica – como os da inviolabilidade da honra e da imagem – e estabelecimento de parâmetros para identificar hipóteses em que a publicação deve ser proibida e/ou o declarante condenado ao pagamento de danos morais, ou ainda a outras consequências jurídicas”. [6]

O Tribunal Constitucional da Espanha já há muito tempo definiu seu entendimento acerca dos parâmetros a serem estabelecidos na averiguação dos excessos na utilização da garantia constitucional da liberdade de expressão, que, segundo Muñoz Machado, no julgamento da Sentencia 104/1986, a corte passa a ponderar direitos fundamentais “é a primeira sentença em que concede às liberdades previstas no artigo 20º uma avaliação que transcende que é comum e própria de todos os direitos fundamentais”.[7]

Na base jurídica 5 da mencionada sentença, o tribunal utiliza, pela primeira vez, a técnica de ponderação dos direitos:

“en el ejercicio de la libertad de opinión (letra a) del apartado 1 del artículo 20 y/o la libertad de comunicar información por cualquier medio de difusión (art. 20.1.d) el derecho a la honra de alguien sea afectado, nos encontraremos ante un conflicto de derechos ambos de importancia fundamental, lo que significa no necesariamente y, en cualquier caso, dicha afectación prevalecerá sobre el ejercicio de dichas libertades, no siempre deberán considerarse como prevalentes, pero que se impone una necesaria y casuística ponderación entre una y otra.” [8]

Pelo visto Elon Musk muito se equivoca, ao comparar com censura as decisões judiciais que buscam proteger um bem jurídico tutelado contra violações perpetradas em rede social. É importante destacar que em nosso Estado todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas sob pena de nulidade, e todas, sem exceção, são passiveis de contestação por meio dos recursos previstos em nossa legislação.

Spacca

As plataformas digitais, que são na verdade empresas transnacionais que operam em todo mundo, tendem a não se submeter as legislações locais, na verdade estas possuem instâncias internas para decidirem sobre a manutenção de conteúdo, levando a discussão que antes era feita com a utilização do direito público, no caso das mídias tradicionais, para a esfera do direito privado com a utilização dos “Termos de Uso”. [9]

Talvez, por essa sensação de que a sua “jurisdição” internacional e privada esteja sendo invadida pela Jurisdição de um Tribunal de um dos países onde opera, tenha incentivado Musk a dar as declarações contra as decisões do ministro Alexandre de Moraes.

Ao que parece, a Suprema Corte americana dá algum amparo as insurgências de Musk, já que nos EUA se entende até então majoritariamente, que apenas as empresas podem fazer a análise de conteúdo, para permitir uma publicação ou mantê-la, sendo vedado ao governo realizar essa análise sob pena de violar a Primeira Emenda da Constituição americana.

Nem tudo pode

Só que essa ideia de que tudo pode, não é verdadeira. Nos EUA, o direito à liberdade de expressão não é completamente absoluto, podendo ser obstado em caso de choque com outros direitos. Todavia, o conceito de liberdade de expressão norte-americano é muito mais alargado, o que nas palavras de Rodrigo Meyer Bornholdt “ameaça perigosamente as estruturas de um Estado democrático de Direito”. [10]

Como também nos esclarece a professora Clarissa Piterman Gross, “nos EUA, o Estado não deve restringir a liberdade de expressão com base no conteúdo, por mais imoral que ele seja. É preciso uma justificativa forte, como o mal que possa advir de determinada fala em um contexto específico”. [11]

A ameaça de Musk de liberar conteúdos e contas com decisão judicial de bloqueio é, de fato, temerária, já que as decisões do Estado brasileiro devem ser respeitadas, sob pena de passarmos a viver sem estabilidade social, em verdadeiro estado de insegurança jurídica, e isso sem olvidar que as decisões judiciais são fundamentadas na defesa de direitos individuais e coletivos que estariam sob risco.

A liberação de conteúdos restritos e a não observância em impedir que notícias falsas e discursos de ódios sejam propagados, certamente causarão um grande dano social, com a manipulação da opinião pública lesionando o direito constitucional a informação.

Nossa Carta Constitucional, em consonância com a maioria das cartas constitucionais dos países democráticos, assegura a liberdade de expressão e de informação, sendo a liberdade de expressão definida objetivamente no artigo 220 da nossa Constituição como “manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma” (Brasil, 1988, artigo 220).

É certo que, no inciso IV do artigo 5º, a Constituição estabelece como cláusula pétrea a livre manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Todavia, no Título VII, Capítulo V, em que trata efetivamente da comunicação social, explicita os termos da livre expressão, incluindo o direito à informação.

Portanto, como podemos extrair claramente do texto constitucional, a informação é um direito igualmente protegido, e, desse modo, havendo uma garantia constitucional a receber informação, é certo que esta não pode ser violada, pois, se assim for, estaria legitimado o legislador a dispor das ferramentas jurídicas necessárias para proteger esse direito, alinhando-se à teoria do bem jurídico.

O poder econômico das plataformas digitais, onde somente a Apple, possui valor de mercado de US$ 2,17 bilhões, superior ao PIB brasileiro registrado em 2019, de US$ 1,8 bilhão, e a Microsoft e Amazon, com valores superiores à Espanha e Austrália [12], e sua constante insubmissão as legislações dos países onde operam, tentando impor suas condições no âmbito do direito privado, faz com que a fala de Musk, ainda que por enquanto isolada, seja vista com muita cautela pelo estados.

Esfera penal?

A postura do empresário Elon Musk de criticar o ministro Alexandre de Moraes quanto às decisões judiciais de suspensão de contas e conteúdos em sua rede social certamente são inadequadas diante da posição que ocupa.

Todavia devemos considerar que apenas o fato de se manifestar criticamente as decisões judiciais, sem adotar até então (mesmo com as ameaças de descumprir decisões) uma conduta fática de descumprimento, por mais grave que seja, entendo pessoalmente não se tratar de um fato juridicamente relevante na esfera penal para justificar sua inclusão em inquérito policial, como foi determinado pelo ministro.

O início de persecução penal em razão de manifestações críticas de empresário, que afirma serem excessivas as determinações emanadas pelo Judiciário brasileiro, por mais amargas que sejam, deveriam ser apuradas no âmbito civil ou administrativo. A mera crítica não pode ser confundida com o delito de obstrução de Justiça e incitação sem que para isso se antecipe barreiras hermenêuticas intransponíveis. E ainda mais não está clara qual seria em tese a possível instrumentalização da rede “X” para o cometimento dos crimes perseguidos no INQ 4.874/DF. [13]

Enfim, temo a criminalização de críticas ao Judiciário, aproveitando as sábias palavras da ministra Carmem Lúcia, no julgamento dos réus acusados pelos atos de 8 de janeiro de 2023. “Senhora presidente, bendita democracia, que permite que alguém que mesmo nos odiando pode, por garantia dos próprios juízes, vir e dizer a eles sobre isto, que é a sua verdade. Em uma ditadura nós sabemos que isso não seria permitido, porque nós sabemos que nem há Judiciário independente, nem advocacia livre, e nem cidadania com direitos. Bendita democracia.” [14]

A própria conduta descumprir ordem judicial é delito previsto no artigo 330 do Código Penal, sendo que o tipo penal em espécie não possui a forma tentada. Ou seja, dizer que irá desrespeitar uma decisão judicial, por mais que seja socialmente reprovável, não é crime, até que se desrespeite efetivamente uma decisão.

A decisão de incluir o empresário em inquérito policial onde atua o próprio ministro agravado com sua crítica, por mais que seja uma resposta a uma tentativa de desrespeitar a Suprema Corte brasileira, pode internacionalmente apresentar uma impressão equivocada de nosso sistema de Justiça, pois estaria o agravado conduzindo as investigações contra o agravante, mesmo encontrando amparo em nossa jurisprudência (já que meras rusgas e antipatia não são suficientes para que ocorra a suspeição [15]). Esta postura talvez repercuta negativamente no âmbito internacional, principalmente em razão de que nos Estados Unidos a tolerância a estas manifestações, como já dito, é muito alargada.

Talvez uma melhor solução seja, aproveitando esse precedente discutir abertamente a tipificação de condutas que violem o bem jurídico informação (PL 3.813/21), e que coloquem em risco a opinião pública, com a responsabilização das redes que impulsionam e protegem a divulgação desse tipo de conteúdo, até mesmo no âmbito penal.

Uma legislação clara de responsabilização das plataformas em razão da divulgação de conteúdo considerado ilegal talvez seja a forma mais adequada para lidar com situações como as vividas nesse momento, criando-se a regra por meio da legitima discussão no Congresso (como já ocorre com o PL 2.630/20), para que aquele que aqui venha a oferecer seus serviços saiba inequivocamente dos parâmetros estabelecidos pela sociedade brasileira, e assim se adeque, não vindo a faltar amparo normativo para impor limites a condutas que se mostram lesivas a direitos consolidados.

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[1] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/musk-e-moraes-entenda-o-embate-e-o-que-pode-vir-a-tona/

[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-19/suprema-corte-eua-redes-nao-sao-responsaveis-posts/

[3] Disponível em: https://www.poder360.com.br/internacional/suprema-corte-dos-eua-analisa-leis-de-regulacao-de-midias-sociais/

[4] Disponível: https://www.conjur.com.br/2024-fev-28/suprema-corte-dos-eua-tende-a-preservar-o-direito-de-moderar-conteudo-nas-redes-sociais/

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.567.988/PR (2015/0292503-2). Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, 2018. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/652015789/inteiro-teor-652015811. Acesso em: 6 dez. 2023.

[6] BRASIL. Senado Federal. Tema 837. Definição dos limites da liberdade de expressão em contraposição a outros direitos de igual hierarquia jurídica – como os da inviolabilidade da honra e da imagem – e estabelecimento de parâmetros para identificar hipóteses em que a publicação deve ser proibida e/ou o declarante condenado ao pagamento de danos morais, ou ainda a outras consequências jurídicas. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Brasília, DF: Senado Federal, 2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4161468&numeroProcesso=662055&classeProcesso=RE&numeroTema=837. Acesso em: 6 dez. 2023.

[7] MUÑOZ MACHADO, S. Liberdade de imprensa e processos por difamação. Barcelona: Editora Ariel, 1988.

[8] ESPANHA. Tribunal Constitucional de España. Sentencia 104/1986, de 17 de julio, 1986. Disponível em: https://hj.tribunalconstitucional.es/HJ/es-ES/Resolucion/Show/SENTENCIA/1986/104. Acesso em: 23 nov. 2023.

[9] Desafios legais – uma abordagem multidisciplinar – Volume 1 /organização Américo Braga Júnior. – São Paulo : Editora Dialética, 2023.632 p. = (v. I)

[10] Disponível: https://analise.com/opiniao/liberdade-de-expressao-nos-eua-e-no-brasil-distincoes-e-semelhancas

[11] Disponível em: https://gife.org.br/liberdade-de-expressao-vale-tudo-ou-ha-limites/

[12] GHZ, Ciência e Tecnologia. Disponible en: https://gauchazh.clicrbs.com.br/tecnologia/noticia/2020/12/um-novo-estado-mais-ricas-do-que-muitos-paises-empresas-gigantes-da-tecnologia-sao-cobradas-por-suas-praticas-ckiudceo70001019woewvaey2.html.

[13] Disponível: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/04/07/apos-ameacas-de-musk-moraes-inclui-bilionario-entre-investigados-e-determina-que-rede-x-nao-desobedeca-ordens-judicias.ghtml

[14] Disponível em: https://jornaldebrasilia.com.br/blogs-e-colunas/analice-nicolau/ministra-carmen-lucia-enaltece-a-democracia-no-julgamento-dos-atos-antidemocraticos/

[15] Recurso Especial n. 600.737-SP

Autores

  • é advogado criminalista, palestrante, pós-graduado em Processo Penal, especialista em Teoria do Delito, mestre em Direito Penal, doutorando em Direito Penal, todos pela pela Universidad de Salamanca (ESP).

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