Opinião

Antiguidade é um critério neutro?

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25 de setembro de 2023, 14h22

Não sou entusiasta da escrita técnica, nem tenho a pretensão de desenvolver um trabalho científico. Nessa altura da vida, passada dos 50 anos de idade, filhos quase criados, pensando na comemoração dos 30 anos de carreira, dou-me licença às vezes para fazer o que gosto: contar histórias, trocar experiências.

Fazendo isso, percebo que não estou tão sozinha como frequentemente me sinto, e que muitas vezes caminhei sozinha apenas porque não percebi que havia gente ao meu lado. 

Entrei na magistratura de São Paulo em 1994. Como passei bem colocada, pude escolher ser juíza substituta em uma circunscrição próxima da minha casa. Teve quem precisou ir para muito longe, deixando para trás namoros, casamentos, família… Os homens não acompanhavam as mulheres, eram as mulheres que acompanhavam os homens. A vida era assim… Acho que ainda é um pouco. 

Perdi o primeiro concurso de promoção (distraída…), promovi no segundo por merecimento aproveitando a boa classificação, pensando em ficar perto de uma cidade grande onde eu pudesse morar e encontrar meu namorado sem causar muita fofoca. 

Durante o concurso me perguntaram tanto sobre as roupas que eu vestiria e sobre o meu entendimento sobre o uso de biquínis por jovens juízas que o escândalo de ser visitada pelo namorado foi um ponto a considerar… assim montei minha listinha de prioridades, que abrangia cidades separados por 600 quilômetros. 

A partir daí, merecimento ou antiguidade davam mais ou menos na mesma. Em São Paulo não havia (e ainda não há) outro critério para promoção além da sua posição na lista de antiguidade. 

Mas havia algumas especificidades interessantes: para se promover a varas abertas no merecimento, precisava "fechar a grade", ou seja, você tinha que se inscrever para todas as vagas disponíveis, e não havia publicação da grade de inscritos e nem possibilidade de desistência. Tinha quem era bom de cálculos e quem ficava na porta da sala que recebia as inscrições para protocolar a sua no último minuto. E quem topava qualquer lugar. 

Para mim, não dava. Sabe aquela cidade lá na fronteira onde o único lugar para você morar era a parada de caminhão? Pois é…

Também me perguntaram muito como eu faria numa cidade dessas onde juiz morava no fórum se houvesse um promotor morando no fórum também. Para uma conhecida perguntaram até o que ela faria se aparecesse uma barata no hotel.

Tenho tantas pérolas da entrevista reservada para contar…

Não é frescura, é questão do que era ou não viável para uma juíza mulher. Mudar sabe Deus para onde sem muita possibilidade de escolher pode ser ok para homem sozinho, mas para mulher, sobretudo com família, não é. 

Se solteira e sem filhos já foi complicado escolher onde ir trabalhar, depois, então… a lista de antiguidade vai passando na sua frente, porque simplesmente não dá para ir para qualquer lugar tendo marido e filho pequeno. Tem que ter alguém para cuidar do bebê, escola para colocar a criança, tem que ter estrada boa senão o marido não vai no fim de semana, ou o marido fica reclamando que você não veio.

Sem contar aquelas comarcas onde os mais antigos tinham a cara de telefonar para a mulher que pretendia se inscrever para alguma vara vaga dizendo que ali não era bem-vinda… pois é, vi isso sim, mais de uma vez. 

Meu jeito foi vir ser auxiliar da Capital. Na época, praticamente só juízes homens titulares, e para trabalhar como auxiliar em uma  vara era a convite do titular. Fórum criminal, onde eu queria trabalhar, não tinha nenhuma mulher titular de Vara, isso em pleno ano 2000. Ouvi tanto que vara criminal não era adequada para mulher que até cansei. 

Quase me desculpei com o juiz titular que eu auxiliava quando fiquei grávida… A cara que ele fez quando comentei da gravidez… Acho engraçado. Licença maternidade sempre achei que é direito de quem nasceu, não de quem pariu. Mas como incomoda os homens, né? 

Não era incomum que seu lugar não estivesse mais lá na volta da licença maternidade. Olhando hoje, vejo que era um medo comum às mulheres, que a gente nem pensava em compartilhar. 

Antiguidade de novo para ser titular de entrância especial, mas outra vez não dava para ir para qualquer lugar: filhos para levar e buscar na escola, ex-marido querendo delivery nos dias de visita, reunião de escola, pediatra, supermercado… E lá se vai de novo a lista de antiguidade passando na sua frente.

Meus colegas (homens) de concurso estão dizendo que está chegando a vez do nosso concurso ir para o segundo grau, mas olho a lista e vejo como minha vez está longe. Que coincidência do destino, a ponta da lista é quase toda masculina… Praticamente um acidente genético!

Você tem filhos? Tem pais idosos? Quem cuidou deles enquanto você andava pelo Estado, fazia mestrado, trabalhava longe? Se você é mulher, sua resposta deve ser bem parecida com a minha: não deu para andar pelo Estado, nem para fazer mestrado, não dá para ir trabalhar longe. 

Mas não foi minha escolha? Foi sim. Mas é justo que eu tenha precisado desescolher tantas coisas enquanto meus colegas homens puderam escolher tudo?

Então… neutralidade onde?

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