Opinião

Desafios do Senado na reforma tributária

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25 de setembro de 2023, 16h18

A Câmara dos Deputados aprovou no último mês de julho o texto base da PEC 45/2019, da proposta que visa reformar a tributação sobre o consumo no Brasil, com a substituição dos tributos atuais — PIS/Cofins, ICMS, ISS e IPI — por um modelo de IVA-Dual.

Em última análise, a reforma é pautada nos princípios da simplificação, transparência, justiça tributária, equilíbrio e proteção ao meio ambiente.

No novo modelo, os tributos atuais darão vez à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência dos estados e municípios, além de ao Imposto Seletivo (IS), que incidirá sobre a produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.

A Câmara também aprovou a possibilidade de instituição de contribuição, pelos estados e Distrito Federal, incidente sobre produtos primários e semielaborados, produzidos nos respectivos territórios.

Essa contribuição substituirá aquela destinada a fundos estaduais estabelecida como condição à aplicação de diferimento, regime especial ou outro tratamento diferenciado de ICMS prevista na legislação estadual em 30 de abril de 2023.

Com a aprovação, o texto-base foi encaminhado ao Senado no dia 3 de agosto para, nesta nova etapa, ser analisado pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) e encaminhado para nova votação.

Em vista de possíveis alterações, o Senado deverá analisar tópicos sensíveis, que foram objeto de discussões e debates tanto durante o trâmite na Câmara quanto após a sua aprovação.

Dentre os principais pontos de atenção, destacamos os seguintes:

1. Alíquotas
Como amplamente divulgado, as alíquotas do IBS e da CBS terão referência fixada por resolução do Senado, limitada à manutenção da carga tributária, tópico que a casa legislativa certamente deverá reavaliar.

Considerando a proposta de simplificação em face do atual sistema, não há um parâmetro de definição mínimo e máximo das alíquotas, o que poderá gerar a fixação de percentuais distintos por parte dos entes federativos em detrimento da propalada simplicidade, dado o efeito multiplicador de alíquotas.

Isso porque a União, cada estado e cada município terão autonomia para fixar, por lei, sua alíquota-padrão a despeito da alíquota de referência, de modo justificar a pretensa manutenção da autonomia federativa, mas que poderá gerar riscos de oneração demasiada das operações por alíquotas fixadas em padrões mais elevados.

Sobre o tema, as Emendas nº 01 e 03 [1] à PEC propõem a fixação de alíquota máxima de 25% e 20%, respectivamente. A Emenda nº 56[2] propõe ainda que sejam estabelecidas alíquotas progressivas, considerando o valor da transmissão de bens ou direitos como critério.

Há diversas [3] propostas de emendas à PEC que inserem benefícios, seja por meio de redução de alíquota, isenção ou concessão de crédito presumido aos mais diversos setores de comércio e serviços.

Nesse sentido, o Senado também deverá reanalisar a ampliação ou a restrição dos setores favorecidos por benefícios fiscais, vez que, inegavelmente, o aumento de tratamentos diferenciados ou exceções elevará a alíquota de referência dos novos tributos.

Em nota técnica [4] divulgada em 8/8/2023, o Ministério da Fazenda expôs os possíveis cenários para as alíquotas-padrão no novo modelo de tributação. Nela, as alíquotas combinadas de IBS e CBS seriam definidas em aproximadamente 20%, em um cenário factível sem a concessão de benefícios, e, em aproximadamente 27%, na hipótese de concessão de todos os benefícios atualmente previstos na proposta.

Fato é que o Senado deverá ponderar as propostas de aumento de setores beneficiados versus a definição e majoração da alíquota base padrão.

2. Simplificação do sistema
Também estará sob o crivo do Senado alguns critérios de cálculo e definição dos novos tributos, cujo objetivo é a transparência e a segurança jurídica aos contribuintes face à complexidade do atual sistema.

Dentre eles, a cobrança "por fora", na qual o IBS, o IS e a CBS não comporão suas próprias bases de cálculo. Referida disposição visa evitar discussões como a "tese do século", relativa à inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins (RE 574.706/PR).

Contudo, embora haja a previsão de apuração do imposto seletivo "por fora", a lei complementar poderá incluí-lo na base de cálculo do IBS e da CBS.

Eventual majoração do IS, sujeito apenas à anterioridade nonagesimal, também aumentará indiretamente o IBS e a CBS.

Sobre o tema, destacamos que a proposta de emenda nº 8 [5] prevê alteração no artigo 156, §6º, inciso II, para que o Imposto Seletivo seja excluído da base de cálculo do IBS e da CBS.

É bem verdade, por outro lado, que experiências globais demonstram que se trata de prática relativamente comum em países que já adotam o modelo de IVA, como forma de se evitar distorções e manter a neutralidade, a depender da cadeia de consumo.

Ainda assim, experiências passadas quanto a tal técnica no Brasil evidenciam a importância de que o Senado esteja atento aos efeitos decorrentes, principalmente frente a algumas incertezas a respeito desse tributo, em especial algumas indefinições a respeito de sua amplitude e materialidade, possibilidade de incidência múltipla e indefinição quanto ao regime de compensação.

3. Princípio do destino
O projeto também alterará a sistemática atual, deslocando a incidência tributária para o destino das operações, em vez da origem, como atualmente ocorre. Trata-se de iniciativa louvável sob o ponto de vista de se mitigar a guerra fiscal e distorções causadas por benefícios fiscais.

Entretanto, caberá à lei complementar definir critérios para conceituar o "destino". Atualmente, o conceito proposto pela PEC é vago, podendo ser local da entrega, da disponibilização ou da localização do bem, o da prestação ou da disponibilização do serviço ou o do domicílio ou da localização do adquirente do bem ou serviço.

A incerteza quanto à definição do "destino" poderá ser mais bem discutida pela casa legislativa, com a inclusão de critérios e parâmetros na própria PEC, de modo a evitar potenciais conflitos de competência e discussões quanto à constitucionalidade da lei complementar sobre o tema.

Nesse aspecto, a declaração de inconstitucionalidade por parte do STF, quanto à LC 157/2016 (ADI 5.835), evidencia a importância do tema para que se evite um novo contencioso.

4. Não-cumulatividade
Os critérios de não cumulatividade propostos, que visam garantir a neutralidade tributária, também poderão ser objeto de revisão.

Originalmente, o IBS e a CBS são não cumulativos, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial.

Caberá à lei complementar estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do imposto, bem como forma e prazo de ressarcimento de saldos credores.

A comprovação do recolhimento como condição para o aproveitamento do crédito traz complexidade ao sistema e vai na contramão da simplicidade pretendida pela reforma.

Ficarão excetuadas do direito ao crédito as operações destinadas ao "uso e consumo pessoal", nos termos de lei complementar. O conceito indeterminado e a ausência de critérios para defini-lo poderá dar margem à discussão.

Além disso, ainda não está claro se os regimes diferenciados, favorecidos ou específicos resultarão em distorções no princípio da não cumulatividade (acúmulo de créditos).

5. Benefícios fiscais e regimes diferenciados (específicos e favorecidos)
Em regime de exceção, a proposta traz alguns setores que ficarão sujeitos a regimes específicos, mediante definição em lei complementar, para alteração das alíquotas, base de cálculo, creditamento, entre outros aspectos.

Dentre os pontos de atenção relativos aos regimes específicos, destacamos a tributação monofásica dos combustíveis e lubrificantes, cujo recolhimento ficará concentrado na importação ou primeira saída. O direito ao crédito, por sua vez, será concedido apenas se os referidos bens forem classificados como insumos.

Referida sistemática expõe certa fragilidade na autonomia e no pacto federativo, pelo fato de que as alíquotas uniformes serão fixadas em lei complementar, com cumulatividade.

Também ressaltamos pontos sensíveis no regime específico aplicável aos serviços financeiros, que terão alíquota uniforme, incidente sobre percentual do faturamento ou receita da atividade.

A definição ampla dos fatos geradores, nos termos do artigo 10 da proposta, poderá dar margem à tributação de receitas obtidas a partir de juros e variações monetárias e cambiais e dificultar a apuração do valor agregado (spread).

O spread refere-se a todas as outras receitas não oriundas de tarifas, como os juros cobrados sobre os empréstimos, por exemplo.

Por fim, também destacamos que os regimes diferenciados não abrangeram alguns setores chave para a economia e defesa do meio ambiente, como, energias renováveis.

Com relação aos benefícios, a proposta prevê apenas a redução de alíquota em 60% ou 100%, isenções, alíquota zero (aplicável somente à cesta básica nacional) e créditos presumidos, com a extinção de todos os benefícios de ICMS, ISS, PIS, Cofins e IPI atualmente vigentes.

À exceção do ICMS, para o qual será instituído Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais e cujos saldos credores poderão ser aproveitados pelos contribuintes, não há mais definições quanto aos saldos credores e benefícios aos demais tributos.

6. Imposto seletivo
O imposto seletivo incidirá sobre bens de consumo que sejam prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, em linha com o excise tax, como já previsto em diversos países.

A subjetividade em sua definição abre margem para sua incidência sobre energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais.

Embora haja previsão expressa de que o IS não incidirá sobre bens e serviços com alíquotas reduzidas, alguns bens ou setores poderão ficar sujeitos ao referido imposto, como os defensivos agrícolas, por exemplo.

Sobre a questão, a Emenda nº 6 [6] sugere a tributação proporcional do Imposto Seletivo ao prejuízo causado pelo produto e a instituição vinculada à avaliação de impacto regulatório e consulta pública.

A Emenda nº 44 [7] propõe que o IS "poderá" ser não cumulativo e ter ad valorem ou específicas, tendo por base a unidade de medida adotada.

Agora, o Senado poderá definir, por exemplo, se o referido imposto ficará sujeito ao princípio da não cumulatividade, se poderá incidir em mais de uma etapa da cadeia produtiva e o início de sua cobrança, tópicos não abordados originalmente na PEC e de extrema relevância para os contornos do tributo e potenciais distorções decorrentes.

7. Contribuição estadual
Um dos tópicos de maior debate na proposta refere-se à possibilidade de instituição de Contribuição Estadual, pelos estados e DF, sobre produtos primários e semielaborados, até 31/12/2043, instituída pelo artigo 20 da Emenda Aglutinativa de Plenário.

A contribuição substituirá os atuais fundos estaduais, como o Fundeinfra, por exemplo, instituído em Goiás, mantido por taxas que recaem sobre o agronegócio e o setor de mineração.

A redação da PEC abre margem para a ampliação da cobrança a diversos setores, como produtos agropecuários e mineração. Também possibilita a cobrança sobre a etapa final das operações, inclusive sobre exportações.

As Emendas nº 15 e 40 propõem a supressão do artigo 19, que institui a referida contribuição. Por outro lado, a Emenda nº 41, sugere que a contribuição deverá ter as alíquotas incidentes sobre os produtos integrantes da cesta básica nacional de alimentos, originalmente reduzidas a zero, e que não incida sobre receitas de exportação [8].

Considerando a elevação provável da carga tributária com a contribuição, o tema deverá ser objeto de amplos debates no Senado, essencialmente por contrariar claros objetivos da reforma, como a transição para tributação no destino e a pretensa manutenção da carga tributária.

8. Regime de transição
Por fim, é importante que o Senado apare algumas arestas com relação ao regime de transição, para que alguns temas tenham melhor definição já no texto constitucional.

A votação da PEC é o momento ideal para que a deliberação sobre a transição seja realizada, vez que, durante ao menos dez anos, considerando o prazo original da PEC para 2033, haverá dois regimes em coexistência.

A Emenda nº 39 [9], por exemplo, propõe que durante o período da transição sejam disponibilizadas tecnologias e plataformas digitais que possibilitem transparência e controle social, de forma eficiente e operacional, ao registro, ao creditamento, aos benefícios fiscais, ao recolhimento e à repartição da arrecadação, entre os entes federativos.

Sobre o tema, também vale destacar a recente publicação da Lei Complementar nº 199/2023, por exemplo, que criou o estatuto de simplificação das obrigações tributárias deixou de fora alguns principais pontos das atuais obrigações, como a instituição da Nota Fiscal Brasil Eletrônica (NFB-e), da Declaração Fiscal Digital Brasil (DFDB) e do Registro Cadastral Unificado (RCU).

Também deve ser objeto de novos debates o prazo para a restituição dos saldos credores de ICMS, de 240 meses, e seu índice de atualização, após 2033, pelo IPCA e a falta de isonomia com pagamentos (Selic).

Os benefícios de ICMS vinculados à Zona Franca de Manaus também merecem melhor definição, assim como um prazo para os benefícios de IPI e PIS e Cofins, que sequer foram mencionados no projeto.

Considerando todos os diversos pontos críticos de debate e análise, cabe-nos aguardar os próximos capítulos sobre o tema, considerando o Plano de Trabalho [10] instituído pelo senador Eduardo Braga, que prevê a votação final do relatório no próximo dia 4 de outubro de 2023.

 


[1] De iniciativa dos senadores Efraim Filho e Rogério Marinho, recebidas em 08/08/2023.

[2] De iniciativa da senadora Eliziane Gama, recebida em 21/08/2023.

[3] Emendas nº 29 a 31 (senadores Carlos Viana e Angelo Coronel, 11/08/2023), 36, 37, 42, 43, 45 (senador Messias de Jesus, 14/08/2023), 47 a 50 (senadores Jader Barbalho e Messias de Jesus, 15/08/2023), 53 (senador Carlos Portinho, 15/08/2023), 60, 61 (senadores Carlos Viana e Angelo Coronel, 22/08/2023) 68 a 71, 73 a 76 (senadores Dr. Hiran e Laércio Oliveira, 23/08/2023), 79 e 80 (senadores Izalci Lucas e Carlos Portinho, 24/08/2023).

[5] De iniciativa do senador Rogério Marinho, em 08/08/2023.

[6] De iniciativa do senador Rogério Marinho, em 08/08/2023.

[7] De iniciativa do senador Messias de Jesus, em 14/08/2023.

[8] Propostas pelos senadores senador Carlos Portinho, em 08/08/2023 e Messias de Jesus em 14/08/2023.

[9] De iniciativa do senador Messias de Jesus, em 14/08/2023.

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