Segunda leitura

O jornalismo investigativo na solução de casos complexos

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

24 de setembro de 2023, 10h45

O jornalismo investigativo teve início nos anos 1950 nos Estados Unidos, quando reportagens começaram a criticar a participação do país na Guerra do Vietnã. Nos anos 1960, os administradores do prêmio Pulitzer, em 1964, consolidaram o jornalismo investigativo ao premiarem o jornal Philadephia Bulletin por uma reportagem investigativa que denunciava casos de corrupção policial na cidade.i

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Todavia o grande salto foi dado nos anos de 1972 a 1974, quando os jornalistas Carl Bernstein e Bob Woodward do jornal Washington Post, empenharam-se na descoberta de tentativa feita pelo Partido Republicano de instalar um sistema de espionagem na sede do Partido Democrata, fato este que ficou conhecido como Watergate e acabou resultando na renúncia de Richard Nixon à presidência da República.ii

A partir daí tal prática disseminou-se nos Estados Unidos e Europaiii, porém no Brasil demorou para entrar nas atividades jornalísticas. Há uma explicação para isto. Nos anos do regime militar exerceu-se o controle de publicações, músicas, livros, filmes, peças de teatro e outras atividades. Todas sujeitavam-se à aprovação da Divisão de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal. A fiscalização era exercida, predominantemente, pelos Departamentos de Ordem Política e Social, o DOPS da Polícia Civil dos estados.

A censura foi perdendo força a partir de 1974, ficou mais enfraquecida com a Lei da Anistia (nº 6.683/79) e foi proibida pela Constituição de 1988, conforme art. 5º, inc. IX.

É aí que nasce o jornalismo investigativo que direciona-se principalmente à descoberta de grandes casos de corrupção ou identificação de crimes não resolvidos. Nesta linha, o profissional precisa ter coragem, desprendimento, contatos em áreas diversas e bons conhecimentos de tecnologia da informação. Em determinadas situações terá que introduzir-se em ambientes frequentados pelos criminosos, pondo em risco a própria vida ou em ambientes sofisticados, onde risco pode não ser a vida, mas, nem por isso, será menos significativo.

O primeiro caso de jornalismo investigativo de grande repercussão no Brasil, foi a investigação de Caco Barcellos sobre a ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), segmento da Polícia Militar de São Paulo destinado a operações de maior relevância. As investigações foram feitas pouco após a Constituição Federal de 1988, portanto em período de forte arbítrio, remanescente das décadas passadas. O jornalista investigava mortes de pessoas na periferia da cidade de São Paulo, constatando que mais da metade das vítimas não tinha antecedentes criminais. Seu trabalho resultou no livro "Rota 66 — A História da Polícia que Mata", lançado em 1992iv, referência para os profissionais da área.

A partir daí o jornalismo investigativo passou a crescer em relevância. Atualmente há congressos sobre o tema, cursos especializados, como os oferecidos pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) v e livros, como Jornalismo investigativo: o fato por trás da notíciavi e No rastro da notícia.vii

Porém, o jornalista investigativo sujeita-se, frequentemente, a riscos. Em suas pesquisas ele se envolverá inevitavelmente com interesses contrariados e poderá, por óbvio, sofrer as consequências. O exemplo clássico é caso de Tim Lopes, cujo nome completo era Arcanjo Antonino Lopes, que em 2002 fazia investigações, por denúncia de moradores, sobre abuso de menores e tráfico de entorpecentes na Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro. Segundo revelaram as investigações policiais, Tim Lopes foi sequestrado, torturado, julgado e executado por traficantes, comandados por Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco,viii tendo sido assassinado cruelmente por fogo, após ser envolvido em pneus, processo conhecido por "forno micro-ondas".

Mais recentemente outro caso, desta feita na Amazônia, abalou a sociedade brasileira e teve repercussões internacionais. Em junho de 2022, o jornalista inglês Dom Phillips, praticava jornalismo investigativo em parceria com o indigenista brasileiro Bruno Pereira em Atalaia do Norte, Vale do Javari, oeste do estado do Amazonas. Pereira montou uma equipe de vigilância indígena contra a criminalidade na região, através da qual um indígena podia alertar a Polícia Federal, com o uso de drones e rádio comunicador, sobre a presença de estranhos na região.ix Ambos foram assassinados por traficantes da região, tendo sido presos os executores, mas não os mandantes.

Exclusivamente nesta área, é possível que a situação melhore, pois o Brasil aderiu ao Acordo de Escazú e este, no art. 9, incs. II e III, determina aos estados partes que tomem medidas adequadas e efetivas para reconhecer, proteger e promover todos os direitos dos defensores dos direitos humanos em questões ambientais, inclusive medidas apropriadas, efetivas e oportunas para prevenir, investigar e punir ataques, ameaças ou intimidações que ditos defensores possam sofrer.x Referido Acordo ainda não foi recepcionado pelo Direito brasileiro, porque depende do Presidente da República enviá-lo ao Congresso para ratificação. Todavia, imagina-se que isto venha ocorrer em breve tempo.

As provas obtidas por jornalistas investigativos, vez por outra, são analisadas pelo Poder Judiciário. O jornalista transita por área cujos limites nem sempre são claros, podendo ser ou passar de herói a vilão.

Assim, por exemplo, por vezes a prova obtida é acolhida e pode servir de forte elemento para que se alcance um resultado justo. O Superior Tribunal de Justiça julgou ser válida a prova obtida pela filmagem realizada por jornalista com envio do vídeo às autoridades, no qual servidores públicos aparecem extorquindo dinheiro em uma via pública, não consistindo tal fato ofensa à intimidade do acusado.xi

No entanto, na esfera cível há muitos casos de condenações ao pagamento de indenizações, por serem as informações consideradas deturpadas. Ocorre que, a maioria deles não é propriamente de jornalismo investigativo, mas sim de atuação jornalística de rotina, apontando fatos graves sobre pessoa física ou jurídica. Nas indenizações civis, portanto, tudo dependerá da prova, o que recomenda cautela dos profissionais da mídia. Vejamos dois exemplos.

O Tribunal de Justiça de São Paulo dando suporte ao jornalismo investigativo decidiu que A imprensa livre e independente é imprescindível à sustentação do regime democrático. A transmissão de informações corretas, a difusão de ideias, o amplo debate sobre as questões públicas, possibilita que as pessoas, destinatárias da informação, desenvolvam juízo crítico e formem livremente sua opinião.xii Já a Turma Recursal do Tribunal de Justiça do Paraná não aceitou críticas na mídia a uma mulher que exercia suas funções no Conselho Tutelar, afirmando ser Necessário esclarecer que a veiculação jornalística deve se prender ao relato fiel dos fatos, sem excesso que possa causar dano à honra e à imagem de pessoa, física ou natural. A liberdade de imprensa não se confunde com ausência de responsabilidade pela atividade.xiii

Finalmente, entra um aspecto essencial, sobre o qual pouco se fala ultimamente: ética profissional. Por óbvio o jornalista investigativo tem que pautar-se pela ética e, consequentemente, não seduzir-se pelo poder econômico, frear suas posições político-ideológicas, ser isento de paixões e não se deixar levar pela vaidade. Talvez este seja o aspecto mais difícil de todos, mas será ele que distinguirá o grande profissional do vulgar oportunista.


i Wekipedia. Jornalismo Investigativo. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jornalismo_investigativo. Acesso em 21 set. 2023.

ii CABRAL, Danilo Cezar. Super interessante. O que foi o escândalo Watergate? Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-o-escandalo-watergate. Acesso em 21 set. 2023.

iii Vide Vladimir Passos de Freitas, Polícia e jornalismo em Desaparecimento na Noruega. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 10 set. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-set-10/segunda-leitura-policia-jornalismo-serie-desaparecimento-noruega. Acesso em 21 set. 2023.

iv BARCELLOS, Caco. Rota 66 – A História da Polícia que Mata. São Paulo: Ed. Record, 21ª edição, 2003.

v ABRAJI. Disponível em: https://www.abraji.org.br/institucional/#quem-somos. Acesso em 22 set. 2023.

vi SEQUEIRA, Cleofe Monteiro de. Jornalismo Investigativo: o Fato por Trás da Notícia. São Paulo: Summus Editorial, 2005.

vii CABRINI, Roberto. No rastro da notícia. eBook Kindle. Disponível em: https://www.amazon.com.br/No-rastro-not%C3%ADcia-Roberto-Cabrini-ebook/dp/B07YQBHHVR. Acesso em 22 set. 2023.

viii EXTRA. Relembre a morte de Tim Lopes, torturado e executado por traficantes da Vila Cruzeiro. Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/relembre-morte-de-tim-lopes-torturado-executado-por-traficantes-da-vila-cruzeiro-24654674.html. Acesso em 22 set. 2023.

ix FREITAS, Vladimir Passos de. A morte de Dom e Bruno, o crime organizado e a perda de território. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 19 jun. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-19/segunda-leitura-morte-dom-bruno-crime-organizado-territorio. Acesso em 22 set. 2023.

 

x NAÇÕES UNIDAS. Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe. Disponível em: https://repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/29b2d738-4090-45c5-a289-428b465ab60c/content, p. 30. Acesso em 21 set. 2023.

 

xi STJ. HABEAS CORPUS Nº 118.860 – SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, j. 2 dez. 2010.

xii TJSP,Apelação Cível nº 1006050-77.2014.8.26.0020, 4ª. Câm. Direito Privado, rel. Des. Alcides Leopoldo, j. 15 jul. 2019.

xiii 1ª. Turma Recursal, RI: 201100038523 PR 20110003852-3 Relatora Juíza Cristiane Santos Leite, j. 19 mai.2011, 1ª Turma Recursal.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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