Opinião

O crime do cromossomo Y e as promoções na magistratura — parte 2

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23 de setembro de 2023, 9h22

Continuação da parte 1

Para todo problema complexo há sempre uma solução simples, plausível e equivocada [1].
Henry Louis Mencken

O CNJ iniciou o julgamento do Ato Normativo n. 0005605-48.2023.2.00.0000, que obrigará a abertura de promoções de magistrados com listas mistas e exclusivas de mulheres, "até o atingimento de paridade de gênero". Depois de cada sustentação oral — desde que favorável à proposta —, ouviam-se aplausos, como se a manifestação de torcidas fosse uma prática corriqueira em sessões judiciais.

Proclamados em tom laudatório, os votos até agora mostram que há risco de o julgamento ser apenas a "Crônica de uma Morte Anunciada", em que, assim como no romance de García Marquez, desde a primeira página o leitor sabe do assassinato de Santiago Nasar pelos irmãos Vicário [2].

Fiz ressalvas em relação à forma e ao conteúdo da norma. Evidentemente, não faltaram onipresentes críticas recheadas de argumentos ad personam, pois, ao ir para o lado pessoal, "abandona-se completamente o objeto e dirige-se o próprio ataque à pessoa do adversário", nos termos elucidados por Schopenhauer. A técnica é muito apreciada, "pois qualquer um está apto a realizá-la", independentemente do nível intelectual [3].  

Algumas críticas deveram-se ao fato de eu já ter escrito um texto sobre gênero. Deficitária a pesquisa dos meus algozes. Escrevi muito mais do que um. Num deles, publicado há dez  anos, ao discorrer sobre o fato de as mulheres aposentarem-se com idade inferior a dos homens, afirmei a necessidade de "iniciar a discussão sobre eventuais mudanças em determinados segmentos, notadamente naqueles preenchidos por mulheres de alta capacitação, ocupantes do topo da pirâmide salarial, que contam com regime próprio de aposentadoria e vitaliciedade em seus cargos".

Na ocasião, apontei que a Corte Constitucional da Bélgica, há quase 30 anos, assinalou ser a diferença uma "herança do passado" que não mais se justificava.[4] Informei, ademais, que a Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu, na década de 1970, que manter a aposentadoria das mulheres em idade inferior a dos homens seria uma atitude de paternalismo romântico. [5]

Levantamento de 2018, do Pensions Watch Database, mostra que, em 114 países pesquisados, apenas 20 ainda mantêm idades diferenciadas de aposentadoria por gênero.

Foi a questão por mim apontada como uma das possíveis causas de haver menos mulheres do que homens como desembargadores. Numa carreira longa, o exercício do direito à aposentadoria precoce, obviamente, retira mulheres da disputa. E a medida compensatória acarretará: (i) juízas promovidas antes; (ii) aposentadas mais cedo e, (iii) vivendo mais depois da inatividade. Pode ser que seja esse o modelo ideal de um mundo igualitário, mas o debate é necessário.

No julgamento, a relatora afirmou que "o percentual de 25,7% de mulheres nos cargos de 2ª instância é muito parecido com a média dessa participação nos dez anos anteriores à pesquisa (24,9%)". Foi o suficiente para concluir que, se o percentual de mulheres permaneceu estagnado, o motivo é a discriminação.

O mérito de ciência, porém,  está em abrir-se à revisão crítica e às conclusões que podem nos desagradar.[6] Basear-se em pareceres e estudos cuja conclusão já se sabe, de antemão, que irão apenas corroborar nossos desejos, não serve à nada além de pretexto para os impor. É o chamado viés de confirmação. [7]

É um erro confundir causação com correlação. Correlação testa apenas a relação entre duas variáveis. O fato de vê-las movendo-se juntas não permite inferir que uma decorre da outra. Para estabelecer a relação de causa e efeito entre duas variáveis é necessário perscrutar todos os possíveis fatores que fizeram as variáveis descreverem trajetórias semelhantes.

Uma mudança significativa no ordenamento jurídico, ocorrida na última década, foi desprezada, qual fora a EC nº 88/2015, que alterou o art. 40, § 1º, II da CF, aumentando de 70 para 75 anos a idade da aposentadoria compulsória no serviço público.

Para haver rotatividade na carreira, é preciso que os seus ocupantes se aposentem. Magistrados mais antigos estão concentrados no topo, e são, predominantemente, homens. Qualquer juiz minimamente informado sabe que quem suporta ficar até os 75 anos na magistratura, em regra, ocupa cargo elevado. Assim, não é difícil concluir que quando se eleva em 5 anos a idade de aposentadoria dessas personagens, atrasa-se a renovação dos quadros.

O postulado de que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço é uma verdade autoevidente, ensina Locke.[8] A impenetrabilidade da matéria é uma propriedade que nem os mais belos princípios constitucionais conseguem sobrepujar.

Mas a opção do constituinte derivado foi negligenciada ao investigar os motivos pelos quais o processo de reciclagem, com paridade de gênero, estacionou nos últimos dez anos. Não se perscrutou quantos desembargadores com 70 anos ou mais ocuparam e ainda ocupam uma vaga nos tribunais e qual o percentual de homens entre eles. Isso poderia gerar uma verdade inconveniente.

São ao menos dois, portanto, os mandamentos constitucionais que precisariam ser escrutinados para aferir seu impacto na ausência da paridade almejada: (i) as mulheres poderem aposentar-se antes dos homens e, (ii) o aumento da idade da aposentadoria compulsória, de 70 para 75 anos.

A relatora também sustentou que mulheres são "afetadas pela dupla jornada, ou seja, despendem mais tempo e energia que os colegas homens na vida doméstica e familiar". São vários os problemas dessa premissa.

O primeiro é que lhe falta o recorte interseccional, notadamente de renda. É preciso separar o Brasil real do Brasil oficial, conforme Machado de Assis.[9] Desigualdade social implica desigualdade de condições de vida. Para estar entre os 10% mais ricos, no Brasil, basta ganhar mais de R$ 3.422 mensais. E quem aufere rendimentos superiores a R$ 28.659 pertence ao privilegiado grupo do 1% de mais abastados, conforme pesquisa da Pnad denominada Rendimento de todas as fontes 2019 (p. 7).

Portanto, quem recebe subsídio de magistrado — sem contar os rendimentos do cônjuge — está no último degrau da escada social, ou seja, pertence à elite consumidora de serviços domésticos remunerados. Não há métrica comparável do tempo gasto com afazeres domésticos, por homens e por mulheres, entre membros da classe A e das classes D e E. Estabelecer ações afirmativas para juízas com base nas mesmas estatísticas que envolvem empregadas domésticas de juízas é um erro colossal.

Outro aspecto menosprezado foi o grau de escolaridade. "A realização de afazeres domésticos aumenta conforme cresce o nível de instrução, sobretudo entre os homens", aponta a Pnad em Outras Formas de Trabalho.  A quantidade de homens que realiza serviços domésticos é de 85,7% entre os que possuem ensino superior completo, e o Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros 2018, traçado pelo CNJ, informa que 92% dos cônjuges de magistrados possuem escolaridade alta (p. 17).

E a solução não é boa. Para efeito argumentativo, assumo como verídicas as premissas do voto. Por conseguinte, juízas atuam em dupla jornada, despendem mais tempo nas lides domésticas e isso prejudica as suas carreiras.

Ainda que tudo isso seja verdade, o problema está relacionado às liberdades individuais. Se uma juíza — no vértice da pirâmide social, financeiramente independente, com ensino superior completo e cuja profissão é decidir sobre a vida de outros — resolve, para a sua própria vida, casar-se e ter como parceiro alguém que não assume, em igual proporção, a responsabilidade pelos serviços domésticos e obrigações parentais, não me parece correto que o ônus da escolha individual por um arranjo patriarcal iníquo deva recair sobre os ombros dos juízes.

Casar-se é escolha. Ter filhos é escolha. Optar por um parceiro que não partilha obrigações é escolha. Permanecer com ele é escolha. E liberdade consiste exatamente no poder de realizar as próprias escolhas e no dever de pagar o preço por elas. "Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é"[10]. Usar os prejuízos dessas escolhas — feitas por mulheres intelectualmente privilegiadas e financeiramente independentes — como fundamento para nivelar desigualdades e comprometer carreiras alheias é errado.

O voto usa como metáfora uma corrida em que o homem corre em uma pista limpa, ao passo que a mulher corre numa pista com obstáculos. Entretanto, a resposta para isso não foi a remoção dos obstáculos. Foi tirar os homens da corrida. Como se não bastasse, foram tirados depois de 35 anos de corrida, ao, enfim, descobrirem que as regras promulgadas em 1988 eram inconstitucionais.

Sobre essa mudança de regras na promoção de magistrados, já disse o STF que "a norma vigente ao tempo da posse dos interessados acerca do critério de antiguidade deve prevalecer para todos os fins; posto gerar insegurança jurídica subordinar a lista de antiguidade a critério introduzido pelas alterações supervenientes" (STF, RMS 26.079, 1ª T, DJE de 12-4-2012).

Há, ainda, repetidas menções à provisoriedade da medida, como se isso fosse uma espécie de remissão de consciência. Trata-se de obviedade ululante, pois a transitoriedade é ontológica às ações afirmativas. Contudo, como a regra será a proscrição de juízes das listas, isso significa dizer: "Olha, ninguém, jamais, de nenhuma geração passada, pagou por essa injustiça que detectamos. No futuro, ninguém também jamais pagará por ela. Esse tributo é só seu. E será cobrado à vista".

Como a compreensão fenomênica foi parcial — porque, para ser global, seria preciso ouvir todos os lados —, a resolução obrigará os tribunais a equalizarem até mesmo aquilo que não está sob seu controle.  Isso porque um quinto dos lugares dos tribunais é composto por membros do Ministério Público ou advogados (CF, 94, caput). Sobre essas vagas, os tribunais recebem listas sêxtuplas dos respectivos órgãos de classe, e formam listas tríplices, para que o Poder Executivo faça a escolha (CF, 94, parágrafo único).

Dessa forma, a única maneira de o tribunal formar listas apenas com mulheres é obrigar o MP e a OAB a enviarem listas com, no mínimo, 3 mulheres. E se assim o fizerem, o artigo 94, parágrafo único da CF também estará revogado, pois a prerrogativa de os tribunais selecionarem três nomes será obliterada em listas paritárias. Eles não mais escolherão três de uma lista de seis, apenas repassarão Executivo os três nomes de mulheres. Para que o dispositivo não seja totalmente esvaziado de conteúdo, OAB e MP também deverão ser compelidos a remeter listas exclusivas.

Sobre inconstitucionalidades, aliás, além de o STF reputar violada a segurança jurídica quando as regras de promoção são modificadas durante o jogo, conforme mencionei alhures, há também uma gama de julgados que atestam a inconstitucionalidade formal da alteração, porque ela só poderia ser realizada por "lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal" (CF, 93, caput).

De acordo com a Suprema Corte, "a prerrogativa de elaborar o Estatuto da Magistratura, cometida ao STF pelo constituinte originário (artigo 93, caput, CF/1988), tem função constritiva da liberdade nomogenética dos tribunais" (STF, MS 28.447, DJE de 23-11-2011). Por isso "o Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência assentada no sentido da inconstitucionalidade, por violação ao artigo 93 da Constituição Federal, de normas estaduais, legais ou constitucionais, que disciplinem matérias próprias do Estatuto da Magistratura, em desacordo com ele ou em caráter inovador. Neste contexto, a Loman não consagrou" norma "que estabelece condições estranhas à função jurisdicional para determinar o desempate entre aqueles que estejam concorrendo à promoção por antiguidade". (STF, ADI 3.698, DJE de 15-8-2019).

Também já asseverou que "os juízes integrantes de vara especializada criada por lei estadual devem ser designados com observância dos parâmetros constitucionais de antiguidade e merecimento previstos no art. 93, II e VIII-A, da Constituição da República" (STF, ADI 4.414, DJE de 17-6-2013). E, há poucos meses, fixou tese de que "é inconstitucional norma estadual que fixa regras para aferição da antiguidade de magistrados em desacordo com o estabelecido na Lei Orgânica da Magistratura Nacional — Loman" (STF, ADI6762, DJE de 22-2-2023).

Num Estado democrático de Direito, espera-se que a Constituição, as leis e os precedentes qualificados tenham algum valor.

Independentemente do resultado do julgamento, ausência de debate assusta. Há uma divisão entre bem e mal que intimida. Curvar-se ao maniqueísmo sectário, porém, não é uma opção. É necessário apostar numa solução dialogada, pois "todo silenciamento de discussão é uma presunção de infalibilidade"[11]. Se eu discordo, não posso ser trucidado por expor as minhas ideias. "Acredito na resistência do mesmo que acredito que […] não pode haver sombra a menos que também haja luz" [12].

Ao CNJ, fica a admoestação de Sófocles: "não carregues em ti só uma morada da verdade: o que tu dizes, nada mais que isso. Quem julga deter saber exclusivo, possuir língua e mente estranhas aos demais, nesse, se o abres, verás o vazio. […]. Do nauta que firma resolutamente o pé e não arreda um passo, o barco vira e a viagem termina com o casco ao vento"[13].

E chegue logo, Helena. O mundo já não tem mais cor sem você. "Vejo um berço e nele eu me debruçar com o pranto a me correr. E assim, chorando, acalentar a filha que eu quero ter"[14].


[1] No original: “There is always a well-known solution to every human problem—neat, plausible, and wrong.” (MENCKEN, Henry Louis. Prejudices – Second Series. London: Jonathan Cape, 1921, p. 158).

[2] MARQUEZ, Gabriel García. Crônica de uma Morte Anunciada. Barcelona: Penguim, 2020.

[3] SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de ter Razão. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 75.

[4] BÉLGICA. Cour d’arbitrage. Arrêt 9/94, du 27 janvier 1994.

[5] EUA. U. S. Supreme Court. Califano v. Webster 430 U.S. 313 (1977).

[6] MCINTYRE, Lee. The Scientific Attitude: Defending Science from Denial, Fraud, and Pseudoscience. Cambridge: MIT Presse, 2009.

[7] NICKERSON, Raymond S. Confirmation bias: A ubiquitous phenomenon in many guises. Review of General Psychology, 1998, v. 2, n. 2, pp.  175–220.

[8] I think it is a self-evident proposition that two bodies cannot be in the same place.”(LOCKE, John. An Essay Concerning Human Understanding. Hazleton: The Pennsylvania State University, 1999, p. 587).

[9] Machado de Assis. Obras Completas. Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938.

[10] VELOSO, Caetano. Dom de Iludir. Totalmente Demais, Polygram, 1986.

[11] MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Campinas: Vide Editorial, 2018, p. 36

[12] ATWOOD, Margareth. O Conto da Aia. 1 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2021, p. 132.

[13] SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: L&PM, 2016, p. 51.

[14] TOQUINHO. O filho que eu quero ter. A luz do Solo. Polydor, 1985.

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