Opinião

Cada macaco no seu galho: o ministro Alexandre e o trabalho por aplicativos

Autor

  • Marcos Neves Fava

    é juiz do Trabalho titular da 1ª Vara de Vitória da Conquista (BA) no TRT-5 mestre e doutor em Direito do Trabalho pela USP e professor da Faculdade de Direito da FGV-SP.

21 de setembro de 2023, 13h19

A canção de Riachão ecoa o dito popular "Xô, xuá, cada macaco no seu galho/ o meu é na Bahia, o seu é em outro lugar".

O onipresente ministro Alexandre de Moraes, cuja atuação no TSE preservou valores democráticos preciosos, interferiu em decisões da Justiça do Trabalho na temática do trabalho por meio de aplicativos. Pela segunda vez ele suspendeu decisão que reconhecera a condição de empregado para esses trabalhadores.

Cria diversos problemas com isso.

A reclamação constitucional, instrumento utilizado na decisão, é muito restrita, pois serve a assegurar a "autoridade das decisões do STF". Nunca o STF decidiu o tema. O ministro diz que a Justiça do Trabalho estaria a descumprir a "tendência" do Supremo de reconhecer a possibilidade de relações diferentes às de emprego. Refere-se às decisões da Corte na ADPF 324 e na ADC 48. Na primeira, o debate é da possibilidade de terceirização irrestrita. Na segunda, do trabalho autônomo no transporte de cargas.

Nada de aplicativo: não há, portanto, decisão a ter sua autoridade "assegurada".

Decidir que no caso específico o motorista é empregado não viola a existência de outras modalidades contratuais disponíveis no sistema. Não significa dizer que todos os motoristas são empregados, nem que não são.

O contrato de emprego é um "contrato realidade", porque nasce da prestação dos serviços, sem formalidades prévias. Para verificar se uma relação de trabalho constitui emprego, é preciso apurar os fatos, coisa que um tribunal extraordinário não pode fazer. Quem analisa os fatos são os juízes de primeiro e os tribunais de segundo graus. Depois, apenas erros de Direito podem ser debatidos.

Observe-se o retumbante paradoxo: ao analisar os fatos do processo e eventualmente recusar a validade do contrato adotado pelas partes (de parceria, de franquia, de sociedade, de trabalho autônomo), a Justiça do Trabalho não está a dizer que essas modalidades contratuais não existem, ou que são inconstitucionais. A "tendência" a que alude o ministro em suas decisões, segundo a qual o STF reconhece a possibilidade de outras formas de contrato de trabalho, sem ser o de emprego, não está a ser sequer tangenciada, quanto mais ofendida, desatendida ou violada. Seria como dizer que, ao absolver alguém de roubo (artigo 157, Código Penal) o juiz negue a existência — ou a constitucionalidade — desse tipo legal. Alguém não roubar não extirpa o artigo 157 (do Código Penal) do ordenamento, como dizer que alguém não é PJ, ou autônomo, ou parceiro, ou cooperado, ou franqueado, não atesta inexistirem essas figuras. A matéria é de análise dos fatos, nos termos do artigo 9º, da CLT, que consagra o princípio protetivo da primazia da realidade.

No tema do trabalho, como parece de fácil percepção, a investigação dos fatos deve ser da Justiça do Trabalho, por atribuição expressa do artigo 114, I, da Constituição.

A considerar, ainda, o ímpeto do ministro e observado o volume de demandas com esse tema, que é crescente — segundo o Ipea, havia em 2020 mais de 1,9 milhão de trabalhadores nessa condição, o Supremo não fará mais nada a não ser analisar se o motorista é ou não empregado da plataforma, convertendo-se em tribunal de revisão trabalhista.

A questão não se mostra nada simples: convivem decisões judiciais em sentidos colidentes nos vários tribunais; manifestação controvertida sobre o assunto nos judiciários de outros países; o Legislativo brasileiro tramita diversos projetos de lei sobre esse vínculo; e o Executivo instituiu grupo de trabalho para propor regulamentação.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2021, fez publicar relatório da pesquisa em que ouviu mais de 12 mil trabalhadores em 100 diferentes países, de que uma das conclusões constata que as empresas de plataformas possuem uma folha de pagamento de funcionários que garante suas operações e administração, e uma grande lista de colaboradores autônomos que fazem a conexão entre as empresas e clientes, cuja relação de trabalho com a empresa digital é pouco clara.

Nesse ambiente de alta complexidade, apoiada num instrumento jurídico de cognição superficial, a decisão do ministro pulou no galho errado. Por enquanto, só a dele. A ver se as dos outros colegas não seguem seu caminho, o que tornará temerária a sobrevivência do galho.

E nesse caso, o galho da Justiça do Trabalho tutela miríades de trabalhadores, muitos deles em condição precária de instabilidade por falta de proteção contratual ou legal expressa.

Dormem em paz sob a árvore, enquanto isso, as empresas de plataformas, que não precisarão mais demonstrar nada, porque o ministro constatou que as decisões trabalhistas violam "tendência" do STF. Um mundo abstrato de suposições, por demais inadequado a enfrentar a dura realidade dos que trabalham para plataformas sem receber, muitas vezes, sequer salário-mínimo.

A tendência de o Supremo defender o prestígio sem limites da livre iniciativa e da autonomia da vontade privada dos contratantes, reconhecendo a validade de toda forma de contratação do trabalho, não pode ser tutelada pela afunilada via da reclamação constitucional. O próprio tribunal reconhece a inadequação:

"Agravo regimental em reclamação. Alegação de violação do entendimento firmado na ADI nº 6.025/DF. Reclamação que objetiva o reexame de decisão fundamentada no conjunto fático-probatório dos autos. Sucedâneo recursal. Impossibilidade. Agravo regimental não provido. 1. Por atribuição constitucional, presta-se a reclamação para preservar a competência do STF e garantir a autoridade de suas decisões (art. 102, inciso I, alínea l, da CF/88), bem como para resguardar a correta aplicação das súmulas vinculantes (art. 103-A, § 3º, da CF/88). 2. A reclamação não pode ser utilizada como sucedâneo de recurso ou de ações judiciais em geral, tampouco para reanálise de fatos e provas. Precedentes. 3. Agravo regimental não provido, com aplicação de multa (art. 1.021, § 4º, do CPC)" (Rcl 53.096-AgR, 1ª Turma, rel. min. Dias Toffoli, DJe de 26/10/2022).

A palavra jurisprudência contém em si a noção de que o acúmulo de experiências constrói a mais prudente posição jurídica. É resultado do trabalho alongado de diversos magistrados, em diferentes instâncias, por considerável tempo. Hoje o Tribunal Superior do Trabalho debruça-se sobre o tema, no exercício de sua competência constitucional. Apressar a jurisprudência fragiliza-a e a torna ferramenta de arbítrio e de limitação do acesso à ordem jurídica justa. Ninguém pode fazê-lo, menos ainda o tribunal a que a Constituição outorgou o dever de protegê-la.

Autores

  • é professor do FGVLAW, da Faculdade de Direito da FGV-SP, mestre e doutor pela Faculdade de Direito da USP e juiz do trabalho titular da 1ª vara de Vitória da Conquista (BA).

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