Opinião

Efeitos da variação cambial para equilíbrio econômico do contrato administrativo

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21 de setembro de 2023, 6h08

Em recente decisão, o Tribunal de Contas da União (TCU) reafirmou o seu entendimento de que a variação da taxa cambial, para mais ou para menos, não pode ser considerada suficiente para, isoladamente, fundamentar a necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo. Entenda em quais situações a variação cambial pode impactar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo e qual a importância da matriz de alocação de riscos prevista na na Lei 14.133/2021 para essa análise.

O contrato administrativo é um tipo específico de contrato estabelecido entre a administração pública e particulares (pessoas físicas ou jurídicas) com o propósito de cumprir uma finalidade de interesse público, como a realização de obras, a prestação de serviços, o fornecimento de bens ou a execução de projetos específicos.

Este tipo de contrato é regido por normas e princípios especiais, destinados a garantir a legalidade, a eficiência e a transparência nas contratações públicas.

Como em qualquer contrato, é possível que no curso da relação contratual surjam circunstâncias, previsíveis ou não, que impactam diretamente os custos envolvidos nas obras ou serviços, sendo necessária uma revisão, reajuste ou repactuação das condições contratuais, para que nenhuma das partes envolvidas sofra um prejuízo.

O reajuste de preços decorre de uma situação previsível que visa compensar variações inflacionárias que podem afetar os custos da execução do contrato ao longo do tempo, apenas podendo ser aplicado quando previamente estipulado no edital da licitação e no contrato, onde os índices a serem utilizados estejam devidamente claros e objetivos.

Já a repactuação é utilizada quando ocorrem variações significativas e imprevisíveis de custos, que não poderiam ser controladas pelo contratado, como nos casos de aumento ou diminuição de custos de insumos, salários, encargos sociais, entre outros fatores. A repactuação também requer previsão contratual e obedece a critérios específicos.

A revisão, por sua vez, não necessita de previsão em edital ou contratual para acontecer. Ela pode ser concedida a qualquer tempo ao longo do contrato, sempre que for necessária para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo.

O referido mecanismo pode ser utilizado quando ocorrerem fatos posteriores à contratação que: sejam imprevisíveis ou previsíveis, porém de consequências incalculáveis; decorrentes da ocorrência de caso fortuito ou força maior, ou por situações geradas pela Administração Pública, por atos legítimos, mas que causam impacto nos contratos.

Esses mecanismos têm como objetivo proteger o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, evitando que flutuações de preços ou custos prejudiquem excessivamente as partes envolvidas. Isso é especialmente importante em contratos de longo prazo, nos quais a volatilidade econômica pode ter impactos significativos.

Dentre os fenômenos que podem impactar diretamente o equilíbrio econômico-financeiro do contrato está a variação cambial que ocorre quando há mudanças nas taxas de câmbio entre as moedas utilizadas como referência no contrato.

Em um cenário de volatilidade econômica, as oscilações cambiais podem ter impactos diretos nos custos e nas receitas das partes envolvidas no contrato. No caso dos contratos administrativos, os efeitos da variação cambial podem ser particularmente desafiadores devido à natureza dos projetos e serviços prestados.

Tratando-se de um contrato que envolve a aquisição de insumos ou materiais importados, por exemplo, uma depreciação da moeda local pode aumentar os custos de produção do contratado. Isso pode levar a uma situação em que o contratado não consiga cumprir suas obrigações sem prejuízos substanciais, comprometendo a qualidade e a conclusão do projeto.

Por outro lado, o contratante pode ser afetado pela valorização da moeda estrangeira. Se o pagamento ao contratado estiver atrelado a uma moeda estrangeira, a valorização excessiva pode resultar em uma redução nos custos do projeto para o contratado, o que pode desequilibrar a relação contratual.

Ao longo dos anos, diversas discussões envolvendo o desequilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, ocasionadas por variações cambiais, foram submetidas ao Tribunal de Contas da União – TCU, que recentemente, por meio do julgamento do Acórdão nº 8032/2023 [1], reafirmou o entendimento de que:

"A variação da taxa cambial, para mais ou para menos, não pode ser considerada suficiente para, isoladamente, fundamentar a necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Para que a variação do câmbio seja considerada um fato apto a ocasionar uma recomposição nos contratos, considerando se tratar de fato previsível, deve culminar consequências incalculáveis(consequências cuja previsão não seja possível pelo gestor médio quando da vinculação contratual), fugir à normalidade, ou seja, à flutuação cambial típica do regime de câmbio flutuante e, sobretudo, acarretar onerosidade excessiva no contrato a ponto de ocasionar um rompimento na equação econômico-financeira, nos termos previstos no artigo 65, inciso II, alínea 'd', da Lei 8.666/1993. […] Nos contratos firmados em real que tenham por objeto principal a prestação de serviços no exterior, a variação cambial inesperada, súbita e significativa pode ser suficiente para fundamentar a concessão   reequilíbrio econômico-financeiro, mas apenas em relação aos insumos humanos e materiais adquiridos na localidade de prestação dos serviços, desde que possa retardar ou impedir a execução do contrato."

No entendimento do TCU o simples fato de haver uma variação cambial não é suficiente para fundamentar a necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. É necessário que a flutuação fuja à normalidade e que acarrete onerosidade excessiva a ponto de ocasionar o rompimento do equilíbrio econômico-financeiro.

Fica claro, assim, que em que pese a variação cambial possa ter um reflexo significativo no custo envolvido na contratação, não necessariamente o contratado terá direito a um revolvimento das condições contratuais, sendo necessária uma análise mais aprofundada de cada caso identificado.

É notório que apesar da Lei 8.666/93 prever mecanismos para preservar o equilíbrio econômico-financeiro da relação contratual em um momento posterior à assinatura do contrato, esse sempre foi um assunto de grande complexidade e que usualmente acaba sendo levado ao judiciário, demandando altos custos com o processo.

Foi pensando em situações como esta, que a Lei 14.133/2021 inovou ao prever a possibilidade da administração pública, desde a fase preparatória da licitação, prever no edital a matriz de alocação de riscos, especialmente para fins de cálculo do valor estimado da contratação [2].

Em que pese a discricionariedade da administração pública em prever a matriz de alocação de riscos no edital, para obras e serviços de grande vulto, assim consideradas aquelas cujo valor estimado supere R$ 200 milhões, a matriz de alocação de riscos é obrigatória por expressa previsão legal [3], revelando a importância de tal instrumento para evitar conflitos futuros no curso da relação contratual.

Além da previsão em edital da matriz de alocação de riscos, é importante que no próprio contrato tal instrumento seja devidamente utilizado, indicando com clareza quais os riscos a serem assumidos pelo setor público e os que serão assumidos pelo particular, considerando a capacidade de cada uma das partes para melhor gerenciar os riscos envolvidos na contratação.

A matriz de alocação de riscos é uma ferramenta que visa estabelecer, de forma clara e objetiva, como os riscos relacionados à execução do contrato serão distribuídos entre as partes envolvidas, ou seja, entre a administração pública contratante e a empresa contratada. Ela busca identificar e definir quais situações de risco serão de responsabilidade de cada uma das partes, a fim de evitar conflitos e controvérsias durante a execução do contrato.

A ideia por trás da matriz de alocação de riscos é promover a transparência e a equidade nas relações contratuais, permitindo que as partes tenham uma compreensão clara das responsabilidades e das consequências caso ocorram eventos inesperados. Isso contribui para uma gestão mais eficiente dos riscos, uma melhor previsibilidade dos resultados e, consequentemente, para a minimização de potenciais litígios.

A Lei nº 14.133/2021 introduziu a matriz de alocação de riscos como parte do processo de licitação e contratação, com o intuito de aprimorar a segurança jurídica e a gestão contratual no âmbito das contratações públicas. Por meio dessa matriz, as partes podem negociar e estabelecer de forma detalhada como os riscos serão tratados, quais serão os critérios de repartição de ônus e benefícios decorrentes de situações imprevistas, como atrasos, mudanças legislativas, eventos climáticos, entre outros.

É importante destacar que a matriz de alocação de riscos deve ser elaborada de forma criteriosa, considerando a natureza do contrato, o objeto da contratação, as partes envolvidas e as características do mercado. Além disso, ela deve ser elaborada de maneira transparente e devidamente documentada, a fim de assegurar a sua eficácia e o cumprimento das obrigações por todas as partes.

Para a situação específica da variação cambial, a previsão da matriz de alocação de riscos no edital e/ou no contrato é uma oportunidade de se materializar, especificamente, quais seriam as hipóteses que justificariam um pleito de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Neste instrumento, por exemplo, poderia ser previsto qual o percentual de flutuação cambial que a administração pública considera típica, e desde a fase preparatória da licitação, os interessados teriam conhecimento dos riscos envolvidos na contratação, optando por participar ou não da licitação.

É evidente que para se chegar a uma matriz de alocação de riscos condizente com a realidade, a administração pública e seus servidores terão que fazer um robusto estudo prévio para justificar os parâmetros utilizados, mas certamente na fase de execução do contrato, tal estudo pouparia não apenas recursos públicos, como também tempo de todos os envolvidos na contratação.

Vale ressaltar que esse mecanismo se aplica não apenas para a hipótese da variação cambial, objeto do presente artigo, mas também para qualquer outra hipótese que influencie no equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Diante de todo o exposto, é notório que a variação cambial é um fator que pode afetar significativamente o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos, representando um desafio tanto para o contratado quanto para o contratante. A previsibilidade e a estabilidade são essenciais para a execução bem-sucedida desses contratos, e a consideração das flutuações cambiais no planejamento e na gestão, especialmente com a adoção da matriz de alocação de riscos, expressamente prevista na Lei 14.133/2021, é crucial para mitigar os riscos e garantir o cumprimento das obrigações contratuais. A adoção de estratégias adequadas de proteção e mitigação pode ajudar a minimizar os impactos negativos da variação cambial e manter o equilíbrio econômico-financeiro ao longo da vida do contrato administrativo, afastando possíveis ônus financeiros às partes envolvidas.

 


[1] TCU. Acórdão 8032/2023 Primeira Câmara, Recurso de Reconsideração, relator ministro Benjamin Zymler.

[2] Artigo 22. O edital poderá contemplar matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado, hipótese em que o cálculo do valor estimado da contratação poderá considerar taxa de risco compatível com o objeto da licitação e com os riscos atribuídos ao contratado, de acordo com metodologia predefinida pelo ente federativo.

§1º A matriz de que trata o caput deste artigo deverá promover a alocação eficiente dos riscos de cada contrato e estabelecer a responsabilidade que caiba a cada parte contratante, bem como os mecanismos que afastem a ocorrência do sinistro e mitiguem os seus efeitos, caso este ocorra durante a execução contratual.

[3] Artigo 22, §3º Quando a contratação se referir a obras e serviços de grande vulto ou forem adotados os regimes de contratação integrada e semi-integrada, o edital obrigatoriamente contemplará matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado.

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