Opinião

Monitoramento de remédios antitruste: novos desafios para o Cade

Autor

  • Maria Cristina de Souza Leão Attayde

    é bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e autora de artigos e monografia nas áreas de concorrência e regulação.

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18 de setembro de 2023, 21h37

Um dos grandes desafios de autoridades antitruste é atingir um elevado grau de efetividade de suas decisões, compromissos ou acordos. Em particular, quando se trata de remédios antitruste, a atividade de monitoramento/fiscalização é um dos aspectos relevantes para a efetividade da aplicação de tais compromissos.

Resumidamente, pode-se dizer que remédios antitruste são restrições aprovadas por autoridades de defesa da concorrência para corrigir efeitos deletérios à concorrência, sejam oriundos de um ato de concentração (AC), sejam em casos de infração à ordem econômica advindas de condutas.

Quanto à classificação, de acordo com o Guia de Remédios Antitruste do Cade, remédios antitruste podem ser: estruturais ou comportamentais. Remédios estruturais implicam a transmissão definitiva de direitos e ativos. O § 2º do artigo 61 da Lei 12.529/2011 elenca alguns tipos de restrições estruturais de forma não exaustiva: (1) venda de ativos ou de um conjunto de ativos que constitua uma atividade empresarial; (2) cisão de sociedade e (3) alienação de controle societário.

Quanto aos remédios comportamentais, estes são mais indicados em casos nos quais os remédios estruturais não são suficientes para mitigar problemas concorrenciais de forma efetiva ou não serem efetivos por questões regulatórias ou fáticas, e.g., obrigações de concessão de acesso insumos considerados fixos, como por exemplo, infraestrutura com características de essential facility, tais como, redes de transporte ferroviário, de telefonia e telecomunicações, transmissão e distribuição de energia elétrica, entre outros.

Segundo o Guia de Remédios do Cade, boa parte das motivações favoráveis aos remédios comportamentais está associada, em geral, a integrações verticais, visto que tais remédios podem ser mais apropriados para preservar potenciais eficiências de um ato de concentração – e.g., redução de custos de transação e internalização de externalidades -, ao mesmo tempo que diminuem os riscos de fechamento de mercado.

Há inúmeros exemplos de remédios comportamentais: compromissos de não discriminação, metas/controle de quantidade de produtos e/ou serviços ofertados ao mercado, metas de qualidade de produtos e/ou serviços, compromissos relacionados à limitação de precificação, proibição de imposição de contratos de exclusividade, vedação de troca de informações comercialmente sensíveis (firewall) entre empresas fusionadas, entre outros.

Conforme está previsto na Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529/2011), os remédios antitruste podem ser negociados por meio do chamado Acordo em Controle de Concentrações (ACC) ou designados unilateralmente pelo Tribunal do Cade, em casos de atos de concentração; ou fazer parte de Termos de Compromisso de Cessação (TCC) em casos de infrações à ordem econômica.

Especificamente com relação a atos de concentração, remédios antitruste são considerados soluções intermediárias adotadas pela autoridade antitruste, entre a aprovação sem restrições de um ato de concentração e a total reprovação, que ocorre, neste último caso, quando não há a possibilidade de reverter os efeitos negativos constatados em um ato de concentração.

Em termos normativos, a função de monitoramento está prevista no artigo 52 da Lei 12.529/2011, o qual dispõe que o cumprimento das decisões do Tribunal do Cade e de compromissos e acordos firmados poderá, a critério do Tribunal, ser fiscalizado pela Superintendência-Geral (SG).

Nesse contexto, remédios antitruste trazem consigo obrigações de monitoramento/fiscalização pelo Cade, o que implica coleta e transmissão de informações que possibilitem acompanhar as obrigações descritas no remédio. A partir das informações obtidas no monitoramento, o Cade poderá avaliar o cumprimento ou não dos compromissos.

Destaca-se que, em outubro de 2018, foi publicado o citado Guia de Remédios Antitruste, que estabelece diretrizes relativas a procedimentos adotados no desenho, aplicação e monitoramento de remédios antitruste pelo Cade com o objetivo de dar maior previsibilidade e transparência em relação à atuação da autarquia.

No que tange a procedimentos de monitoramento, o guia destaca que este tipo de procedimento incorre em custos relativos à coleta, organização, envio e processamento das informações recebidas pelo Cade. Porém, estes custos de monitoramento podem ser minimizados por meio da delimitação de informações, a periodicidade do envio dessas informações e a participação de trustees de monitoramento [1].

Há casos, porém, em que o monitoramento é realizado pelo Cade ou por auditores cuja função é enviar relatórios periódicos, sem a necessidade de apresentar previamente um plano de trabalho, ao contrário de trustees.

Sob o enfoque das diretrizes do Guia, ao analisar a atividade de monitoramento empreendida pelo Cade, especificamente em atos de concentração aprovados mediante a celebração de acordos em controle de concentrações (ACCs) em período recente, ou seja, de 2016 a 2022, notam-se alguns avanços, em especial:

1º) A elevação no número de auditores externos caracterizados como trustees previstos em ACCs, o que atingiu no período citado 63% (25 dos 40 atos de concentração aprovados mediante ACCs). A previsão em ACCs de trustees implica uma relação mais estreita entre este tipo de auditor e a compromissária, visto que trustees, de acordo com o Guia, tem livre acesso à empresa, documentos, sistemas de informações, livros contábeis, pessoal, informações técnicas, entre outros recursos necessários para o perfeito monitoramento das obrigações. Essas prerrogativas permitem, a princípio, um elevado nível de segurança dos relatórios apresentados ao Cade por trustees.

2º) Aumento na adoção de remédios antitruste que requerem um sistema de monitoramento mais simplificado, em especial com relação a remédios estruturais, ou seja, desinvestimentos (alienação de ativos e direitos) realizados pela compromissária. Especificamente, no que tange ao tipo de comprador desses desinvestimentos, verificou-se que 41% dos casos (sete dos 17 atos de concentração que previram remédios estruturais com compradores [2]) referem-se a fix it first [3], o que requer, por sua vez, um sistema de monitoramento mais simples, pois a escolha deste tipo de comprador pode se dar antes da homologação do ACC ou no momento da homologação deste.

Acrescente-se que nesse período — 2016 a 2022 — de um total 3.342 atos de concentração analisados e decididos pelo Cade, 40 foram aprovados com a adoção de remédios antitruste mediante a celebração de acordos em controle de concentrações (ACCs) [4], conforme detalhado no gráfico abaixo.
 

Elaboração própria
Elaboração própria

 

Quanto à modalidade de remédios antitruste adotados, 20% adotaram remédios estruturais; 55% estabeleceram remédios comportamentais e 25% adotaram remédios estruturais juntamente com remédios comportamentais[5], de acordo com o gráfico a seguir.

Elaboração própria
Elaboração própria

 

Não obstante os avanços verificados, constatam-se possibilidades de aprimoramento da atividade de monitoramento por parte do Cade. Um dos pontos a ser destacado refere-se à transparência do processo de monitoramento que pode ser analisada sob 2 aspectos: (1º) a disponibilização em versões públicas de documentos — pareceres jurídicos e notas técnicas — que atestam periodicamente o cumprimento ou não dos remédios antitruste acordados ao longo do período de vigência do ACC; e (2º) a divulgação nos pareceres e notas técnicas, em versões públicas, do grau de segurança dos relatórios de monitoramento encaminhados ao Cade.

Com relação ao primeiro aspecto, no período analisado, ou seja, 2016 a 2022, a maior parte dos atos de concentração foi monitorada pela Procuradoria do Cade por meio da emissão de pareceres jurídicos que opinam, periodicamente, pelo cumprimento ou não dos compromissos acordados.

Com a recente Portaria nº 119, de 31 de março de 2022, que disciplina o fluxo interno a ser adotado nos processos de fiscalização do cumprimento das decisões, compromissos e acordos estabelecidos pelo Tribunal Administrativo do Cade, estabeleceu-se que cabe à Superintendência-Geral instruir e decidir, preliminarmente, sobre o cumprimento de remédios antitruste previstos nas decisões do Cade, com posterior envio à Procuradoria Federal Especializada junto ao Cade (PFE), para elaboração de seu parecer jurídico e remessa ao Tribunal Administrativo para decisão final, nos termos do artigo 9º, XIX, da Lei nº 12.529/2011[6].

Destaca-se a importância da emissão de pareceres e notas técnicas em versões públicas de forma a demonstrar o monitoramento periódico feito pela autarquia. Isso porque há casos em que a não divulgação ou a divulgação intempestiva de tais documentos pode caracterizar pouca transparência no processo de monitoramento [7].

Um outro aspecto da transparência do processo de monitoramento diz respeito aos relatórios periódicos a serem encaminhados pelo trustee à Autoridade Antitruste, conforme previstos na maior parte dos ACCs.

Esses relatórios estão previstos em cláusulas de ACCs e auxiliam o Cade no monitoramento do cumprimento dos remédios antitruste assumidos pelas compromissárias.

Nota-se que há casos [8] de envio, por parte de trustees de monitoramento, de relatórios cujo nível de segurança é limitado [9], o que pode comprometer o grau de segurança das conclusões quanto ao cumprimento pleno dos compromissos (remédios) estabelecidos.

Sugere-se, nesse sentido, que esses relatórios periódicos atendam a um grau de segurança mais elevado quando se trata de monitoramentos feitos por trustees. Isso porque, conforme prevê o guia, há um elevado grau de acesso a informações por parte destes junto às compromissárias, o que justifica a apresentação de relatórios com grau de asseguração mais elevado.

Apesar desses relatórios serem de acesso restrito, a informação quanto ao nível de segurança dos relatórios deve ser pública. Isso porque, além de não comprometer o necessário sigilo de dados/informações disponibilizados pelas compromissárias relativos ao cumprimento dos remédios, permite-se avaliar o grau de eficácia do monitoramento feito pela autoridade antitruste.

Por conseguinte, pode-se afirmar que a credibilidade de uma política pública está diretamente relacionada ao grau de transparência. Nesse aspecto, o monitoramento do cumprimento das decisões relativas a remédios antitruste, ao representar um importante instrumento de efetivação da política pública de defesa da concorrência, terá maior legitimidade quanto mais transparente for esse processo.

 


[1] Trustee de monitoramento: pessoa, natural ou jurídica, indicada pelas partes compromissárias e aprovadas pelo Cade cuja principal função é o monitoramento do cumprimento pelas compromissárias das condições e obrigações previstas no ACC – e.g., acompanhar/fiscalizar o processo de escolha de um comprador adequado; acompanhar o cumprimento das obrigações de fazer e não fazer no caso de remédios comportamentais; viabilizar o processo de venda do negócio objeto de desinvestimento, entre outros. (vide Glossário do Guia de Remédios Antitruste – Cade)

[2] O AC 08700.002569/2020-86 (Requerentes: Teksid S.p.A.; Tupy S/A), apesar de ter sido aprovado por meio de ACC o qual previu remédio estrutural, não houve compradores. Isso porque o remédio estrutural tratou de desinvestimento de contratos de fornecimento.

[3] Fix it first: é um tipo de remédio estrutural oferecido pelas Requerentes durante a fase de análise do AC, com definição do comprador e do pacote de ativos a ser alienado no momento anterior à aprovação do AC. É um remédio que pode prover mais flexibilidade às Requerentes no desenho de um pacote de desinvestimento. (vide Guia de Remédios do Cade)

[6] Na maior parte dos casos, tem havido concordância da SG e do Tribunal quanto ao conteúdo dos pareceres jurídicos encaminhados. Uma exceção é o caso Hapvida/Plamed (08700.001846/2020-33) no qual o Tribunal não concordou com as sugestões do Parecer Jurídico nº 105 (SEI 0975781) e não homologou o Despacho da Presidência (SEI 0990863), o que resultou na reprovação do ato de concentração.

[7] A título de exemplo no AC Itaú/Citibank (08700.001642/2017-05), houve a emissão dos seguintes pareceres jurídicos e notas técnicas em versão pública relativos aos relatórios anuais apresentados pela compromissária: Parecer jurídico nº 112 (SEI 0390928), de 29/09/2017; Parecer jurídico nº 150 (SEI 0425386), de 06/02/2018; Parecer jurídico nº 50 (SEI 1237396), de 23/05/2023 e Nota Técnica nº 8 (SEI 1226965), de 03/05/2023. Consultar: Sistema SEI https://sei.cade.gov.br/sei//controlador_externo.php?acao=usuario_externo_logar&id_orgao_acesso_externo=0 Acesso: 23/08/2023.

[8] Vide Parecer Jurídico nº 55 (SEI 0726087) – versão pública – relativo ao ACC Itaú/XP (08700.004431/2017-16): (…) "Os relatórios são tempestivos. Quanto ao conteúdo, todos são uníssonos – guardadas as limitações de escopo de um relatório de assecuração [sic] limitada – em atestar o adequado cumprimento dos compromissos elencados pelas cláusulas 3.5.1 e 3.5.2." (…) [grifo nosso]

[9] De acordo com a Norma Brasileira de Contabilidade, NBC TO 3000, de 20/11/2015, a natureza, a época e a extensão dos procedimentos executados em trabalho de asseguração limitada são restritos (menos extensos) quando comparados com os que são necessários em trabalhos de asseguração razoável, mas são planejados para obter um nível de segurança que seja, no julgamento profissional do auditor independente, significativo. Disponível em: https://www2.cfc.org.br/sisweb/sre/detalhes_sre.aspx?Codigo=2015/NBCTO3000 Acesso: 27/07/2023.

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