Opinião

O crime do cromossomo Y e as promoções na magistratura

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18 de setembro de 2023, 10h27

Lasciate ogni speranza voi ch'entrate[1]
Dante Alighieri

Dante e Virgílio chegam ao pórtico do inferno, avistam a seguinte epígrafe: "Deixai toda esperança vós que entrais". A metáfora apresenta o pior lugar já concebido pela humanidade como aquele em que não se pode esperar nada, pois separar alguém até mesmo da sua esperança – do latim, spes [2] — em algo positivo, faz cenários desabarem e tudo começa a entrar "numa lassidão tingida de assombro".[3]

Está na pauta de julgamentos CNJ, de 19 de setembro de 2023,  o Ato Normativo nº 0005605-48.2023.2.00.0000, que obrigará a abertura de promoções de magistrados, por antiguidade e por merecimento, com listas mistas e exclusivas de mulheres, "até o atingimento de paridade de gênero no tribunal". A ironia fica por conta de a norma a ser aprovada alterar a Resolução CNJ n. 106/2010, que "dispõe sobre os critérios objetivos para aferição do merecimento para promoção de magistrados".

Assim, o critério objetivo mais valioso, doravante, será o critério subjetivo do par de cromossomos sexuais. Se você é detentor de um Y, o jogo pode estar acabado. Confira a distribuição de vagas por gênero em seu tribunal: se a quantidade atual de "duplos X" for pequena, você pode nunca ser promovido, pouco importa que essa aleatoriedade genética — o seu sexo biológico e o dos desembargadores — esteja totalmente fora do seu controle. É um jogo de sorte. Alea jacta est.

A carreira de muitos homens — lembrando que "carreira" pressupõe mobilidade — simplesmente terminou. Estes, como bons "defuntos-vivos", silenciam, por temerem ser trucidados pelo politicamente correto. As demais personagens dessa distopia parecem sair da obra de Tolstói, ao narrar o enterro do juiz Ivan Ilitch: aquele que não terá prejuízo — porque há em seu tribunal o percentual imposto de desembargadoras — experimenta "um sentimento de alegria pelo fato de que morrera um outro e não ele". E quem se  beneficia olha para o caixão e pensa na "influência que essa morte pode ter sobre as transferências ou promoções tanto dos próprios juízes como dos seus conhecidos"[4]

Todavia, esse mutismo temeroso precisa cessar, porque, consoante ensinamento de Mill, censurar a liberdade de expressão é um roubo à raça humana, à posteridade, à geração presente e, principalmente aos que discordam da ideia, muito mais do que os que a apoiam. "Se a opinião estiver correta, são privados da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se estiver errada, perdem […] a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade, produzida por sua colisão com o erro".[5]

Por isso, exporei minhas ressalvas, ainda que seja apenas para ser contraposto.

A primeira é de ordem legal. É quase um truísmo afirmar a inconstitucionalidade do ato, mas a ocasião exige repetir platitudes. Nem sob tortura o texto constitucional confessa que as promoções e o acesso aos tribunais não são por antiguidade e merecimento (CF, 93, II e III), e que o acidente genético de ser mulher torna alguém mais merecedor de uma promoção ou mais antigo na carreira.

Ainda que o CNJ tenha competência para emitir regras primárias "até que entre em vigor o Estatuto da Magistratura" (EC nº 45/2004, 5º, § 2º), todas elas devem observar os princípios do artigo 93 da CF (isso está expresso no caput). Mas eis que surge um "princípio-coringa" — e é paradoxal que quem apela a princípios sempre se esqueça que a legalidade também o é (CF, 5º, II c/c 37, caput) — e o conteúdo normativo passa a ser moldado a partir da conveniência do intérprete.

Invoca-se a dignidade humana e outros cânones vagos a uma situação particular, e o texto expresso e específico da lei, como garantia do Estado de Direito, de nada vale. Poder-se-ia sustentar que a medida tem por escopo estabelecer a isonomia material de gênero. O problema é que a Constituição fixa as diretrizes dessa isonomia, a menos que se esqueça que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição" (CF, 5º, I), ou seja, o constituinte detalhou as prescrições a serem trilhadas para alcançar a igualdade.

A segunda ressalva é de pressuposto. A "igualdade material" consiste em colocar pessoas no mesmo ponto de partida, não no mesmo ponto de chegada. Ainda que se afirme que juízas — que já ingressaram na magistratura e possuem vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos (CF, 95, I, II e III) — são prejudicadas na corrida por uma promoção, a correção dessa anomalia dá-se ao proporcionar a elas as mesmas oportunidades.

Foi exatamente o que disse a Corte Europeia de Justiça ao decidir Kalanke v. Freie Hansestadt Bremen — um caso que previa promoções automáticas de mulheres toda vez que dois candidatos fossem igualmente qualificados e não existisse, no setor, ao menos metade de mulheres.

O ato normativo, entretanto, faz o oposto. Ele obriga a resultados iguais. Exige promoções por merecimento "até o atingimento da paridade de gênero", ou seja, impõe um controle absoluto dos fatos da vida a ponto de exigir 50% de homens e 50% de mulheres. Só se consegue esse tipo de igualdade de modo arbitrário.  E "uma das grandes ironias de como as democracias morrem é que a própria defesa da democracia é muitas vezes usada para a sua subversão".[6]

Isonomia não significa metade homens, metade mulheres em tudo. Não quer dizer igualdade matemática. É possível enfileirar uma série de estatísticas prejudiciais aos homens. A população carcerária no país, por exemplo, é composta de 95,75% de homens.[7] As vítimas de homicídio, em 2019, foram 91,77% de homens.[8] Homens suicidam-se cerca de 4 vezes mais do que as mulheres no Brasil.[9] [10] A expectativa de vida de um brasileiro ao nascer é de 73,6 anos, e de uma brasileira 80,5 anos.[11] Homens representam 82,34% dos óbitos em acidentes de trânsito[12] e 70% das vítimas de infarto no Brasil.[13] E ninguém quer igualar isso sob o signo da igualdade de resultados.

É paradoxal a conclusão de que (i) homens e mulheres são absolutamente iguais e, por isso, devem ter resultados iguais; (ii) a sociedade é machista e patriarcal e, (iii) os homens saem-se pior do que as mulheres em uma infinidade de fatores.

A terceira ressalva é à ausência de um método válido que permita a intelecção de que o “problema” constatado seja fruto de discriminação. É errado não discernir correlação e causalidade. Exemplo: se os dados mostram que ocorrem mais crimes nos locais onde a presença de policiais é maior, tenho uma correlação. Mas não posso, apressadamente, estabelecer, a partir dessa correlação, uma relação de causa e efeito, para concluir que, como há mais crimes nos locais mais policiados, a polícia é a causa dos crimes. Isso é um erro epistemológico. [14]

É necessária uma análise mais detida das informações para afirmar que o número inferior de desembargadoras se deve à discriminação de gênero. Huff, em Como Mentir com Estatística, adverte que "às vezes o que está faltando é o fator que ocasionou uma mudança". "A omissão permite insinuar que outro fator — mais desejado por quem realizou a pesquisa — é o responsável.[15]

A magistratura é uma carreira longa. Chegar a desembargador, atualmente, exige, na melhor das hipóteses, cerca de 30 anos de magistratura. E um detalhe importante foi negligenciado: historicamente, as juízas puderam aposentar-se cinco anos mais cedo do que os juízes, com apenas 30 anos de serviço.[16] É evidente que essa possibilidade fez com que muitas deixassem a magistratura antes de alcançar o cargo. Não é possível ter tudo de melhor de todos os mundos: aposentar-se mais cedo e conquistar um cargo que exige longevidade. E com uma terceira benesse: em todos os países da OCDE e do G20 as mulheres têm uma sobrevida pós-aposentadoria sensivelmente maior que a dos homens. No Brasil, ela é de 5,7 anos.[17]

A ação afirmativa proposta, então, consiste em a mulher: (i) ser promovida antes; (ii) aposentar-se primeiro e, (iii) ter muito mais tempo de vida depois de aposentada.

A quarta ressalva diz respeito aos dados, em si. O CNJ é o órgão central de administração de mais de 90 tribunais, e, muitas vezes, distribui regras sem considerar peculiaridades. Falarei do universo da Justiça do Trabalho. Melhor ainda, deixarei que o CNJ (p. 18) fale por mim: "na Justiça do Trabalho, a atuação das magistradas vem aumentado desde 1988, quando a participação feminina era de 37,3%". "Durante os últimos dois anos as mulheres representaram 49,4% dos juízes em atividade e, em 2018, superou a metade do quadro, atingindo 50,5% quando avaliados somente os magistrados ativos"[18]

Com a palavra, agora, o TST: "segundo dados divulgados no mês passado pela Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, 50,4% dos magistrados na primeira instância (Vara do Trabalho) são mulheres. A proporção entre os servidores no primeiro grau também é equilibrada: 49,9% dos cargos são exercidos por mulheres. No segundo grau (Tribunais Regionais do Trabalho), 41,3% dos magistrados são desembargadoras".

Veja que as informações convergem no sentido de um aumento constante da participação feminina no Poder Judiciário, sem a necessidade de exterminar carreiras. Nesse contexto, nada justifica a providência, ao menos na Justiça do Trabalho.

A quinta ressalva ao ato diz respeito ao deficit democrático. É surpreendente que uma mudança dessa magnitude, que atingirá praticamente todos os tribunais do país, não tenha sido previamente debatida. Nenhum tribunal foi ouvido.  Pelo contrário. Contratou-se um parecerista com a ideia de produzir diligências de ratificação e não de investigação. Essa falha é denominada viés de confirmação — confirmation bias.[19] Não se deseja debater, pois “sustentar uma dúvida é um trabalho mais árduo do que passar suavemente a uma certeza”.[20]

O próprio parecerista contratado destaca que a consulente o procurou relatando uma "grave assimetria de gênero na ocupação de cargos judiciais no Brasil" e que "a simples passagem do tempo e a ausência de obstáculos formais para o acesso de magistradas aos tribunais de 2º grau não têm sido suficientes para tornar mais igualitária, na perspectiva de gênero, a composição dessas cortes". Observe-se que já se tem o diagnóstico, a causa e a cura. Almeja-se apenas a chancela de autoridade.

Entretanto, mudanças legitimam-se pelo procedimento democrático dos debates, de modo que os resultados obtidos por este caminho tenham, a seu favor, a suposição de aceitabilidade racional. É o procedimento, segundo Habermas, o que fundamenta a legitimidade do direito.[21] No paradigma da comunicação, os participantes são levados a especificar suas posições a tal ponto que, de acordo com Luhmann, a decisão possa representar razoavelmente as suas expectativas. [22]

Não se constroem boas decisões a partir de uma única narrativa. "Quando rejeitamos a história única, quando percebemos que nunca existe uma história única sobre lugar nenhum, reavemos uma espécie de paraíso." [23] Essa percepção exige superar o mito da igualdade matemática, porque isso é brigar com a realidade. Pesquisas mostram que, mesmo nos países com maior grau de igualdade de gênero — refiro-me especificamente aos escandinavos —, existe uma afinidade maior dos homens em determinadas profissões e das mulheres em outras. [24]

Normas que promovam a clivagem entre magistrados de acordo com o gênero fragmentam uma classe — segundo o interesse pessoal de cada envolvido — que precisa muito de união. Medidas compensatórias que ofereçam igualdade de oportunidades são democráticas. As que imponham igualdade de resultados são autoritárias quando todos os atores partem do ponto em que já são juízes, com todas as garantias legais.

Espero que o CNJ tenha esse discernimento, ou que "alguém me defenda da bondade dos bons". Do contrário, ficarei, como na metáfora kafkiana, a ver a minha porta da justiça fechar-se depois de 25 anos de espera inútil.[25]

Que o mundo que te espera nos próximos dias lhe seja melhor e mais justo, Helena. Para alegria do meu imenso e desmedido amor, que vai além de seja o que for.


 

[1] DANTE ALIGHIERI. La Divina Commedia. Firenze: Societa editrice fiorentina, 1845, p. 213.

[2] FARIA, Ernesto. Dicionário Latino-Português. 1. Spes, spei.

[3] CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2023, p. 27.

[4] TOLSTÓI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. São Paulo: Editora 34, p. 8-9.

[5] MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Campinas: Vide Editorial, 2018, p. 35.

[6] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 94.

[7] Ministério da Justiça e Segurança Pública. Secretaria Nacional de Políticas Penais. Dados Estatísticos do Sistema Penitenciário. Período de JANEIRO a JUNHO de 2023. 14º ciclo de coleta.

[8] IPEA. Atlas da Violência. Violência por gênero. 2019.

[9] Idem. São 10,2 suicídios a cada 100 mil homens e 2,73 suicídios a cada 100 mil mulheres.

[10] Não ignoro o “paradoxo do suicídio”. Aliás, ele serve para corroborar a tese de como a análise superficial pode levar a conclusões equivocadas.

[11] IBGE. Tábua Completa de Mortalidade 2021. Homens/Mulheres.

[12] IPEA. Atlas da Violência. Violência por gênero. 2019.

[13] HCOR. Associação Beneficente Síria. Cerca de 30% dos casos de infarto têm mulheres como vítima.

[14] PERSONS, Warren M. The correlation of economic statistics. In: American Statistical Association, 12 (92), 1910, p. 287.

[15] HUFF, Darrell. Como mentir com Estatística. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016, p. 144.

[16] Lcp. n. 35/1979, 74.

[17] OECD (2021). Pensions at a Glance 2021: OECD and G20 Indicators, OECD Publishing, Paris.

[18] BRASIL. CNJ. Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário. 2019, p. 27.

[19] NICKERSON, Raymond S. Confirmation Bias: A Ubiquitous Phenomenon in Many Guises. Review of General Psychology. (2), jun./2008, pp. 175–220.

[20] KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 146.

[21] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre facticidade e realidade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 191

[22] LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, p. 66.

[23] ADICHE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 32.

[24] OECD (2023), Education at a Glance 2023: OECD Indicators, OECD Publishing, Paris

[25] KAFKA. O Processo. São Paulo: Via Leitura, 2020, p. 181.

 

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