Opinião

Descoberta extemporânea de ativos após a extinção empresarial

Autor

  • Leonardo Relvas

    é advogado empresarial pós-graduado em Direito Societário e Contratos Empresariais pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) especialização executiva em Direito Contratual e Direito Imobiliário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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14 de setembro de 2023, 16h24

A pessoa jurídica é considerada uma unidade autônoma onde congregam os sócios para desempenhar determinado objeto social previamente acordado entre ambos. Tal autonomia visa precipuamente a segregação patrimonial entre bens pessoais dos seus constituidores e o capital social voltado aos riscos da iniciativa privada e da atividade econômica. A própria legislação reconhece este fato (artigo 49-A, parágrafo único, CC) [1].

Sob tal premissa, é natural que estas entidades cumpram os fins a que se destinam e, pelo advento de variados motivos, encerrem suas atividades formalmente perante o registro público, com regular liquidação e apuração de haveres, completando o ciclo de empresa legalmente previsto.

Infindáveis artigos e decisões perquirem a responsabilidade dos ex-sócios quanto aos débitos e obrigações assumidas ao tempo do funcionamento da empresa, assim como suas repercussões na esfera patrimonial pessoal de cada um, mas constata-se situação oposta quanto a créditos e ativos havidos por "jacentes", uma vez constatada a extinção da pessoa jurídica titular destes valores.

Em tese, as instituições financeiras custodiantes têm a obrigação de informar e depositar no Banco Central os chamados "valores a receber" desde 2021, quando normativa da autarquia federal estabeleceu o procedimento em vigor até a presente data, embora não haja uma previsão de sanção pelo seu descumprimento (Resolução BCB nº 98/21 c/c Instrução Normativa BCB nº 123/21).

A realidade prova, entretanto, que considerável quantia de ativos e bens ainda não contam com este controle de custódia, não raro descobrindo pessoas físicas e jurídicas valores em instituições financeiras e suas equiparadas onde no passado estabeleceram-se relações de correntismo, câmbio, investimentos, ou qualquer outra que demandasse os serviços legalmente prestados (artigo 1º, Lei nº 7.492/86).

No caso de pessoas físicas, é fácil concluir que a legitimidade para reaver estes valores é do próprio titular que mantinha a relação jurídica com o ativo em questão. Havendo o falecimento do então legitimado e encerrado o inventário, tal direito quanto aos bens descobertos é transmitido aos herdeiros através do procedimento de sobrepartilha (artigo 2.022, CC).

A situação muda de figura quando o titular do ativo havido por descoberto é empresa cujo encerramento de suas atividades já foi promovido perante a Junta Comercial ou Registro Civil, junto com o cancelamento da inscrição também na Receita Federal.

Observe a hipótese de empresa imobiliária que aufere aluguéis advindos do acervo de imóveis que possui em seu próprio nome, mas que em processo de liquidação não inventaria todos os bens, havendo um por descoberto quando os procedimentos de extinção da empresa já foram implementados. O registro imobiliário é de fato da empresa, embora não haja mais que se falar em personalidade jurídica para a disposição e gestão do ativo, haja vista que o procedimento de liquidação (incompleto) já se perfez.

Em situação semelhante, tem-se empresa de exploração do mercado de valores mobiliários que constata patrimônio não contabilizado e levado ao conhecimento dos então sócios do empreendimento quando de sua descoberta ou fiscalização por terceiro. Tal ativo jazia em instituição financeira custodiante que apenas detinha o patrimônio em questão, pois em nome da pessoa jurídica extinta.

O TJ-ES (Tribunal de Justiça do Espírito Santo) teve a oportunidade de se pronunciar a respeito desta questão, decidindo que a extinção da pessoa jurídica finaliza definitivamente sua existência como entidade autônoma, com a perda da capacidade de ser parte em processo ou procedimento que objetiva reivindicar os ativos havidos por "jacentes". Mesmo a rerratificação do distrato social não permite readquirir a capacidade necessária para retornar aos atos de liquidação [2].

Noutro giro, o TJ-PR (Tribunal de Justiça do Paraná) conta com julgado de que a baixa da sociedade perante a Junta Comercial e a Receita Federal, cessa a capacidade civil, tornando-a inapta para ser titular de direitos e obrigações sob qualquer espécie, pois encerra formalmente sua existência legal [3].

Em ambos os julgados, a conclusão é logicamente pela sucessão dos outrora sócios para reaver estes ativos e responder pelos passivos, tornando a responsabilidade, outrora da pessoa jurídica, agora de si mesmos, pelos efeitos que naquela deveriam ter-se operado por completo e não o foram. Uma adaptação talvez da disregard doctrine, pois se esta preceitua que o patrimônio particular dos sócios responde pela reparação dos danos causados em determinadas hipóteses, também se aplica a créditos e ativos pendentes, na forma da lei.

Neste sentido, forçoso concluir que não há, no ordenamento jurídico atual, hipótese extraordinária de "ressurreição transitória" de pessoa jurídica quando definitivamente destituída de sua autonomia e encerrado seus atos em registro competente. Muito embora, não há também julgados em tribunais superiores até o momento e tampouco recursos repetitivos, o que também denuncia o terreno arenoso em que se vê a matéria.

Mesmo sob esse desfecho, não se pode conceber que a situação não seja digna de resolução. Pode-se, nesta ocasião, ajuizar ação mandamental para a concessão de tutela positiva de transferência do patrimônio jacente para os ex-sócios na medida de sua participação no capital social, com a apresentação em juízo de todos os documentos comprobatórios quanto à dissolução (jurisdição esta voluntária). Concedida a tutela, o registro imobiliário ou entidade custodiante devem ser obrigados à averbação/transferência do patrimônio sob nova titularidade.

É necessário, contudo, buscar a superação da cultura de judicialização no país. Tal hipótese só deve ser considerada após a frustração extrajudicial das tratativas. Nada impede que o oficial de cartório possa proceder à averbação, fazendo constar as circunstâncias apresentadas com legítimos documentos quando cristalino o direito [4], enquanto a instituição financeira custodiante dos ativos mobiliários possa utilizar quaisquer documentos, quando em conformidade com o ordenamento (ata de assembleia, distrato, termo de liquidação, certidões negativas de débito) se assim julgar que guarda conformidade com as normas do sistema financeiro nacional. Não devem as partes permanecerem à mercê do Judiciário quando ausentes regramento estrito e houver consenso quanto à procedimentalização do tema, pelo próprio imperativo de legalidade que existe na Constituição Cidadã.

No mais, a ausência de consenso e debate sobre a descoberta de ativos após encerramento empresarial é matéria que ainda suscitará grandes dúvidas em julgados e consultas, não podendo impedir que o particular seja despido de seus direitos enquanto não há resposta adequada.

 


[1] Artigo 49-A. Parágrafo Único: A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação de todos.

[2] TJES, Classe: Apelação, 0007071-80.2016.8.08.0006, relator: Jorge Henrique Valle dos Santos, Órgão julgador: 3ª Câmara Cível. Data de julgamento: 07/08/2018; TJES, Classe: Apelação, 0002479-56.2017.8.08.0006, 2ª Câmara Cível. Data de julgamento: 16/10/2018.

[3] Apelação Cível nº 0000144-73.2022.8.16.0133,

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  • é advogado empresarial, pós-graduado em Direito Societário e Contratos Empresariais pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR), especialização executiva em Direito Contratual e Direito Imobiliário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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