Opinião

Confiança como fundamento para responsabilizar meios de comunicação

Autor

  • Farley Soares Menezes

    é advogado mestre em Direito Constitucional pelo IDP doutorado em Direito professor da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) chefe do Departamento de Direito Público Substantivo da Unimontes secretário geral adjunto da Comissão de Direito Tributário da OAB/MG e oresidente da Associação Mineira de Direito do Estado (Amide).

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14 de setembro de 2023, 17h18

Na sociedade moderna, caracterizada pela ampliação da complexidade [1], cresce cada vez mais o número de processos indenizatórios acerca de informações divulgadas pelos meios de comunicação social, decorrência da ampla influência que esses exercem nas atitudes da população. Em certa medida, eles criam uma agenda temática suficiente para influir na avaliação dos agentes políticos, na construção e destruição de reputações e de influenciar no grau de importância que as pessoas atribuem aos fatos divulgados. Esse fenômeno é conhecido com agenda setting, teoria acerca do efeito social da mídia, que busca compreender a seleção, a incidência e a disposição de temas que levarão o público a falar e a discutir.

Mário Rosa [2] relata com precisão diversos casos nos quais matérias jornalísticas produziram crises de imagens de pessoas que levaram anos para construir uma marca detentora de credibilidade e que, numa fração de segundos, restou completamente desmantelada, ao serem alvos de notícias ou reportagens que destruíram carreiras e empresas até então sólidas. Os meios de comunicação, na era da sociedade em redes, conseguem extrair fragmentos da alma humana, elementos da personalidade, e levá-los a milhões de pessoas em segundos.

Se por um lado os meios de comunicação ostentam essa capacidade para construir percepções, por outro lado existe uma crise que os atinge e que tem produzido um quadro de redações cada vez mais enxutas, com profissionais generalistas, que necessitam produzir matérias relevantes, atuais, inéditas e que despertem o interesse do público alvo, mas que não dispõe mais do adequado tempo, na medida em que pautas não são mais elaboradas com a necessária antecedência e com o tempo suficiente para apuração e produção da notícia.

Matérias elaboradas às pressas, com a pretensão tão somente de tornar a "informação significativa, relevante e envolvente" [3], afetam significativamente a imagem das pessoas atingidas, com a divulgação de notícias inverídicas ou quando verídicas divulgadas com desproporcionalidade, o que acaba por favorecer ou prejudicar os envolvidos.

Essas notícias, veiculadas em jornais impressos, em telejornais e pelo sistema de rádio são transplantadas automaticamente para sites e perfis das redes sociais e acabam sendo reproduzidos em uma escala gigantesca pelos destinatários das informações.

Qual deve ser o papel do jornalista e qual a sua responsabilidade? Induvidosamente o compromisso do jornalista deve ser com a verdade e com o destinatário da matéria divulgada. Essa missão exige caráter, independência e lealdade com o seu público alvo.

Para cumprir a sua função, o jornalista é destinatário de prerrogativas, como a possibilidade de utilizar fontes que são preservadas pelo sigilo, por isso mesmo a missão de fornecer informações às pessoas para compreenderem o mundo exige responsabilidade, na medida em que os destinatários tendem a confiar nas notícias que são produzidas pelos meios de comunicação social, de sorte que é um direito da sociedade que as informações disponibilizadas sejam de qualidade, especialmente quando oriundas das emissoras de rádio e de televisão que constituem uma atividade de visível interesse social, exercida sob regime especial, razão pela qual devem obediência a determinados princípios (artigo 221 da CF) e não podem ser objeto de monopólios e oligopólios (artigo 220, §5, da CF).

Neste prado, afigura-se evidente a existência de um conflito entre o direito à informação e o direito à intimidade, e duas perguntas se descortinam: quando haverá o dever de indenizar e qual a modalidade de responsabilização deve alcançar os meios de comunicação que veiculam notícias e reportagens?

Os meios de comunicação e a comunicação como um processo multiplicador
Em sua obra a Realidade dos meios de comunicação [4], Niklas Luhmann rejeita as teorias que reconhecem na comunicação um processo de transferência, onde se desfaz da informação e se pressupõe que a informação transmitida é a mesma que foi recebida. Para o autor alemão, a comunicação é um processo multiplicador, que possui a nota da seletividade que é construída na própria comunicação.

Neste texto adota-se parcialmente o conceito de comunicação social formulado por Luhmann [5], com um recorte que alcança apenas a divulgação de notícias e reportagens que utilizam meios técnicos para reprodução e difusão da comunicação. O conceito aqui adotado contempla a fabricação de produtos de grande quantidade e que se voltam para um público indeterminado, como, por exemplo:

a) Jornais, revistas, livros e reprodução fotográfica;

b) Comunicação pelo rádio, desde que acessível a todos e que não se volte para a realização de comunicação entre participantes individuais;

c) Notícias e reportagens divulgadas por emissoras de televisão e por canais que se utilizam de plataformas na internet.

Assim, somente a comunicação que resulte de uma fabricação industrial e onde não ocorra nenhuma interação entre o receptor e o emissor, de sorte que a "disponibilidade para comunicar e o interesse em sintonizar" [6] não sejam centralmente coordenados é que será alcançada pelas conclusões que aqui serão formuladas.

O poder dos meios de comunicação
Os meios de comunicação, ao criarem conteúdo compreensível, não se limitam a transferir informação, há um constante fazer e refazer e para tanto se utilizam de formas  imagens, narrativas, vídeos, entrevistas , que funcionam como um suporte que ligam a comunicação.

Embora exista na sociedade uma certa descrença nos meios de comunicação, pois não são destinatários de confiança plena, na medida em que há uma suspeita de manipulação e que "aquilo que sabemos sobre nossa sociedade, ou mesmo sobre o mundo no qual vivemos, o sabemos pelos meios de comunicação" [7], como destaca Luhmann, e ainda que possamos aplicar a etiqueta do duvidoso somos obrigados as nos basear no conhecimento extraído dos meios de comunicação, na medida em que eles se reorganizam e se consolidam nas nossas consciências, como uma verdadeira duplicação da realidade. 

Os meios de comunicação dedicam significativo espaço em sua programação para veiculação de notícias e reportagens e o fazem elaborando e processando informações, valendo-se de técnicas como a dramatização e de termos linguísticos com a pretensão de transmitir aos destinatários a ideia de que sejam corretas, verdadeiras e mesmo naquelas situações em que se jogam luzes sobre uma informação falsa, é reservado ao jornalista a oportunidade de se defender transferindo o erro às fontes ou a causas externas, embora essa possibilidade não tenha o condão de afastar o dever de investigação e apuração prévias.

Nas notícias e reportagens os jornalistas tendem a priorizar a informação que se revela como uma surpresa, marcada pela descontinuidade. Jornalistas também preferem conflitos, pois são temas que provocam tensão e despertam a incerteza, e procuram atrair a atenção dos destinatários valendo-se de dados quantitativos que impressionam.

Contudo, poucos temas ganham relevância na seleção dos jornalistas como a transgressão do direito, especialmente as transgressões morais e ao politicamente correto. É nesse campo, onde surgem os grandes escândalos e em diversos casos as formas selecionadas para a multiplicação da informação produzem nos destinatários o sentimento de indignação, capazes de induzir até mesmo a construção de discursos de ódio [8].

Afigura-se evidente que os meios de comunicação possuem poder, detém o controle das seleções que realizam, especialmente quanto à forma como divulgarão notícias e reportagens e, ao difundirem informações, reúnem força suficiente para destruírem reputações.

O debate sobre a aplicação da responsabilidade civil aos meios de comunicação
O fato da lei de imprensa ter sido afastada em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal em razão da sua incompatibilidade com a Constituição, por ocasião do julgamento da ADPF nº 130, não eliminou o debate acerca da aplicação da responsabilidade civil objetiva aos meios de comunicação, até porque esse tema já ocupava espaço anteriormente a esse marco histórico.

Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, que introduziu em seu artigo 927 a responsabilidade objetiva para as atividades de riscos, surgiu o debate acerca do enquadramento ou não atividade dos meios de comunicação no conceito de atividade de risco.

Ressalte-se, também, que a positivação no artigo 5º da Constituição do direito à ampla indenização, à proteção da honra, à intimidade, à vida privada e à imagem das pessoas acabou por ampliar substancialmente a propositura de ações indenizatórias contra os meios de comunicação social.

Nessa temática, merece destaque o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 984.803-ES [9], quando se firmou, em essência, o seguinte entendimento acerca da responsabilidade civil da imprensa televisiva:

a) É imperioso que se demonstre a falsidade da notícia ou a ausência de interesse público e que a liberdade de imprensa seja exercida de modo abusivo e com excessos;

b) O dever de veracidade é inerente à liberdade de informação e dados falsos manipulam em vez de informar;

c) Para eximir-se de culpa o veículo de comunicação deve exercer atividade investigativa, ouvir fontes fidedignas, permitir às diversas partes a oportunidade para se manifestarem.

Contudo, para o STJ, esse dever de investigação não significa que a cognição deva ser plena e exauriente, como ocorre em juízo.

Quem controla a situação não necessita de proteção, mas tem o dever de gerar confiança
As decisões produzidas no âmbito judiciário brasileiro acerca da responsabilidade dos meios de comunicação parecem desconsiderar que as sociedades de risco inseriram a confiança como problema fundamental para a redução ou aumento da complexidade [10].

Esse aumento da complexidade (excesso de informações no ambiente) maximizou a tarefa do sistema de comunicação social de reduzir a complexidade do mundo por meio da divulgação de informações confiáveis, com ampliação da expectativa confiável dos destinatários das notícias e reportagens, pois esses produtos interferem cada vez mais na tomada de decisões pelas pessoas.

Neste cenário de excesso de informações, a seleção da verdade é tarefa reservada, em primeira plaina, aos meios de comunicação, cujo papel na sociedade deve ser o de filtro inicial, que processa dados por meio de investigação, do acesso a fontes que podem ser preservadas e que possuem acesso aos acontecimentos em primeira mão.

Os meios de comunicação são destinatários da confiança dos informantes e ao receberem uma infinidade de dados que devem ser selecionados, se submetem a uma certa exposição ao risco no exercício do controle, ou seja, são destinatários supremos das informações e, no manejo de ferramentas investigativas que lhes são próprias, não necessitam confiar, mas tão somente confirmar.

A desnecessidade de uma cognição exauriente, como preconizou o STJ, impõe o redobrado dever de cautela em suas divulgações, de modo a realizar o autocontrole das notícias e reportagens por meio de elementos de provas, depoimentos fidedignos, oitiva de todos os lados, com a observância da proporcionalidade no conteúdo divulgado e mediante a adoção da igualdade de método no uso das técnicas de divulgação.

Os meios de comunicação possuem supremacia sobre as notícias/reportagens, definem dentro da liberdade que lhes é assegurada pela Constituição a escolha do que será e como será divulgado, por isso não necessitam confiar e não necessitam de proteção, mas a eles é imputada a atribuição de gerar confiança e por isso mesmo devem responder objetivamente pela confiança gerada, pois cumprem a tarefa de suprir a deficiência informativa da sociedade.

Quando os meios de comunicação veiculam inverdades, multiplicam informações com exagerada dramatização, conferem excessiva relevância àquilo que pode configurar transgressão do direito, aí incluídas as transgressões morais ou ao politicamente correto e tem como pauta quase que exclusivamente a pretensão  de transmitir a ideia de que estão revelando surpresas e conflitos, valendo-se, para tanto, de dados quantitativos distorcidos, por exemplo, com a produção de escândalos e destruição de imagens e reputações, atuam com desprezo pelo risco que é inerente à atividade e por isso mesmo devem responder objetivamente.

 

 


[1] LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p 90 ss.

[2] ROSA, Mário. A era do escândalo: lições, relatos e bastidores de quem viveu as grandes crises de imagem. São Paulo: Geração Editorial, 2033.

[3] KOVACH, Bill; ROSENSTEL, Tom. Os elementos do jornalismo: o que os jornalistas devem saber e o público exigir. Tradução Wladir Dupont. São Paulo: Geração Editorial, p. 226.

[4] LUHMANN. Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Tradução Ciro Marcondes Filho. São Paulo: Paulus, 2005.

[5] Idem, p. 16.

[6] Idem, p. 17.

[7] Op. Cit. p. 15-16.

[8] GILBERTO, Schafer; LEIVAS, Paulo Gilberto Gogo; SANTOS, Rodrigo Hamilton. Discurso de ódio — Da abordagem conceitual ao discurso parlamentar. RIL Brasília a. 52 nº 207 jul./set. 2015 p. 143-158.

[9] Recurso Especial nº 984.803-ES (2007/0209936-1), Relatora Nancy Adrighi, Julgamento 26 de maio de 2009. Documento 886843 — Inteiro Teor do Acórdão — Site Certificado — DJE: 19/08/2009.

[10] LUHMANN, Niklas. Confianza. Trad. Amada Flores. Anthoropos. Santiago: Universidade IberoAmericana, 1966, p. 14.

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  • é advogado, mestre em Direito Constitucional pelo IDP, doutorado em Direito, professor da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), chefe do Departamento de Direito Público Substantivo da Unimontes, secretário geral adjunto da Comissão de Direito Tributário da OAB/MG e oresidente da Associação Mineira de Direito do Estado (Amide).

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