Opinião

Avaliação de impacto legislativo: por uma PGE responsiva e dialógica

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14 de setembro de 2023, 6h32

É consabido que atos normativos de qualidade conferem maior correção e segurança jurídica às relações sociais e evita que cidadãs e cidadãos, administrações públicas e empresas fiquem submetidos a encargos inúteis, que representam tempo e dinheiro [1]. No âmbito europeu, por exemplo, de acordo com o Relatório Mandelkern, elaborado pelo Grupo de Alto Nível para a Melhoria da Qualidade Legislativa constituído pela Comissão Europeia, estima-se que a carga legislativa represente entre 2% e 5% do PIB [2].

No Brasil, ainda é incipiente a preocupação com os custos legislativos e a qualidade das leis e atos normativos. No estado de São Paulo, sobre não ser diferente, inexiste, dentre as suas políticas públicas, a salutar avaliação de impacto legislativo, o que geraria considerável economia de recursos públicos e privados que se desperdiçam com leis caprichosas, desnecessárias, ininteligíveis, onerosas ou inconstitucionais. 

Afinal  ensina Carlos Blanco de Morais [3] , trata-se de "processo analítico fundado em bases científicas e técnicas que informa o decisor legislativo sobre os efeitos potenciais ou efectivos das leis, nomeadamente em termos dos seus custos, benefícios, riscos e praticabilidade administrativa"; processo que "pressupõe a utilização de métodos de recolha, tratamento e análise de dados que permitem, quer a antecipação dos efeitos susceptíveis de serem produzidos por um acto legislativo em preparação (análise prévia de impacto), quer o exame das consequências reais de uma lei entrada em vigor, de modo a informar o decisor sobre se esses efeitos são compatíveis com os seus objetivos normativos (análise sucessiva)", com vistas à "aferição da sua qualidade e eficiência".

Os oito anos de promulgação da Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (LOPGE [4]) constituem formidável oportunidade de reflexão sobre o assunto, em especial sobre o instituto da revisão das leis como meio de aperfeiçoamento do sistema normativo.

Dentre as várias ópticas possíveis de abordagem da questão, sobrelevam a ausculta e a participação dos administrados (destinatários da legislação), por serem fatores de legitimação democrática dos atos do Estado, propiciarem informações precisas quanto à aplicabilidade, eficácia, efetividade e economicidade dos atos normativos, desvelarem lacunas, imprecisões técnicas e outras insuficiências e apontarem ações que devem ser levadas a cabo para o seu aprimoramento e consecução de maior responsividade administrativa.

A consulta  observa o citado Relatório Mandelkern [5]  há de ser percebida "como uma interacção entre os organismos responsáveis e as partes susceptíveis de ser afectadas ou de estar interessadas nos actos normativos em questão"; "um meio de progredir para uma maior abertura da gestão pública" e de garantir "uma acção normativa de melhor qualidade", visto que "confere legitimidade democrática ao acto normativo (graças à possibilidade dada aos cidadãos de participarem no debate público); é também um meio de reforçar a confiança do público em relação ao resultado final e às instituições que produzem os actos normativos" e de "despertar um sentido de pertença" às partes consultadas, "instrumento que lhes permite moldar os actos normativos".

Sendo a Procuradoria Geral do Estado (PGE) uma das Funções Essenciais à Justiça, integrada por agentes públicos que respondem pelos mesmos deveres funcionais e se situam, quanto à formação profissional e competência técnica, em pé de igualdade, uma particularidade impõe ser desde logo ressaltada: todos, Procuradoras e Procuradores do Estado, como operadores do direito e destinatários centrais das normas orgânico-funcionais da LOPGE, revelam-se colaboradores qualificados no seu processo de avaliação sucessiva de impacto.

Pela sua fidedignidade, seus relatos, impressões, vivências, experiências, queixas, sugestões, expectativas, frustrações e dificuldades contribuem, de modo singular, para o desenvolvimento institucional. A exposição de problemas e a ponderação coletiva de soluções cooperam, proveitosamente, para o alcance dos ajustes necessários.

É certo que a gestação do então anteprojeto de Lopge ilustra a ausência de avaliação governamental ex ante, seja pela absoluta inexistência de prognósticos, de dados estatísticos acerca do "estado da PGE" e de marcadores de economicidade, eficácia, eficiência e efetividade das medidas constantes da proposição legislativa; seja pela exiguidade do prazo estabelecido para apresentação de sugestões; seja pela realização de audiências sem qualquer registro documental aberto e público das propostas e críticas nelas veiculadas ou da presença daqueles que a elas compareceram; seja por óbices [6] impostos à transparência e ao conhecimento da versão final do anteprojeto por parte dos interessados [7].

Esse quadro, contudo, não impede, a partir de agora  com a devida serenidade e esperada retidão , adequações e melhorias democráticas do diploma que disciplina a estrutura, a organização e o regime  jurídico da Advocacia Pública, instituição estatal que cuida de assuntos da mais alta relevância republicana, haja vista as funções que lhe foram constitucionalmente reservadas, dentre as quais a de representação judicial e a de consultoria e assessoramento jurídico do Estado.

Como ensina Miguel Reale, "o Direito autêntico não é apenas declarado mas reconhecido, é vivido pela sociedade, como algo que se incorpora e se integra na sua maneira de conduzir-se", de modo que "a regra de direito deve (…) ser formalmente válida e socialmente eficaz" [8].  Assim, as leis não devem apartar-se da realidade; com ela, sempre haverão de estar intrinsecamente relacionadas.

Por conseguinte, tocará a todos os atores que detêm competências legislativas típicas e atípicas (parlamentares e chefe do Poder Executivo) promover e manter diálogos com a sociedade, a fim de conhecer as suas demandas e colher as informações sobre o mundo fenomênico, providências imprescindíveis à construção de soluções legais eficientes, eficazes, efetivas e econômicas para os problemas que se apresentam.

Sobrepairam em importância, como dito, a ausculta e a participação dos administrados no processo de avaliação e revisão das leis, que agora têm status constitucional [9].

Cabe indagar: as escolhas legislativas positivadas na LOPGE produziram os efeitos desejados e se mostraram adequadas?  Quais foram os benefícios e/ou prejuízos verificados?  Como a PGE tem sido gerida?  Quais as consequências e os custos da aplicação da lei?  Como tem sido avaliada a sua execução pelos administrados e pelos agentes públicos?  Quais dados estatísticos comprovam os avanços e/ou os retrocessos institucionais?  A nova conformação orgânico-estrutural da PGE colaborou para o aprimoramento da defesa do interesse público, a diminuição e a prevenção da litigiosidade, a desjudicialização, a internalização administrativa de questões definidas pelos tribunais superiores, a resolução consensual de controvérsias, a uniformização de entendimentos, a probidade administrativa, a recuperação de ativos, a capacitação técnica de seus quadros, a segurança jurídica de políticas públicas, atos e contratos administrativos?

Especificamente em relação à revisão da Lopge, podem ser referidos alguns temas merecedores de aferição pelos seus destinatários, com vistas ao seu aperfeiçoamento:

a) a pletora de departamentos administrativos e cargos e funções de confiança criados, que não se coaduna com a contumaz escassez de recursos humanos vivida há décadas pela PGE, nem com a necessária horizontalidade das competências por ela exercidas, nem muito menos com a natureza técnica (e não política!) de suas atribuições;

b) o exíguo rol de competências decisórias do Conselho da PGE, em vista do disposto no art. 100, caput, da Constituição do estado de São Paulo, que define o referido colegiado como um dos responsáveis pela "direção superior" da instituição e não como mero órgão ancilar do procurador-geral, de feição acentuadamente opinativa;

c) a histórica [10] inefetividade da regra que determina que o concurso de ingresso na carreira de Procurador do Estado dar-se-á quando houver, no mínimo, 20 cargos vagos a serem preenchidos (atualmente [11], existem 411 cargos vagos/não providos, e o comando legal remanesce letra morta);

d) a onerosa opção pela criação de 170 cargos de Procurador do Estado e a renitente omissão quanto à criação de carreiras ou de cargos comissionados de apoio técnico aos membros da PGE (como, por exemplo, o de assistente jurídico, existente na Magistratura e no Ministério Público paulistas), imprescindível à boa execução dos serviços administrativos e à desoneração das bancas de atividades burocráticas, e menos custosa (na PGE, há apenas 0,7 servidor por procurador);

e) a indevida destinação dos honorários advocatícios de titularidade dos Procuradores do Estado para compor o Fungrogesp, fundo constituído com a finalidade de aparelhar a PGE, e para pagar gratificação e proventos de aposentadoria a auxiliares da Justiça [12], a fim de obter "maior eficiência dos serviços judiciais" [13];

f) a ausência de regras objetivas para o provimento das centenas de cargos e funções de confiança e o seu desempenho, que deveria ser por mandato a termo, a fim de assegurar saudável alternância gerencial e evitar a formação e perpetuação de nichos de poder;

g) a inexistência de política retributiva do acúmulo de trabalho (hoje não indenizado) em razão da vacância da ordem de 34% do quadro de 1.203 procuradores do Estado;

h) a correção do processo de escolha do corregedor geral e do ouvidor geral a partir da efetiva formação de lista tríplice, elaborada após votação plurinominal (e não uninominal, como hoje), de modo a garantir que o Governador do Estado possa, de fato, nomear um dentre os três candidatos mais votados, e não aquele único nome que o Conselho da PGE lhe indicar [14], em supressão da sua discricionariedade;

i) a necessária profissionalização das áreas de administração e tecnologia da informação da PGE, que devem contar com técnicos nelas especializados, nos moldes, por exemplo, da Secretaria-Geral de Administração da Advocacia Geral da União [15], e não com Procuradores do Estado;

j) a ausência de vagas ou cargos reservados nos concursos de ingresso na carreira de Procurador do Estado para pessoas negras, em desconformidade com a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, especialmente com os seus artigos 5 e 9 (na PGE, somente 6% dos Procuradores do Estado são negros [16]);

k) a previsão do dever institucional de transparência social eletrônica dos atos, dados estatísticos e relatórios de gestão no âmbito do Gabinete do Procurador Geral, do Conselho, da Corregedoria Geral e da Ouvidoria [17];

l) a implementação de audiências e consultas coletivas prévias à adoção de medidas institucionais estratégicas;

m) a concepção de estrutura orgânico-funcional mais enxuta, com menos degraus administrativos [18], calcada na coordenação e horizontalidade funcional e não na verticalidade, hierarquia e disciplina, em prol da obtenção de maior eficiência e responsividade administrativa;

n) a observância do princípio da unicidade e a assunção plena, pela PGE, da representação judicial e da consultoria jurídica de todos os órgãos da administração direta e indireta do Estado [19];

o) a questionável vedação absoluta do exercício da advocacia fora do âmbito das atribuições previstas na LOPGE [20] à luz dos artigos 5º, XIII, e 22, XVI, da Constituição da República, e 30, I, do Estatuto da Advocacia (Lei Federal nº 8.906, de 1994).

Para que a ausculta, a consulta e a participação das procuradoras e procuradores do Estado operem do modo mais proveitoso possível, a PGE deve recorrer maciçamente às Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Institucionalmente [21], hão de ser formados grupos, fóruns e oficinas de discussão temática em rede em caráter permanente, para troca de informações, dados, experiências, propostas, estratégias processuais, opiniões, críticas, subsídios, mapeamento de problemas, sondagens, análise de tendências jurisprudenciais e realização de diagnósticos, prognósticos e escrutínios em tempo real. Enfim, a PGE deve modernizar-se para ser mais responsiva, dialógica, participativa, interativa e, sobretudo, democrática. O processo de revisão da Lopge pode ser um primeiro e auspicioso passo rumo à e-PGE.

 


[1] Sobre o assunto: Derly Barreto e Silva Filho, A Advocacia Pública e o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, in Advocacia Pública Contemporânea: desafios da defesa do Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 105 a 140, também disponível em: https://revistas.pge.sp.gov.br/index.php/revistapegesp/article/view/525/469, acesso em 12/09/2023.

[2] Cadernos de Ciência de Legislação, nº 29, outubro-dezembro 2000, p. 13 e 14.

[3] Manual de legística: critérios científicos e técnicos para legislar melhor. Lisboa: Verbo, 2007, p. 343 e 464.

[4] Lei Complementar Estadual nº 1.270, de 25/08/2015.

 

[5] Cadernos de Ciência de Legislação, nº 29, outubro-dezembro 2000, p. 53 a 55.

[7] Mais recentemente, o Conselho da PGE, por meio da Deliberação CPGE nº 036/08/2023 (D.O.E., Seção I, 24/08/2023, p. 75), opinou pela viabilidade jurídica da transferência constitucional e legal das competências da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares para a Controladoria Geral do Estado, proposta que tramitou integralmente, ao longo de apenas três semanas, como "processo restrito", sem possibilidade de consulta dos respectivos autos eletrônicos. Tal circunstância obstou o conhecimento da proposição e sua justificativa, a realização de debates e a apresentação de sugestões para o seu aperfeiçoamento pela carreira.

[8] Lições preliminares de direito. 14ª ed.  São Paulo: Saraiva, 1987, p. 113.

[9] Cf. artigos 37, §16, 165, §16, e 193, parágrafo único, da Constituição da República.

[10] Desde a revogada Lei Orgânica da PGE, a Lei Complementar Estadual nº 478, de 1986.

[11] Em 12/09/2023.

[12] Cf. artigo 3º da Lei Complementar Estadual nº 205, de 1979, e Resolução PGE nº 6, de 04/03/2013, que tratam da "gratificação por serviços especiais".

[13] O Conselho da PGE, por meio da Deliberação CPGE nº 276/10/2016, de 07/10/2016 — ainda não efetivada —, opinou "pela imediata cessação dos pagamentos da gratificação, diante da revogação do artigo 3º da LC 205/79 pela Constituição Federal e pelo novo Código de Processo Civil, atingindo por arrastamento a Resolução PGE 06/2013", vencidos quatro conselheiros natos, que "opinavam pelo envio de anteprojeto de lei para revogação expressa do mencionado dispositivo legal" (Diário Oficial, Poder Executivo, Seção I, 11/10/2016, p. 109).

[14] Cf., por exemplo, as Deliberações CPGE nºs 107/09/2019, 035/09/2021 e 042/09/2023, respectivamente publicadas no D.O.E., Seção I, de 18/09/2019, p. 61, de 15/09/2021, p. 59, e de 06/09/2023, p. 81.

[16] Sobre o assunto: Derly Barreto e Silva Filho, Presença negra na Advocacia Pública ainda é assunto negligenciado, in https://www.conjur.com.br/2022-nov-27/barreto-silva-presenca-negra-advocacia-publica, acesso em 12/09/2023.

[17] À guisa de ilustração, no âmbito da Advocacia Geral da União, foi instituído o AGU Legis pela Portaria AGU nº 381, de 04/11/2022, sistema oficial de armazenamento e busca de atos administrativos e normativos institucionais (vide https://legis.agu.gov.br/, acesso em 12/09/2023).

[18] Nas áreas do Contencioso Geral e do Contencioso Tributário-Fiscal, por exemplo, há, entre o Procurador Geral e os Procuradores das bancas, os Procuradores Chefes de Seccionais, os Procuradores Chefes de Subprocuradorias, os Procuradores Assistentes dos Chefes de Unidades, os Procuradores Chefes de Unidades, os Procuradores Assessores/Assistentes dos Subprocuradores Gerais, os Subprocuradores Gerais Adjuntos, os Subprocuradores Gerais, os Procuradores Assessores/Assistentes do Procurador Geral, o Procurador Chefe de Gabinete e o Procurador Geral Adjunto.

[19] Na ADI 5.946, o STF decidiu que o Estado não pode, por meio de sua Constituição ou legislação, instituir procuradorias jurídicas próprias para a administração indireta, excetuando-se as autárquicas e fundacionais que já existiam quando do advento da nova ordem constitucional.

[20] A LOPGE proíbe, inclusive, o exercício da advocacia em causa própria e da advocacia pro bono pelos Procuradores do Estado, mesmo que não seja "contra a Fazenda Pública que os remunere ou à qual seja vinculada a entidade empregadora" (cf. artigo 30, I, do Estatuto da Advocacia).

[21] Atualmente, considerável parte das notícias relevantes de interesse funcional circula por grupos informais de WhatsApp, que reúnem centenas, mas não a totalidade dos membros da PGE.

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