Opinião

A disputa entre Kabum e Magalu

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14 de setembro de 2023, 13h15

Em 26 de julho de 2021, conforme fato relevante [1] publicado no site de relações com investidores do Magazine Luiza S.A. (Magalu), seu conselho de administração aprovou a aquisição de 100% das ações de emissão da Kabum Comércio Eletrônico S.A. ("Kabum" e "Operação", respectivamente). A operação, que estava sujeita à implementação de determinadas condições precedentes, foi aprovada pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) em outubro de 2021.

Na época da sua publicação, a operação teve grande repercussão no mercado brasileiro por envolver a Kabum, uma das principais agentes do setor de varejo de produtos eletrônicos, especializada na venda de produtos de informática, eletrônicos e games, e a Magalu, fundada em 1957, uma das maiores varejistas do Brasil, com forte presença no comércio eletrônico e de marketplace.

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De acordo com o rato relevante, a estrutura jurídica da operação envolveu a celebração de um "Contrato de Compra e Venda", cujos termos consistiam: a) na aquisição, pela Magalu, de 29% das ações de emissão da Kabum, pelo valor de R$ 1 bilhão, a ser pago à vista; e b) na realização de uma incorporação, pela Magalu, de 71% das ações de emissão da Kabum, em razão da qual a Kabum se tornaria uma subsidiária integral da Magalu (incorporação de ações).

Em contrapartida à incorporação de ações, a Magalu deveria emitir: 1) 75 milhões de ações ordinárias em favor dos acionistas da Kabum; e 2) dois bônus de subscrição, a serem exercidos em 31 de janeiro de 2024, condicionados ao cumprimento de metas de performance, que confeririam aos acionistas da Kabum o direito de subscrever até 50 milhões de ações ordinárias da Magalu.

Essa estrutura jurídica tem sido comumente usada no mercado, a exemplo das operações entre Dotz e Noverde Tecnologia (uma fintech que desenvolve soluções de crédito para pessoas físicas por meio de parcerias B2B2C) e Petz e Petix (líder de vendas na categoria de tapetes higiênicos).

Em termos práticos, é uma estrutura que permite à companhia compradora entregar uma certa liquidez aos vendedores da companhia alvo, tornando a operação interessante, e ao mesmo tempo vinculá-los ao interesse de longo prazo da companhia compradora, mantendo os vendedores na gestão da companhia alvo e incentivando-os a buscarem o melhor desempenho após a conclusão da operação.

Nesse tipo de operação, geralmente, o bônus de subscrição é utilizado como um mecanismo de formalização do earn-out que  apesar de comumente se referir a um pagamento em dinheiro sujeito a condições de desempenho da companhia alvo após o fechamento da operação  é pago mediante emissão de ações pela companhia compradora em favor dos vendedores sob condições de que determinadas métricas de desempenho sejam alcançadas.

Assim, em operações como essa, o preço inicial é pago em dinheiro e ações (por meio da incorporação de ações) e o earn-out é pago por meio do exercício do bônus de subscrição pelos vendedores. É inerente a esse tipo de estrutura que os vendedores da companhia alvo assumam os riscos das atividades da companhia compradora, afinal, tornam-se seus acionistas, bem como da companhia alvo, pois o earn-out é (usualmente) vinculado ao seu desempenho futuro.

Em linhas gerais, a incorporação de ações, prevista no artigo 252 da Lei nº 6.404/1976, consiste em uma operação em que a totalidade das ações de determinada companhia é incorporada ao capital de outra companhia, tornando-se uma subsidiária integral da companhia incorporadora [2]. Em contrapartida, pela incorporação das ações, os acionistas da companhia incorporada recebem ações de emissão da companhia incorporadora.

No caso em questão, em virtude da incorporação de ações, a Magalu submeteu aos seus acionistas um aumento de capital social no valor aproximado de R$ 2,5 bilhões referente a emissão das ações que foram subscritas e integralizadas pelos acionistas da Kabum, sujeito aos termos e condições previstos no "Contrato de Compra e Venda".

A operação foi anunciada como um investimento de R$ 3,5 bilhões pela Magalu, valor que corresponde à soma do pagamento à vista com o valor do aumento de capital para emissão das ações em favor dos acionistas da Kabum.

Como se constata dos termos da operação, uma parte relevante do preço foi paga com a entrega de ações de emissão da Magalu para os acionistas da Kabum, o que implicou a assunção de um risco relevante pelos vendedores, envolvendo a performance futura da Magalu e consequente valorização ou desvalorização das ações de sua emissão.

Ainda em 2021, já após a conclusão da Operação e recebimento das ações da Magalu pelos vendedores da Kabum, o valor de mercado das ações da Magalu desvalorizou mais de 70%, o que, por consequência, representou uma redução relevante no valor recebido pelos acionistas da Kabum em decorrência da "incorporação de ações". Este cenário parece ter sido o estopim para levar as partes envolvidas na operação a uma batalha judicial.

Em fevereiro de 2023, foi noticiado que os acionistas fundadores da Kabum ajuizaram uma ação de produção antecipada de provas, com objetivo de contestar a assessoria prestada durante o processo de negociação da operação. O fundamento da ação consiste na alegação de um potencial conflito de interesses entre o Itaú BBA e a Magalu, argumentando os fundadores da Kabum que o Itaú BBA teria favorecido a Magalu no processo competitivo, em detrimento de outros interessados na aquisição da Kabum [3].

Um período após os fatos mencionados, a Magalu optou por dispensar os acionistas fundadores de suas funções na gestão da Kabum por justa causa. Conforme noticiado, dentre as alegações para fundamentar a dispensa constou que, supostamente, os fundadores da Kabum estariam trabalhando para uma sociedade concorrente da Magalu.

Os fundadores, em contrapartida, propuseram uma ação trabalhista para questionar as alegações da Magalu, com o objetivo de que a dispensa seja considerada sem justa causa, afirmando inclusive que a dispensa teria sido uma retaliação pela Magalu em razão do processo ajuizado contra o Itaú BBA [4].

Recentemente, a disputa tomou novos contornos, uma vez que os acionistas fundadores optaram por entrar com uma arbitragem contra a Magalu, alegando que a Magalu teria se beneficiado do suposto conflito de interesses envolvendo os seus assessores, o Itaú BBA [5].

Conforme noticiado pelo Valor Econômico, os acionistas fundadores teriam apresentado algumas opções para um acordo entre as partes, sendo que algumas opções envolveriam inclusive a anulação do Contrato de Compra e Venda celebrado [6].

O cenário atual envolvendo os acionistas e as respectivas sociedades, Magalu e Kabum, é certamente complexo, especialmente considerando a existência de obrigações relevantes a serem cumpridas pelas partes no pós-fechamento. Conforme mencionado anteriormente, a estrutura da operação envolve uma parcela contingente do preço, isto é, valores cujo pagamento aos vendedores está condicionado ao cumprimento de determinadas metas de performance definidas no contrato de "Compra e Venda". Essa parcela contingente, propriamente a figura do earn-out mencionada, é um mecanismo comumente utilizado em operações de M&A com objetivo de:

"(…) 1) facilitar um acordo entre as partes com relação ao preço do ativo negociado, tendo em vista que o vendedor sempre terá interesse de incluir na avaliação do ativo uma perspectiva otimista do desempenho futuro da empresa enquanto o comprador sempre terá uma visão cética e cuidadosa, buscando não incluir no preço efeitos de projeções muito otimistas, e 2) criar incentivos para que o vendedor que permanece na gestão do ativo após a operação de M&A (situação muito comum, especialmente em negócios envolvendo fundos de private equity e venture capital, por exemplo) se empenhe ao máximo para conseguir alcançar os melhores resultados, pelo menos nos anos que servirão como base para cálculo do earn-out." [7]

Como uma parte do preço da operação ficou vinculado ao risco do negócio da própria Kabum (e não somente da Magalu), os fundadores foram mantidos na condução dos negócios após o fechamento. Essa continuidade dos fundadores na gestão, mesmo após a conclusão de uma operação como essa, pode ser vista de duas formas. Primeiro, é uma obrigação (referida muitas vezes como lock-up de gestão) que os vendedores da companhia alvo assumem em contrapartida ao recebimento do preço e demais condições do negócio.

Por outro lado, pode consistir também um direito dos vendedores se manterem na condução dos negócios da companhia alvo, uma vez que parte do preço por sua venda  o earn-out  está vinculado ao desempenho futuro dela. Em cada uma dessas hipóteses, é fundamental que os contratos da operação regulem quais as consequências para o descumprimento de uma ou outra hipótese, sendo esse tema um ponto comum de intensas discussões e negociações entre as partes.

Em regra, sob a perspectiva de uma obrigação de permanência assumida pelos vendedores (lock-up de gestão), o objetivo é resguardar os interesses do comprador em transações cuja figura do vendedor é essencial para a condução das atividades da companhia alvo. Nessas situações, o preço e a própria realização da operação são fortemente atrelados à manutenção do vendedor na gestão, sendo negociado, portanto, um período mínimo de sua permanência como administrador com o objetivo de 1) assegurar que as operações da companhia alvo continuarão a ser desenvolvidas regularmente, 2) viabilizar uma transição de gestão que não prejudique as atividades da companhia alvo e, em determinados casos, 3) garantir que o vendedor conduzirá a implementação de plano de expansão das atividades da companhia alvo. No âmbito dessa obrigação de permanência, as discussões entre as partes envolvem, em regra, as condições de contratação dos vendedores, multas aplicáveis na hipótese de descumprimento da obrigação e eventuais exceções ao cumprimento da obrigação pelos vendedores (como em caso de demissão sem justa causa por decisão da companhia alvo).

Por outro lado, sob a perspectiva de que a manutenção na gestão da companhia alvo é um direito dos vendedores, o objetivo é resguardar os interesses dos vendedores, uma vez que a preservação da gestão sob a sua responsabilidade é de suma importância para contribuir com o atingimento das metas de performance estabelecidas no contrato como condição para pagamento do preço contingente, permitindo aos vendedores empenharem seus melhores esforços para recebimento dessa parcela adicional do preço de compra (o earn-out).

Nessas operações, as cláusulas que regulam o earn-out podem estabelecer uma série de regras contratuais a serem observadas pelas partes, tais como 1) a garantia de autonomia de gestão dos vendedores após o fechamento, de forma a permitir que definam estratégias para condução da sociedade e administrem o dia a dia da companhia alvo nesse sentido; 2) a garantia de manutenção dos vendedores como administradores da companhia alvo, e 3) penalidades para o caso de destituição dos vendedores ou violação de sua autonomia na gestão da companhia alvo antes do encerramento do período do earn-out. A discussão entre as partes acerca de tais previsões e a inclusão das cláusulas aqui mencionadas visam endereçar contratualmente as potenciais divergências entre os interesses dos vendedores e da compradora no pós-fechamento.

É importante ressaltar que a definição de metas de performance a serem cumpridas não é suficiente para garantir que as partes (vendedores e compradores) tenham sempre objetivos alinhados na condução da companhia alvo, especialmente porque os objetivos de curto prazo dos vendedores (atingimento do earn-out) podem conflitar com eventuais objetivos de longo prazo ou considerados num contexto mais amplo e priorizados pelos compradores.

Do ponto de vista do vendedor, portanto, é fundamental estabelecer mecanismos contratuais que resguardem a sua atuação na companhia alvo no pós-fechamento e que eventualmente "compensem" eventuais impactos negativos decorrentes de decisões da compradora (na qualidade de nova controladora da companhia alvo) no earn-out.

Como a cláusula de earn-out estabelece diversos direitos e obrigações para as partes, essas disposições costumam ensejar a maior parte das disputas em operações de M&A, especialmente porque o alinhamento existente entre o comprador e vendedor na época do fechamento pode desaparecer ao longo do tempo.

No caso em questão, fica evidente que os fatos e as repercussões — cujas dimensões sequer são possíveis de serem aferidas — envolvem a aplicação de diversas dessas regras contratuais, as quais serão fundamentais para delinear os direitos e obrigações de cada parte, bem como eventual dano gerado de uma parte a outra.

Desse modo, em operações marcadas pela manutenção de diversas obrigações a serem cumpridas pelas partes no pós-fechamento (como no lock-up de gestão e earn-out), é extremamente importante a definição com cautela das cláusulas contratuais e conceitos que nortearão a relação das partes, estabelecendo de forma detalhada as regras a serem observadas e as consequências por seu descumprimento.

O pós-fechamento de uma operação de M&A é uma fase crucial em qualquer operação, motivo pelo qual deve-se endereçar esse contexto com a devida cautela nos contratos da operação. É nesse momento que as partes envolvidas começam a implementar as mudanças acordadas nos documentos definitivos e, em muitos casos, a trabalhar juntas para alcançar as sinergias e objetivos estratégicos esperados, bem como para integrar suas operações, equipes e culturas.

Nessas situações, o sucesso da própria operação de M&A pode eventualmente ser medido pelo modo que as partes se relacionam no pós-fechamento, diante das diversas situações que podem gerar oportunidades, desafios ou impasses indesejados.

 

 

[1] Fato Relevante publicado em: https://ri.magazineluiza.com.br/Download.aspx?Arquivo=MXbKFhdMTlD+6D8f66Q1Dw==. Acesso em 28 de abril de 2023.

[2] Sérgio Botrel ensina que: "Incorporação de ações consiste na operação em que a totalidade das ações de emissão de uma companhia é transferida, por decisão da assembleia geral, para outra (de nacionalidade brasileira), convertendo-se a sociedade emissora das ações transferidas em subsidiária integral (i.e, companhia que possui, em caráter permanente, um único acionista, o qual deve ser, ex vi legis, uma sociedade brasileira)". (BOTREL, Sergio. Fusões e Aquisições. São Paulo. Editora Saraiva, 2012, p. 133-134).

[3] GUIMARÃES, Fernanda. MATTOS, Adriana, 2023. Fundadores da Kabum vão à Justiça contra Itaú BBA por acordo com Magazine Luiza. Valor Econômico, 27/02/2023. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2023/02/27/kabum-e-itau-bba-vao-a-justica-por-acordo-com-magazine-luiza.ghtml. Acesso em 04/08/2023.

[4] GUIMARÃES, Fernanda. MATTOS, Adriana, 2023. Depois de suspensão, Magalu demite fundadores do Kabum com justa causa. Valor Econômico, 20/04/2023. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2023/04/20/depois-de-suspensao-magalu-demite-fundadores-do-kabum-com-justa-causa.ghtml. Acesso em 04/08/2023.

[5] GUIMARÃES, Fernanda. MATTOS, Adriana, 2023. Fundadores da Kabum entram com arbitragem contra Magazine Luiza para desfazer venda. Valor Econômico, 28/07/2023. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2023/07/28/fundadores-da-kabum-entram-com-arbitragem-contra-magazine-luiza-para-desfazer-venda.ghtml. Acesso em 04/08/2023.

[6] Conforme item 5.

[7] FERRAZ, Adriano Augusto Teixeira; FREITAS, Bernardo Vianna; SOUZA, Rodrigo Amaral e. "A Alocação de Riscos em Operações de M&A: Análise das Cláusulas de Ajuste de Preço e Indenização". In: BARBOSA, Henrique; BOTREL, Sérgio. Novos temas de Direito e Corporate Finance. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 577.

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