Opinião

Modulação da decisão da ADI nº 5.322: trabalho de Hércules?

Autor

  • João Grandino Rodas

    é presidente e coordenador da Comissão de Pós Graduação Stricto Sensu do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) e Sócio do Grandino Rodas Advogados. Desembargador Federal aposentado do TRF-3 e ex-reitor da USP. Professor Titular da Faculdade de Direito da USP da qual foi diretor mestre em Direito pela Harvard Law School mestre em Diplomacia pela The Fletcher School e Mestre em Ciências Político-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

11 de setembro de 2023, 13h16

Face à sua dimensão continental, é crucial no Brasil a questão do transporte de mercadorias.

Escolha político-econômica centenária ("governar é abrir estradas"), de certo modo ainda vigorante, vem dotando o país de ampla malha de rodovias (cujo crescimento supera o de outros modais de transporte), por onde circulam suas riquezas. O modal rodoviário supera, de longe, tanto no transporte de cargas, quanto de pessoas, os outros modais existentes no Brasil.

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Os números envolvidos comprovam a assertiva retro, à saciedade: 1) há mais de 100 milhões de veículos rodoviários registrados, de que, aproximadamente, dois milhões são detentores de Registro Nacional dos Transportadores Rodoviários de Cargas — RNTRC; 2) o setor de transporte rodoviário de cargas movimenta, na atualidade, 65% das mercadorias produzidas no país, beneficiando a economia, por gerar grande número de empregos e por contribuir ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) [1]; 3) a profissão de motorista profissional é das mais importantes para a economia brasileira, uma vez que mais de 60% dos transportes de mercadorias são feitos por caminhões; que movimentam cerca de R$ 365 bilhões, anualmente [2]; 4) existem mais de 6 milhões de motoristas profissionais [3], responsáveis por grande parte do transporte de cargas, realizado no país.

Respondendo aos anseios dos motoristas profissionais ligados a empresas do setor de transportes, pela regulamentação de direitos e melhores condições de trabalho, foi aprovada a Lei 13.103/2015. Mais conhecida como Lei do Motorista, desde sua promulgação foi considerada como marco legislativo, já consolidado devido à sua origem, basicamente, consuetudinária.

A referida norma alterou as regras da CLT relativas ao lavor do motorista profissional, que não se coadunavam, quer com a realidade hodierna dessa atividade, quer com a realidade do transporte rodoviário em país de grande vastidão territorial. O novo diploma legal trouxe diversos avanços para a respectiva categoria, sobretudo ao estabelecer novas regras para o exercício das atividades e critérios para assegurar o descanso da categoria, na esteira do espírito tutelar do direito do trabalho.

As alterações legislativas incidiram, mormente, na jornada de trabalho dos motoristas, consolidando entendimentos usuais na prática. Validaram-se, portanto, costumes; que, por o serem, ipso facto, já eram aceitos, amplamente, pela sociedade e pelo meio jurídico.

Dentre as vantagens trazidas pela Lei 13.103/2015, citem-se: 1) a permissão e revezamento dos intervalos com o veículo em movimento; 2) o fracionamento do intervalo interjornada; 3) a regulação do tempo de espera; e 4) a possibilidade da cumulação do descanso semanal remunerado em viagens de longa distância, possibilitando aos motoristas retorno ao lar mais cedo e, consequentemente, estar período maior com a família e descansar mais prolongadamente.

Contudo, no mesmo ano em que a lei foi sancionada, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes (CNTT) propôs Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI nº 5.322), atacando parâmetros regulatórios da atividade do motorista profissional, relativos a temas anteriormente expostos com relação: aos descansos intra e interjornada de trabalho, ao limite de horas extras, ao descanso com veículo em movimento, à integração do tempo de espera à jornada de trabalho e  à cumulação do descanso semanal. Outros de menor impacto na economia nacional, deixam de, ora, ser citados.

O julgamento da ação declaratória encerrou-se em junho de 2023, tendo sido o voto do relator, ministro Alexandre de Moares, acompanhado pela maioria dos votantes. Consoante tal decisão, impossibilitou-se: 1) o tempo de espera; 2) o descanso do motorista embarcado com o veículo em movimento; 3) o fracionamento do intervalo de 11 horas em 8 + 3, e 4) a possibilidade de cumulação do descanso semanal nas viagens de longa distância.

Os parâmetros admitidos no julgamento dessa ação terão profundo impacto, quer no sistema rodoviário do país; quer nos setores industriais, dependentes desse ainda fundamental modal de transporte, máxime pelo seguinte:

1) todo o período à disposição do empregador passa a ser tido como jornada de trabalho, inclusive aquele em que o motorista profissional repousar em local parado e fora de trânsito;

2) o repouso somente será possível com o veículo estacionado; o que prolongará a jornada do trabalhador; e impedirá que dois motoristas se revezem em um mesmo veículo;

3) o intervalo entre as jornadas deverá ser de 11 horas ininterruptas dentro de 24 horas de trabalho, reduzindo o tempo disponível para viagem; e

4) o motorista deverá usufruir do descanso semanal (35 horas) a cada seis dias, ou seja, em uma viagem que tem duração de 15 dias, será acrescida de mais três dias em razão da impossibilidade de acumular descansos no retorno a sua base.

As profundas alterações pretorianas, perpetradas na Lei, cambiaram completamente a realidade dos motoristas de transporte rodoviário e a dinâmica da respectiva indústria. Certamente os julgadores que compuseram a maioria vitoriosa, não tiveram em mente que o ideal colimado ainda não é factível, por razões de infraestrutura e de economia.

Desde a promulgação da Lei, em 2015, até o julgamento do ADI nº 5.322, em 2023, transportadoras, embarcadores, contratantes de serviços de transporte, destinatários e motoristas vinham operando e exercendo regularmente suas atividades; bem como contratando serviços de transporte de pessoas e cargas, tendo por parâmetro a Lei do Motorista, parte do ordenamento jurídico brasileiro validamente aprovada.

Após incontável número de relações jurídicas nascidas sob a égide da Lei, nesse interregno de mais de oito anos, é surpreendente que, o E. STF tendo declarado inconstitucionais vários de seus dispositivos, sequer, tivesse: 1) modulado os efeitos da decisão; 2) preservado as relações ocorridas na vigência do tempo original; e 3) concedido prazo de adaptação para os agentes econômicos a partir da publicação.

A temática do repouso é exemplar:

1) Não dispondo as estradas brasileiras, em sua grande maioria, de estrutura de pontos de parada e de descanso, como possibilitar, na prática, repouso estático e não em movimento; ou realizar uma parada a cada 11 horas?

2) Mesmo admitindo-se haver expressivo investimento público e privado para expandir, amplamente, a infraestrutura de pontos de parada e descanso, o tempo requerido seria muito extenso!

3) O prolongamento da jornada e a inviabilização do revezamento nas cabines, farão com que os motoristas demorem mais para percorrer as mesmas distâncias. Tal elevará sobremaneira o tempo de distanciamento de seus pontos de origem; reduzindo os dias livres com a família e amigos.

A adequação ao novo marco legal, criado pelo teor do julgamento da ADI nº 5.322, trouxe consequências várias:

1) aumentará o custo operacional de no mínimo 15% para viagens curtas e de 30% para as viagens de longa distância; uma redução de 25% na produtividade do setor de transporte; e, consequentemente, expressiva perda da competitividade em vários setores que fomentam o país.

2) refletirá, negativamente, nas relações econômicas, empregatícias e de consumo, com significativas alterações quanto à jornada de trabalho dos motoristas; o que repercutirá na qualidade do serviço prestado, no tempo despendido e na rotina do empregado; além de interferir nos prazos para a entrega dos produtos e no preço repassado ao consumidor; repercutindo em toda a cadeia produtiva.

3) Como os parâmetros de custo e operação de frete são base e componente de uma série de outras relações contratuais e econômicas estabelecidas na cadeia produtiva e de consumo, a jornada e as condições de contratação dos motoristas baseiam a fixação dos fretes, dos valores dos contratos de transporte e na própria precificação dos bens e produtos transportados com o uso da malha rodoviária e dos preços cobrados no transporte de passageiros da mesma malha.

Perguntas que não se calam:

a) Como alterar, retroativamente, os parâmetros dos fretes passados sem que que todas as demais relações acima descritas possam ser, reflexamente, também revistas?

b) Como pode ser aceitável que decisão judicial afete um número inestimável de relações jurídicas estabelecidas dentro do parâmetro legal então vigente, a um custo incalculável, e sem a possibilidade de voltar no tempo para refletir o mesmo impacto econômico e jurídico sobre as demais relações jurídicas correlatas àquelas também afetadas pela decisão judicial?

c) A declaração de inconstitucionalidade com efeitos "ex tunc", como foi decidida, implica permitir a propositura de demandas judiciais para a revisão das condições jurídicas, comerciais e econômicas de cada um dos fretes realizados no país, desde 2015. Essa eficácia extrapola a capacidade de administração e gestão, tanto dos agentes econômicos, quanto do próprio Poder Judiciário. Como revisitar o tempo de espera, o tempo de repouso, o intervalo entre jornadas e o descanso semanal remunerado de cada trecho de frete de transporte rodoviário contratado e executado na malha rodoviária brasileira desde 2015?   Ademais de ser custosa e inviável operacionalmente, representa uma ameaça indescritível à segurança jurídica das relações pretéritas, estabelecidas — devidamente — a partir de marco legal então vigente, com presunção de legalidade é inerente!

Dois assuntos restam para concluir: a imperiosidade de modulação e a capacidade de adequação do setor de transporte e indústrias correlatas à nova normativa.

Impõe-se modulação que, ao mesmo tempo, preserve e reconheça a legalidade das transações e contratos para serviços de transporte de pessoas e cargas mantidos e concluídos anteriormente ao julgamento realizado pelo E. STF. Deve ela conceder prazo razoável de adequação aos agentes econômicos de uma cadeia tão complexa, como a cadeia logística rodoviária brasileira.

A modulação da eficácia temporal da decisão (efeitos "ex nunc"), para que a decisão não atinja as relações jurídicas pretéritas ao trânsito em julgado, é o único meio capaz de garantir a segurança jurídica a todas as partes e setores envolvidos, a sustentabilidade econômica e a tão necessária relação empregatícia. É inestimável o número de relações jurídicas mantidas na vigência do texto original da Lei, que poderiam e precisariam ser revistas, caso a decisão retroaja seus efeitos à data de sua promulgação.

Assim, sob pena de afetação de um número inestimável de relações jurídicas e econômicas pretéritas, envolvendo milhares de empresas transportadoras, embarcadores, contratantes de serviços de transporte, destinatários e motoristas; e de promoção de milhares de demandas judiciais, com custos econômicos e operacionais inestimáveis, o que torna imperativa a modulação dos efeitos da decisão, para que não atinja as contratações passadas, regidas pela Lei do Motorista.

A modulação pode conceder prazo para o futuro, permitindo que os artigos declarados inconstitucionais continuem com vigência por um determinado prazo. A fixação de momento postergado para a cessação da eficácia da norma impugnada, é também via adequada — senão, imperativa — para que os setores privado e público consigam ajustar a operação aos novos moldes estabelecidos e prover a estrutura mínima necessária ao cumprimento do novo marco legal, sob pena de os efeitos advindos serem ainda mais nefastos.

A adequação ao novo marco legal não é uma providência de simples efetivação. Adequar jornadas implica rever modelos de contratação, renegociar contratos e revisar sistemas construídos e parametrizados para o cumprimento da Lei em sua redação original. Mais do que isso, da perspectiva operacional, transportadoras, embarcadores e contratantes de serviço de transporte, destinatários e motoristas precisarão rever as suas rotas de transporte, especialmente as de longa de distância, para adequá-las aos paradigmas de intervalo e descanso semanal ora estabelecidos por decisão judicial. Mais complexa ainda será a adequação dos pontos de parada e descanso ao novo modelo legal.

É sabido que a malha rodoviária brasileira não dispõe de pontos de parada e descanso suficientemente estabelecidos, especialmente nas longas rotas de norte e centro-oeste brasileiros. Com o fim da acumulação dos dias do descanso semanal e a proibição do descanso no caminho, as rotas precisarão ser revistas e ajustadas a trechos que disponham de pontos de parada; ou novos pontos devem ser construídos, para que rotas de longa distância sejam legalizadas.

A aferição desse impacto e a execução das providências operacionais, contratuais e estruturais necessárias a essa adequação demandará tempo, não apenas dos agentes econômicos, mas dos próprios agentes públicos e concessionários responsáveis pelas vias rodoviárias no extenso território brasileiro.

Seria salutar, que no evolver da modulação e da adequação do novo marco legal, a análise econômica do direito fosse utilizada, pois poderia ajudar a promover a eficiência, em prol da maximização do bem-estar de toda a sociedade.

Espera-se que o trabalho que se tem à frente seja de Hércules e não de Sísifo.

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  • é presidente e coordenador da Comissão de Pós Graduação Stricto Sensu do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) e Sócio do Grandino Rodas Advogados. Desembargador Federal aposentado do TRF-3 e ex-reitor da USP. Professor Titular da Faculdade de Direito da USP, da qual foi diretor, mestre em Direito pela Harvard Law School, mestre em Diplomacia pela The Fletcher School e Mestre em Ciências Político-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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