Opinião

(Ir)responsabilidade do ex-sócio por dívidas e seu direito de sub-rogação

Autor

  • Tarcisio Vieira Gonçalves

    é advogado e consultor em Direito Empresarial sócio do João Carlos de Paiva Advogados Associados mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas especialista em Direito Administrativo Civil e Empresarial professor em cursos de pós-graduação e preparatório para Exame de Ordem e autor de livros e artigos jurídicos.

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10 de setembro de 2023, 17h18

O ex-sócio não é legalmente responsável por dívidas da sociedade, independentemente de essa isenção de responsabilidade ter ou não constado do contrato de cessão de quotas. Essa é uma verdade legal que precisa ser dita e reiterada diuturnamente, para que a prática judiciária dela não se esqueça.

A uma leitura rápida, tal assertiva parece até mesmo equivocada, calibrados que fomos a logo pensar, em termos de responsabilidade de ex-sócios, em um dispositivo que menciona um prazo de dois anos mesmo após a resolução da sociedade em relação ao sócio. Trata-se do artigo 1.032 do Código Civil, que estabelece:

"Art. 1.032. A retirada, exclusão ou morte do sócio, não o exime, ou a seus herdeiros, da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a resolução da sociedade; nem nos dois primeiros casos, pelas posteriores e em igual prazo, enquanto não se requerer a averbação."

Contudo, somente uma descuidada interpretação do referido texto legal e ignorante dos mais comezinhos conceitos do Direito de Empresa pode concluir por uma responsabilidade do sócio que se retirou ou foi excluído ou dos herdeiros daquele que faleceu em relação a dívidas da sociedade de cujo quadro fazia parte.

Ora, o inciso III do artigo 44 do Código Civil estabelece as sociedades como pessoas jurídicas de direito privado, cuja existência legal começa com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro (artigo 45). O nascimento de uma nova pessoa (jurídica) já era entendido como suficiente para a autonomia dessas pessoas jurídicas, com patrimônio, direitos e obrigações distintas daquelas dos sócios que as compõem. Portanto, "a pessoa jurídica é uma técnica de separação patrimonial em que se atribui personalidade própria ao patrimônio segregado" (COELHO, 2019, p. 241).

Mas o legislador foi ainda mais cuidadoso e fez constar de texto expresso que "a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores", reconhecendo a "autonomia patrimonial das pessoas jurídicas", conforme fez a Lei nº 13.874/2019, conhecida Lei da Liberdade Econômica, que inseriu o artigo 49-A e seu parágrafo único ao Código Civil.

Isso já seria suficiente para se concluir, sem medo de errar, que quem responde pelas dívidas da sociedade é ela, com seus bens, não o sócio, mesmo que este venha a não mais compor o quadro societário. Contudo, há quem sustente que o mencionado artigo 1.032 permita essa responsabilização.

Ora, o próprio artigo 1.032 já afasta a responsabilidade do ex-sócio. Isso porque o dispositivo trata das "obrigações sociais". E quais são elas? "Dentre as obrigações sociais, destacam-se a realização das prestações a que se obriga o sócio cuja contribuição consista em serviços, ou a integralização da quota, quando contribua com capital" (WALD, 2005, p. 246).

No mesmo sentido, como não poderia deixar de ser, é a jurisprudência iterativa do Superior Tribunal de Justiça, como se observa, por exemplo, do Recurso especial nº 1.537.521/RJ, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, DJe 12/02/2019 e do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.520.206/RJ, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJe 5/11/2019.

Portanto, não é que a saída do sócio do quadro societário faça surgir novas obrigações, ou que ele passe, só por isso, a responder por dívidas da sociedade. Pelo contrário, as obrigações do sócio em relação ao qual a sociedade se resolveu permanecem as mesmas que ele, na qualidade de sócio, já tinha. Ainda com Wald,

"Tal responsabilidade deve ser interpretada de maneira restritiva. A letra da lei fala expressamente em 'responsabilidade pelas obrigações sociais', entendendo-se, desta forma, que deverá o sócio excluído, retirante, ou os herdeiros do sócio falecido, responder pelas obrigações que tinham na qualidade de sócio" (WALD, 2005, p. 246).

Destarte, se esse sócio já havia, a tempo e modo, integralizado o capital social que subscrevera, e não havendo violação da lei ou do contrato social, não há que se falar em sua responsabilidade.

Isso leva ao entendimento inequívoco de que, se o ex-sócio adimplente com a realização do capital vier a ser cobrado e pagar dívidas da sociedade, este ex-sócio terá pago injustamente. Tanto é que Mamede adverte, concluindo:

"Provando o ex-sócio que a obrigação pela qual respondeu constava do passivo quando da apuração de haveres, o pagamento efetuado a bem de terceiros, fruto da responsabilidade residual, caracterizará enriquecimento ilícito dos demais sócios, em desproveito do sócio retirante ou excluído que sofreu duas vezes o efeito da obrigação: a primeira na liquidação de sua quota ou quotas, a segunda quando foi chamado a responder pela obrigação não satisfeita pela sociedade. Afirmar-se-á, destarte, a obrigação dos demais sócios de restituírem ao ex-sócio que se retirou ou foi excluído o que ele pagou em dobro, monetariamente corrigido e com juros moratórios calculados a partir do efetivo desembolso" (MAMEDE, 2004, p. 171).

É que o ex-sócio que paga dívida da sociedade paga dívida de outrem, sendo considerado terceiro interessado, o que atrai a incidência do instituto da sub-rogação (CC, artigo 346, III), pelo qual se "transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores" (artigo 349, CC).

Logo, em se sub-rogando nos direitos do credor primitivo passando, o ex-sócio passa, portanto, a ser credor da sociedade nos mesmos valores, com as mesmas ações, ficando sujeito, inclusive, ao mesmo prazo prescricional de que o credor originário dispunha para cobrar da sociedade seu crédito.

Nesse norte de ideias, o Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de apreciar o tema, como se observa do Recurso Especial nº 1.707.790/SP, da relatoria do ministro Marco Aurélio Belizze, 3ª Turma, DJe 17/12/2021.

E este julgado ainda traz outro elemento importantíssimo para o esclarecimento do assunto:

"Independentemente da alegada existência de cláusula contratual que isentaria o demandante de responder por quaisquer débitos da sociedade, quando de sua retirada, o pagamento do débito trabalhista, no que consiste o prejuízo alegadamente suportado, foi determinado pela Justiça trabalhista, a requerimento da reclamante, ex-funcionária da empresa."

Essa questão é relevante porque eventual cláusula, em contrato de cessão de quotas, isentando de responsabilidade o sócio retirante opera efeitos inter partes, por conta do princípio da relatividade dos efeitos dos contratos. Por conseguinte, tal previsão convencional não é oponível contra terceiros — no caso, a reclamante, ex-empregada, em demanda na Justiça do Trabalho. Logo, como no caso julgado no acórdão em comento, se aquela Justiça Especializada cobra do ex-sócio o pagamento da dívida trabalhista — que é de obrigação da sociedade e não, em princípio, dos sócios — este pode cobrar o quanto teve de pagar.

Ademais, apesar de não ter sido objeto do referido julgamento, o mesmo raciocínio há de valer, pelas mesmas razões jurídicas, igualmente para o caso do (ainda) sócio que pagar a dívida da pessoa jurídica.

Em síntese conclusiva:

(1) o sócio ou ex-sócio não responde por dívidas da sociedade, em regra;

(2) por conseguinte, se o sócio ou ex-sócio pagar dívida da sociedade, operar-se-á a sub-rogação, abrindo-se prazo prescricional e ações para cobrar esse indébito.

 


REFERÊNCIAS:

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil – Parte Geral. 9. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário – sociedades simples e empresárias. São Paulo: Atlas, 2004, v. 2.

WALD, Arnold. Comentários ao Novo Código Civil – Livro II – Do Direito de Empresa. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, v. XIV.

Autores

  • é advogado e consultor em Direito Empresarial, sócio do João Carlos de Paiva Advogados Associados, mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, especialista em Direito Administrativo, Civil e Empresarial, professor em cursos de pós-graduação e preparatório para Exame de Ordem e autor de livros e artigos jurídicos.

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