Processo Familiar

O Direito de Família de luto pelo jurista que permanece

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

10 de setembro de 2023, 8h00

Como muito poucos, ele praticou o melhor direito de família dentro da advocacia, iluminando a face do direito com o seu sorriso franco ao atuar como instrumento de paz dos casais em desordem. Vicente Moreno Filho, o jurista que exercitou os valores da família, dentro de casa, junto aos amigos e perante as partes, encantou-se no dia 31 de agosto passado. Viajou ao infinito nas asas da graúna.

Vicente (Vinces ou Vincenti), por metáforas da etimologia, era um vitorioso. De vinci, vincere, "ser vencedor", ordenando ética e respeito, venceu todos os combates da vida. Mais do que apenas litígios judiciais, venceu o combate paulino. Nas várias formas, Vicente, Vicencio ou Vicenti; ainda Vicenzi e Vicenzo (do italiano e, aliás, seu neto), Vicent (do francês e inglês) ou Vicenz (do alemão), era mais que um prenome. Do verbo triunfar, fez-se verbo na palavra gentil e nas suas ações de concórdia. Ficou superlativo, por seu caráter de excelência. Triunfou na amizade e nas militâncias da fé, desde a paisagem bucólica de sua pequena cidade natal, Várzea Alegre (CE), de ordem irradiou suas auroras, para habitar o mundo no coração dos homens bons.

Do seu apostolado profissional, extrai-se o próprio lugar de onde situava o seu trabalho diário, Rua do Sossego, 591 (Santo Amaro, Recife). Quietude e placidez, oferecida pelos aconselhamentos e soluções meritórias dos problemas jurídicos. Não por mero acaso, o lugar de refúgio onde a clientela encontrava sempre a resposta pronta e adequada, tomada de sossego pela confiança no profissional sério e competente, sossegada sob os ajustes justos.

Nele reuniam-se as primeiras qualidades do homem de bem: o pai e o esposo amoroso, dedicado à família como sua principal razão de vida. Eis porque, assim, o direito de família se encontra inteiriço em suas lições de vida que servem de doutrina.

De sua esposa, Nicinha, sempre expressou a melhor ensinança do "affectio maritalis", como elemento condutor de comunhão de vidas. Disse-me, certa vez, expressamente, o seguinte:

"Veja o que a vida nos premia. Hoje a meu lado – uma esposa mãe. Que me adotou e de nossa convivência nasceram três filhos, Douglas, Dimitri e Karenina. Direciono todas as louvaminhas para Nicinha. Que exprime nesse amor maternal, o mais sublime afeto e dedicação. Verdadeira baraúna, altiva, destemida e amorosa, distribuindo afeto e amizade (…) Viva Nicinha, que com sua docilidade e leveza, conquista o mundo. Todos a amamos."

É dizer muito mais que o próprio requisito disposto no artigo 1.723 do Código Civil de 2002, o qual traz a expressão "com o objetivo de constituição de família".

Uma esposa de amor maternal, como o melhor conceito da afetividade conjugal. Casados há mais de 50 anos, Vicente e Nicinha, contextualizaram juntos e reciprocamente essa verdade. Constituiu-se uma família ditada pela comunhão de vida, como princípio básico existencial de vida a dois, uma vida una.

Personificaram eles, o casal-entidade. Consabido que o casal é o começo da história humana (Gn. 1,26.28.31) e que o princípio da mútua pertença implica na sua razão de existência, tenha-se a tudo isso paradigmático o vínculo que une homem e mulher com o termo amor (Mt. 19, 4s). Na visão paulina, o de "quererem-se entre si, como parte um do outro". Quem ama sua mulher ama a si mesmo (Ef. 5,28).

É neste espaço relacional que o casal se reconhece como entidade, a construir a família a partir da eficácia da união. Em menos palavras, na complementaridade um do outro. O casamento perfeito simbolizado na Estrela de David, que é formada por duas estrelas, entrelaçadas entre si mas guardando suas próprias individualidades.

Um Casal Entidade, como símbolo ou protótipo de união idealizada de comunhão de vida, o de vida a sempre.

Aliás, a cláusula geral de "comunhão plena de vida", como norma-princípio que remete as relações familiares a seus valores éticos e afetivos aparece, de logo, inserida no primeiro artigo do Livro de Direito de Família (artigo 1.511 do Código Civil), a dizer que "o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade dos direitos e deveres dos cônjuges".

Mais: A comunhão plena de vida significa compartilhar a família nos seus atributos determinantes, onde para além da norma, estão todas as pessoas comprometidas entre si, comungando interesses comuns e resultados construídos. Efetivamente, figura como uma cláusula diretiva da existência da comunidade familiar.

Vicente flagrou o seu sentido de viver, ao professar uma vida plenamente satisfatória na dedicação plena ao objeto dos seus afetos (esposa, filhos e amigos).

Com acerto, diz-nos, a propósito, o filósofo norte-americano Harry Frankfurt:

"É o amor que dá significado ao mundo: o amor é a fonte originária do valor final. Se nada amássemos, nada teria mérito intrínseco e definitivo para nós. Não haveria nada que fossemos levados a aceitar como fim último. Por sua própria natureza, amar implica tanto que consideremos seus objetos valiosos por si mesmos como também que não tenhamos outra saída, a não ser adotar esses objetos como nossos fins últimos" [1].

No ponto, Vicente Moreno Filho sempre foi o guardião afetivo e presente dos seus filhos, em todas as suas idades. Dedicou-lhes proteção continuada e de vigília, na figura do "bom pai de família", em experimento que mais dignifica o direito de família: o da condição mais legitima do cuidado como valor jurídico; do zelo da sua presença constante; das diligências de orientação paterna e de incentivo construtivo.

Demais disso, o sentido de família nele foi ampliado, no melhor apuro da família extensa (artigo 25, § único, Lei nº 8.069/1990) e assim se fez ele irmão de muitos amigos e de conhecidos, além dos seus outros oito irmãos, filhos mais velhos de Arlinda Batista de Freitas e Vicente Batista Moreno. Aos amigos menos favorecidos prestava-lhes conselhos, orientações jurídicas, apoio material. E na sua amada Várzea Alegre, as pessoas mais simples dele recebiam a mesma afeição e fraternidade, como se irmãos fossem. Vínculos de afinidade e de afetividade, verdadeiros vínculos tal como reportados pela lei no conceito da "família ampliada".

Quando o princípio da Fraternidade como direito tem sido objeto de maior atenção da ordem jurídica, a partir do seu preâmbulo constitucional, ele, Vicente, construiu o seu mundo como "uma só família", sempre amigo dos mais humildes, relacionando-se com todos sem hierarquia ou sem subordinação. Sua vida foi um meio ou sinal de esperança e de fraternidade, como experiência possível de tornar o mundo melhor.

Diz-nos Reynaldo Soares da Fonseca, ministro do STJ, doutrinador do direito da fraternidade, que a utilização da categoria jurídica da fraternidade revela-se como chave analítica normativamente válida para as maiores transformações sociais [2]. De fato, como asseverou Luiz Edson Fachin, "o direito que tem o sabor substancial da fraternidade, também tem o saber essencial de um renascimento". A vida de Vicente Moreno Filho sempre foi um abrigo vinculante do fraterno.

Solidário diante das adversidades dos amigos, os acolhia com eficiente presteza de apoio, a exemplo do amigo parlamentar, cassado nos anos de chumbo, convidado a compartilhar o seu escritório de advocacia, para continuar com dignidade o seu labor.

Ao receber a cidadania recifense (em 29/11/2013), simbolizou, em seu discurso, todos os afetos que sempre o guarneceram: "O batuque do meu coração agora é diferente, de coração tambor, vibrante como os batuques dos maracatus e dos afoxés da minha cidade adotiva".

E lembrou: "Aos seis anos de idade, depois de uma viagem cortando toda a Paraíba, cheguei em Campina Grande e fiz baldeação numa marinete para aportar no Recife" [3].

Chegou com a bagagem da esperança, estudou no Colégio Marista e ingressou, em 1966, na Faculdade de Direito do Recife, a clássica "Casa de Tobias Barreto". Integrante da icônica Turma de Bacharéis de 1970 [4], sua atuação acadêmica foi semeadura da retomada democrática, com serenidade e altivez. Também se colocou na luta pela permanência da FDR no clássico templo da Praça Adolfo Cirne, onde ali permanece, quando pretendida a sua inclusão em um campus de Cidade Universitária, na Várzea.

Advogado na área civil — tendo exercido atividades como advogado de importantes empresas e de instituições bancárias, chefiado a Crédito Imobiliário do Banco do Estado de Pernambuco (Bandepe) por muitos anos, e atuado por mais de duas décadas na Procuradoria Jurídica do Estado, notabilizou-se no direito imobiliário e no direito de família.

No direito familista, foi intérprete dos grandes conflitos conjugais, como mediador e pacificador social, incentivando o (re)encontro dos casais, mesmo para os fins de um desenlace não traumático. Ensinava os colegas mais beligerantes no trato das desavenças familiares a postularem com exação e maior sensibilidade, sem litígios ácidos, prevenindo-os que os filhos, mais adiante, poderiam ser surpreendidos com tamanhas injúrias recíprocas dos seus pais e que importava muito para a família a convivência parental daqueles pais dos mesmos filhos, como símbolo da dignidade existencial de todos os envolvidos. E aconselhava ao colega menos experiente, em tratativas de composição, como a dizer "Deixemos que eles resolvam a si mesmos para resolverem o processo, não será justo que resolvamos por eles a vida que não é nossa".

Homem de muitas artes, onde o cordel e a rabeca, o repente e o humor refinado ditavam o seu mundo mágico, teve a arte excelente de cultivar amigos de longas datas. Cultura da boa conversa, da boa literatura, da dialética das boas reflexões. Identificações convictas sem ambivalências.

É de sua Várzea Alegre que extraiu todos os ditames de vida.

Várzea Alegre, terra natal também do padre Antônio Batista Vieira (1919/2003), cuja parentalidade e biografia muito o inspiraram. Sacerdote e político, deputado federal (1967/1970), graduado em Economia (Universidade de Los Angeles, EUA, 1964), em Direito (UFRJ, 1974), licenciado em filosofia, ciências e letras, padre Vieira é autor de inúmeras obras que lhes serviram de referências. Dele, destacam-se: "O verbo amar e suas complicações" (1965) e "A família: evolução histórica, sociológica e antropológica" (1987). Vieira e Vicente, ambos juristas e homens múltiplos.

Várzea Alegre, que ele "cultivava com admirável apego suas raízes, tratada com refinado senso de humor como Happy Valley", como referiu Gustavo Krause, o grande esteta da palavra, em comovente artigo "Vicente de todas as cores" [5].

Festeiro e poético, as moradas do Pai o recebem, agora, em festa, com a mesma vibração candente dos batuques.

Morte, onde está a sua vitória? Vicente Moreno Filho (2/7/1947-31/8/2023) foi convincente por sua vida e por seu legado. Ele, sim, é o vitorioso, porque o jurista permanece.

 


Referencias:

[1] FRANKFURT, Harry G. As razões do amor. São Paulo: Martins Fontes, 2007, 105 p.

[2] FONSECA, Reynaldo Soares da. O princípio constitucional da fraternidade. Belo Horizonte: Ed. D'Plácido, 2019, 224 p.

[3] CIDADANIA DO RECIFE. Web: https://www.recife.pe.leg.br/comunicacao/noticias/vicente-moreno-filho-e-cidadao-do-recife

[4] A turma de formandos teve como paraninfo o civilista Silvio Neves Baptista, àquela altura tão jovem quanto mestre.

[5] KRAUSE, Gustavo. Vicente de todas as cores. In: site Jornal do Commercio, 5/9/2023. Web: https://jc.ne10.uol.com.br/opiniao/artigo/2023/09/15587014-vicente-de-todas-as-cores.html

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  • é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco, mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa, membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont), advogado, consultor jurídico e parecerista.

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