Opinião

Olhar o horizonte, sem medo do novo

Autor

  • Marcos José Porto Soares

    é promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná coordenador do Grupo de Pesquisas em Inovação Direito e Novas Tecnologias do MP-PR diretor de Inovação e Novas Tecnologias da Associação Paranaense do Ministério Público e mestre em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona-Espanha e Universidade de Gênova-Itália

6 de setembro de 2023, 13h19

É inconcebível imaginar que os aproximados cem milhões de processos na Justiça do Brasil serão resolvidos por advogados, juízes, promotores e defensores atuando nas salas de justiça tradicionais. Além de cursarem uma estrutura arcaica, engessada e ineficiente, os processos representam os casos que ainda conseguem chegar à Justiça, pois grande parte ainda está muito longe dela. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), quase 50% da humanidade vive fora da proteção da lei [1].

Com o vácuo na prestação desse serviço essencial, aliado à percepção de grande dificuldade em alcançar a justiça, a sociedade, por meio de sua aptidão adaptativa, cria mecanismos que possam cumprir esse papel.

Os denominados "meios alternativos de solução de conflitos", como a mediação, conciliação, arbitragem e negociação, e mais recentemente as ODRs (online dispute resolution), são serviços que frequentemente crescem quando as pessoas deixam de procurar as cortes tradicionais civis, em cuja efetividade não confiam mais.

Mas será que com o crescimento da busca por esses serviços, que são rotineiramente oferecidos pelo setor privado, há o perigo, descrito por Richard Susskind, de a sociedade ser governada menos pela lei do Estado (law of land) e mais pelo compromisso, normas sociais e regras do mercado, as quais não têm como finalidade direta buscar a justiça [2]?

Essa questão instiga a pensar que existem dois caminhos a seguir. O primeiro, o da esfera privada que não se importa diretamente com a consecução da justiça, e sim com os negócios econômicos e numa forma prática de resolução de conflitos, e o segundo, o da esfera estatal, que agasalha o Direito, como instituição segura e que primariamente tem como vocação a busca pela justiça, mas que se mostra ineficiente com base no seu mecanismo atual.

A princípio, a opção por um caminho não impede o outro. No entanto, com a evolução tecnológica que se destaca no presente século — aumentando de forma exponencial o descompasso entre o que é oferecido pelo setor privado para facilitar a vida das pessoas e a complexidade burocrática estatal que envolve o serviço da justiça tradicional — cada vez mais míngua a margem de escolha. Mesmo que a opção estatal fosse a melhor, a realidade estampada nos nossos olhos é outra.

Diante da probabilidade de não haver outro caminho a seguir, cabem aos juristas, profissionais e acadêmicos, ingressarem neste novo ambiente. Isso é muito bom, tanto para os que atuam com o Direito, pois terão pela frente uma amplitude de oportunidades, como também para aqueles que confiam nos sistemas modernos privados ou descentralizados de solução de conflitos, que abarcarão o conhecimento do Direito, para formarem seus mecanismos de forma que não se afastem do asseguramento da justiça.

Quanto ao fato de mecanismos tecnológicos privados ou descentralizados, criados fora do âmbito estatal, não terem como finalidade direta a busca pela justiça, deve-se ter em vista que eles podem cumprir este papel em algum momento.

Não é porque algo foi criado para uma finalidade, que no decorrer da sua utilização também não possa servir para outra.

Na área da saúde isso é bem comum. Muitas vezes se identifica, a partir do uso e a inteiração com os pacientes, medicamentos inicialmente criados para tratar uma doença passe a atender outras finalidades. Desenvolvido para tratar a angina (dor no peito diante da insuficiência de fluxo sanguíneo), percebeu-se que o citrato de sidelnafila — o princípio ativo do Viagra — era eficiente e seguro para tratar da disfunção erétil.

A negociação, mediação e conciliação, que inicialmente serviam para solucionar conflitos comuns das vidas das pessoas, passaram a integrar os sistemas jurídicos, a ponto de serem atualmente considerados pelo Direito como “meios apropriados” de solução de conflitos.

O mesmo fenômeno ocorre com a blockchain, inicialmente criada para um fim, passou a ser utilizada para outros. O desenvolvimento da primeira que foi a que estruturou o bitcoin, por Satoshi Nakamoto, tinha como objetivo possibilitar a troca financeira entre pessoas dos mais diversos lugares do mundo, sem a intromissão do Estado ou de um terceiro. Por sua vez, a blockchain ethereum, aproveitou parte da estrutura da blockchain do Bitcoin para que além do repasse de moeda (criptomoeda) pudessem ser estabelecidas obrigações e contratos ou registrada qualquer outra informação. Isso abriu um mundo de possibilidades, através dos denominados smart contracts. Com sua funcionalidade em permitir que obrigações firmadas na rede blockchain possam ser executadas, independentemente de um comportamento do devedor ou do Estado, emerge interessante aproximação das blockchains ao mundo do direito, uma vez que o uso dos smart contracts pode cumprir um papel antes destinado à justiça tradicional.

Se há a disposição uma nova ferramenta que possa melhorar o serviço da justiça, por que não se aproximar dela? E aqui, já escreve-se eivado do espírito utópico de que o Estado poderia acordar. Aliás, em tempos passados, assim já fez. Muitas inovações do mundo privado já foram acopladas aos sistemas públicos justiça. Isto ocorreu com a criação da plataforma consumidor.gov, que é um mecanismo público de ODR inspirada nos modelos privados. A mediação, conciliação e a arbitragem também, por exemplo, foram aderidas pelos sistemas tradicionais de justiça. Quanto às blockchains, inicialmente elas vêm sendo incorporadas em tribunais de arbitragem, e no futuro podem ser usadas em processos judiciais.

No entanto, ainda é muito difícil inovar no setor público, ainda mais no campo da justiça e da área jurídica [3]. Há ainda muito receio do novo, e que é mais fácil deixar as coisas do jeito que estão: "são as que eu já sei, são as que eu já estudei, são as que eu estou acostumado a usar".

Por exemplo, o Conselho Nacional das Corregedorias dos Ministérios Públicos dos Estados e da União [4] recentemente emitiu uma recomendação ditando o retorno do comparecimento físico dos promotores de justiça nas audiências, justificando, entre alguns pontos, a importância da presença física na coleta de provas. Enquanto isso em vários lugares do mundo, as cortes online já são realidades eficazes, como exemplos emblemáticos, a CRT em British Columbia, no Canadá, e as Cortes Her Majesty, no Reino Unido.

Retomando a questão levantada por Richard Susskind, poderia muito bem haver uma virada de mesa, e o sistema de justiça tradicional despertar quanto à implementação das inovações (atualmente há a disposição formas legais eficientes de contratação de inovação pelo setor público, entre elas o Marco Legal das Startups [5]), e oferecer um serviço de justiça eficiente.

Mas não, parece que ao se deparar com uma inovação a primeira reação do Estado é tentar regulá-la, o que implicará invariavelmente em sua limitação. Lógico que muitas vezes esta é a melhor medida, diante dos riscos do que o novo pode causar (como ocorre em relação ao uso da inteligência artificial [6]). No entanto, no que diz respeito ao serviço de justiça, não adianta apenas limitar sem o Estado criar alternativas que encampem novidades tecnológicas que possam ser eficientes.

Existe um gigante adormecido, a Justiça estatal, que necessita ser acordado. Diante dessa obsolescência, há no horizonte ideias práticas e efetivas que cumprem mesmo que indiretamente o papel antes entregue pela sociedade a ele.

Acredita-se que enquanto a sociedade ainda crê no Estado, como legítimo destinatário do poder, não pode ele se omitir em atender as demandas que lhe foram entregues, sob pena desse espaço ser automaticamente ocupado pelos setores privados e descentralizados.

Mas, quem sabe, se o caminho natural da humanidade não seja mesmo a evolução dos serviços privados e descentralizados de justiça, gerando o surgimento de uma nova Justiça, e que grande parte do que foi feito ou era para ser feito pela Justiça estatal tenha ficado no passado?

 


[2] Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford, United Kingdom: Oxford University Press, 2019, p.22.

[3] KOTTER, John P. Liderando Mudanças. Trad. Afonso Celso da Cunha Serra. Rio de Janeiro: Alta Books, 2017. Nesta obra o autor descreve os oito passos para que haja uma reformulação na estrutura organizacional para incorporar o novo necessário. Retrata como é difícil uma organização se envolver no processo de inovação

[4] Recomendação 01/2023.

[5] Lei Complementar nº182/2021

[6] Em andamento no Senado Federal o Projeto de Lei 2338/2023

Autores

  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná, mestre em Raciocínio Probatório pelas universidades de Girona (Espanha) e Gênova (Itália), especialista em Programação de Contratos Inteligentes em Blockchain para o Direito pela PUC-RJ e coordenador do grupo de pesquisas de Inovação, Direito e Novas Tecnologias do Ministério Público do Paraná.

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