Opinião

CPI do 8 de Janeiro: a comissão potencialmente inquisitorial

Autores

4 de setembro de 2023, 15h25

Na semana passada, durante os trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos atos de 8 de janeiro, mais especificamente, após uma pergunta formulada pelo deputado André Fernandes ao general Gonçalves Dias, os ânimos se exaltaram. O advogado, então, avaliou que deveria intervir. Todavia, ao contrário do que lhe assegura o artigo 7º, incisos X e XI, da Lei 8.906/1994, teve sua palavra cerceada. Posteriormente, tal restrição foi "justificada" com base em uma norma regimental da Casa Legislativa.           

Infelizmente, não é a primeira vez que as prerrogativas advocatícias são desrespeitadas, principalmente no âmbito das comissões parlamentares de inquérito. Com uma indesejada frequência, notamos, na condução dos seus trabalhos, uma série de atos demagógicos e arbitrários, protagonizados por um reduzido número de congressistas, em completa ignorância do ordenamento jurídico pátrio.

Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Bruno Spada/Câmara dos Deputados

Por essa razão, antes das sessões, é preciso, por vezes, recorrer ao Poder Judiciário, em especial, ao STF (Supremo Tribunal Federal), para, pasmem, solicitar o respeito a garantias fundamentais conquistadas arduamente após décadas de um regime autoritário. Como se a máquina judiciária já não estivesse absolutamente assoberbada…

Enfim, é dever do advogado zelar pelos direitos de seus constituintes. Ainda assim, convive com diversos entraves para a realização de seu múnus público [1]. Inclusive, em situações mais radicais, busca-se até mesmo sua criminalização a partir de uma heterodoxa interpretação das normas que punem os delitos de lavagem de capitais e obstrução de justiça [2].

Ignora-se, assim, a importância da advocacia em um Estado (pretensamente) democrático de Direito. Ignora-se, curiosamente, que, qualquer um, incluindo congressistas, pode ser eventualmente tragado para uma persecução penal. E, caso isso aconteça, ainda que inocente, precisará urgentemente de um advogado dotado de prerrogativas profissionais sólidas [3].

O lamentável episódio, mencionado no primeiro parágrafo, nos remete a uma passagem do saudoso advogado Wilson Mirza, retratada por Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, professor titular da Uerj:

"É preciso que o advogado tenha destemor em não desagradar a quem quer que seja. Vou dar um exemplo aqui: eu era defensor público, muito jovem, quando um advogado criminal, que vou citar o nome, doutor Wilson Mirza, estava na tribuna do Tribunal de Justiça do antigo Estado da Guanabara fazendo a defesa em um processo criminal. Então, no meio do voto do desembargador, ele foi para a tribuna, pediu a palavra pela ordem. O advogado tem a prerrogativa de interromper um julgamento para esclarecer uma matéria de fato. O advogado tem esta prerrogativa no caso concreto. Pois bem. O desembargador havia lido uma parte de um depoimento que incriminava o cliente dele, enquanto que a parte seguinte, não lida, desmentia tal incriminação. O desembargador presidente não permitiu a intervenção. O advogado insistiu e o desembargador mandou o advogado se calar. O advogado disse que não calaria. Então o desembargador Presidente mandou o advogado se retirar da tribuna e o advogado disse que não se retiraria. O desembargador presidente disse, então, que iria mandar prendê-lo. E o advogado disse: então V. Exa. me prenda e eu quero um representante da Ordem dos Advogados aqui. Após o tumulto, resolveram conceder a palavra ao advogado. Ele esclareceu o ponto e foi vitorioso no julgamento. Dessa história retiramos a lição de que nós também temos que assegurar as nossas prerrogativas, os nossos direitos. Não somos menos do que os juízes, do que os promotores ou de qualquer outra pessoa que atue no processo." [4]

Não devemos aquiescer com posturas retrógradas e inquisitoriais em qualquer procedimento apuratório.

O advogado é indispensável à administração da justiça, conforme o artigo 133 da Constituição. Suas prerrogativas estão previstas em lei federal (Lei 8.906/94), e não em norma regimental.

 


[1] "Nesse contexto, torna-se impertinente indagar se a advocacia é apenas o exercício de uma profissão privada, ou tão-só o desempenho de um serviço público. Ela é ambas as coisas, sem confusões nem contradições. O múnus público da advocacia  já reconhecido entre nós no Império, desde o Aviso Ministerial 326, de 15.11.1870  marcado pelo monopólio do jus postulandi privado em todas as instâncias, com raras exceções, bem demonstra que a atividade judicial do advogado não visa  apenas ou primariamente  à satisfação de interesses privados, mas à realização da justiça, finalidade última de todo processo litigioso. Esse objetivo supremo, num Estado de Direito, traduz-se sempre na adequada aplicação da Constituição e das leis, o que supõe, de parte dos litigantes, suficiente conhecimento teórico e habilidade técnica, qualidades que se pressupõem no advogado". (COMPARATO, Fábio Konder. A função do advogado na Administração da Justiça. Revista dos Tribunais, vol. 694, p. 43 – 49, 1993).

[2] Em recente obra, Diogo Malan indica, além disso, como estratégia para criminalização da advocacia, "a devassa nas comunicações entre defensor e seu cliente". (MALAN, Diogo Rudge. Advocacia criminal contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. p. 113-119).

[3] "Aos que insistem em não reconhecer a importância social e a nobreza de nossa missão, e tanto nos desprezam quando nos lançamos, com redobrado ardor, na defesa dos odiados, só lhes peço que reflitam, vençam a cegueira dos preconceitos e percebam que o verdadeiro cliente do advogado criminal é a liberdade humana, inclusive a deles que não nos compreendem e nos hostilizam, se num desgraçado dia precisarem de nós, para livrarem-se das teias da fatalidade". (EVARISTO DE MORAES FILHO, Antonio. Advogado criminal, esse desconhecido. Revista dos Tribunais, vol. 4, p. 327 – 341, 2014).

[4] CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O advogado. Revista Eletrônica de Direito Processual (REDP), Vol. 13, 2014. p. 687.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!