SEGUNDA LEITURA

Estranhos rumos da pesquisa e da aplicação do Direito na atualidade

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

3 de setembro de 2023, 10h48

O Direito não é ciência exata e por isso nada é mais normal do que a sua apreciação ser divergente. Além disto, se outrora preponderava a interpretação com base na lei, agora ela se fundamenta, usualmente, na Constituição e seus princípios, os quais nem sempre são claros e explícitos. Disto se seguem decisões judiciais que causam surpresa aos que delas tomam conhecimento e, mais ainda, aos que são partes no processo.

Spacca
Esta mudança é natural, pois, se muda a sociedade, o Direito deve mudar também. No entanto, atualmente o Direito parece direcionar-se por caminhos pouco claros, por vezes contraditórios.

Não se trata de algo fácil de distinguir. Mas, uma atenção mais apurada pode deixar a transparecer se uma pesquisa acadêmica quer mesmo pesquisar ou se tudo aquilo que foi dito é a mera confirmação de uma tese sobre a qual, antes da pesquisa, já se tinha ampla convicção. Em outras situações, principalmente de Cortes Superiores, percebe-se em uma decisão judicial a busca de populismo incompatível com a toga. E assim vai o Direito sendo usado como meio de mera transmissão de ideologia ou de divulgação da própria imagem.

Evidentemente, isto não contribui para a pacificação social, meta primordial do Direito na vida em sociedade. Vejamos alguns exemplos.

  1. Direitos humanos, proteção e assistência às vítimas

Os Direitos Humanos assumiram grande relevância nos últimos anos e isto é muito bom. Todavia, estão as pesquisas acadêmicas (TCC, dissertações de mestrado ou teses de doutorado) investigando os direitos das milhares de vítimas? Fischer e Pereira, em obra sobre Direitos Humanos nas Cortes Internacionais, registram e analisam nada menos do que dez condenações do Brasil na Corte Internacional de Direitos Humanos de São José da Costa Rica, por falta de assistência às vítimas de crimes.i A interessantíssima análise refere-se a casos de grande repercussão, como o do jornalista Vladimir Herzog, morto em uma dependência policial no tempo do regime militar.

Mas, é preciso que outras pesquisas se estendam aos casos de pouca ou nenhuma repercussão na mídia, aqueles que diariamente atingem pessoas de todas as classes, mas principalmente as de baixa renda que vivem na periferia das grandes e médias cidades brasileiras. Isto já afirmei em artigo nesta revista, intitulado "A vítima do crime é abandonada pelo sistema de Justiça", pois a ela ou a seus familiares só resta a solidariedade de parentes e amigos.ii

Mas, surgem ventos de esperança no horizonte. No Congresso tramita o PL 3890, Estatuto da Vítima,iii e, recentemente, foi criado o Instituto Brasileiro de Apoio a Vítimas, Pró-Vítima,iv que é a primeira iniciativa fora do âmbito estatal. São medidas importantes que precisam ser estimuladas.

  1. Pesquisa sobre ocorrências

Todos os acontecimentos de grande relevo que causem danos a pessoas individualmente ou à coletividade, são objeto de imediatas notícias, sempre acompanhadas com o ar grave do repórter que as relata e tendo por complemento a frase "a Secretaria X informou que instaurou inquérito para apuração da ocorrência e identificar os responsáveis" ou algo semelhante. Passados, 2 meses, 2 anos e muito menos 20 anos, ninguém se lembra do que ocorreu. Em outras palavras, o que vale é a notícia e não o resultado. Investiguei, aleatoriamente, o exemplar do jornal Estado de São Paulo, exatamente de 10 anos atrás, ou seja, 3 de setembro de 2013.v Consta nas ocorrências policiais, que uma jovem de 16 anos de Aparecida de Goiás, GO, relatou à Polícia que a chacina de quatro jovens na área de preservação Serra de Areias, praticada por seu namorado Thaygor Henrique, de 18 anos, por ciúmes dela. Qual o desfecho do caso? E a família das vítimas? Foram indenizadas? Receberam algum tipo de apoio, conforto, por parte do estado? Ou ficaram relegadas à própria sorte. Que tal um observatório para acompanhar tal tipo de ocorrência e reclamar providências quando necessário?

  1. Aplicativos, desemprego e realidade

O Brasil tem milhões de desempregados e uma das razões é o fato de que ninguém se anima a contratar alguém, e gastar mensalmente o equivalente a um segundo salário só para cobrir tributos e encargos sociais, tendo de acréscimo o risco de sofrer, posteriormente, uma ação trabalhista. Neste quadro pouco animador, ser motorista de aplicativo revela-se como a última das alternativas para um enorme número de desempregados e a saída para a sobrevivência de muitas famílias. Se for reconhecido vínculo empregatício entre a empresa e o motorista, por óbvio ela cessará as suas atividades e milhares de brasileiros ficarão desempregados. Por tal motivo, em decisão recente o TST manifestou-se contra o reconhecimento de relação de trabalhovi e, da mesma forma, o STF.vii No entanto, seguem alguns TRTs ou Juízos trabalhistas reconhecendo o vínculo empregatício, atentos à CLT de 1943, negando-se a interpretá-la segundo as mudanças do mundo e da sociedade ocorridas nos últimos oitenta anos.

  1. Discurso e inércia estatal

Este tema merece uma coluna exclusiva, tantos são os casos de inércia de poder público. Mas citemos apenas um. Os órgãos ambientais estaduais ressentem-se de grave falta de peritos da Polícia Científica. Na outra ponta, todos proclamam a necessidade de proteção do meio ambiente. A jurisprudência preponderante é no sentido de que os crimes ambientais exigem perícia da Polícia Científica, sendo nula sentença baseada em auto de infração do órgão ambiental, disto resultando a absolvição.viii Resultado: no mundo real, boa parte dos processos criminais ambientais têm o triste destino de serem iguais a nada. A inércia do poder público em criar uma estrutura na Polícia Científica condizente com a necessidade do momento atual conflita com longos discursos que enaltecem a proteção do meio ambiente

Assim vai o Direito transitando por caminhos novos, com a participação de parcela de profissionais menos preocupados com os resultados de suas pesquisas ou aplicação das normas do que com a afirmação de suas ideias ou projetos pessoais. Recolocar as coisas nos seus devidos lugares é dever dos que, realmente, se preocupam com a melhoria do sistema. Mantém-se atual a frase de Carlos Maximiliano: "O direito precisa transformar-se em realidade eficiente, no interesse coletivo e também no individual".ix

i FISCHER, Douglas. PEREIRA, Frederico Valdez. As obrigações processuais penais positivas segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado 2023, pp. 197- 243.

ii FREITAS, Vladimir Passos de. A vítima do crime é abandonada pelo sistema de Justiça. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 19 ago.2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-ago-19/vitima-crime-abandonada-sistema-justica. Acesso em 2 set.2023.

iii CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto das Vítimas. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2258347. Acesso em 2 set.2023.

iv JUSBRASIL. Primeiro Instituto Brasileiro de Apoio a Vítimas, Pró-Vítima será lançado nesta 5ª feira, em São Paulo-SP. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/primeiro-instituto-brasileiro-de-apoio-a-vitimas-pro-vitima-sera-lancado-nesta-5-feira-em-sao-paulo-sp/1771628130. Acesso em 2 set.2023.

v O Estado de São Paulo. Goiás: ciúme de mensagem em rede social teria motivado chacina. São Paulo, 3 de setembro de 2013, Metrópole A13.

vi TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO decide que motorista não tem vínculo empregatício com Uber. Em 1º mar. 2023. Disponível em: https://www.mobiletime.com.br/noticias/03/03/2023/tst-decide-que-motorista-nao-tem-vinculo-empregaticio-com-uber/. Acesso em 2 set.2023.

vii SUPREMO TRIBUNAL FEDERA, decisão do ministro Alexandre de Moraes.. STF cassa decisão da Justiça do Trabalho sobre vínculo de emprego de motorista de aplicativo. Em 19 mai. 2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=507792&ori=1. Acesso em 2 set.2023.

viii TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ, 2ª. Câmara Criminal, Apelação Criminal n° 0001622-41.2012.8.16.0142, relator Des. Luis Carlos Xavier, j. 13 mai. 2021.

ix MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 9ª. edição, p. 6.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!