Opinião

Ausência de meio probatório hábil para averiguar danos coletivos ao consumidor

Autor

  • André Muszkat

    é sócio do CSMV Advogados mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP e especialista em Direito do Consumidor pela PUC-SP e em Contratos Empresariais pela FGV.

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31 de outubro de 2023, 20h51

Tendo em vista a evolução das relações de consumo, sua massificação por todos os meios de comunicação e formas de relacionamento, tem-se como essencial a defesa coletiva de consumidores, por meio dos órgãos competentes.

Neste cenário, destaca-se a Lei nº 7.347/85 — "Lei da Ação Civil Pública (LACP)", que "disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor (…)" entre outros.

O artigo 5° da LACP [1] estabelece o rol de legitimados extraordinários na defesa dos interesses e direitos coletivos lato sensu por meio da propositura de ação civil pública. No mesmo sentido, cite-se o artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) [2], a respeito da legitimidade ativa concorrente para a defesa dos interesses e direitos coletivos em Juízo.

Tratando-se de ação a fim de se responsabilização por eventuais danos causados  neste caso, aos consumidores  a produção de provas a respeito dos fatos, danos alegados e nexo de causalidade é essencial. Com efeito, para existir o dever de reparar (indenizar), é necessário que haja: 1) conduta ilícita; 2) dano; e 3) nexo causal entre a conduta lesiva e o prejuízo sofrido, nos termos dos artigos 186 [3] e 927 [4] do Código Civil.

Por meio da ACP em casos de relações de consumo, fica à disposição dos legitimados todos os meios de prova existentes permitidos em direito, a fim de comprovar necessário nexo de causalidade acima destacado.

Neste ponto, merece especial destaque o papel do Ministério Público, que inclusive tem a prerrogativa de "instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias" (artigo 8°, §1° da LACP [5]) antes da propositura de ação civil pública, sendo que, inclusive, "se não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente como fiscal da lei" (artigo 5°, §1° da LACP [6]).

Entretanto, apesar de dispor de todas as ferramentas acima mencionadas, tem sido cada vez mais comum a instrumentalização de ações civis públicas e outros processos coletivos, com base principalmente em listagens genéricas oferecidas por órgãos do sistema nacional do consumidor e, especialmente, por sites e plataformas privadas, especializadas em serviços de conciliação ou atendimento do consumidor pelo fornecedor.

De fato, verifica-se com frequência os pedidos de expedição de ofício a fim de que essas plataformas enviem as informações que possuem sobre determinados assuntos e empresas.

Reconhece-se a importância de tais plataformas para o dia a dia das relações de consumo. Todavia, não podem ser o único ou o principal fundamento para comprovação de alegados danos coletivos aos consumidores.

Com efeito, em tais plataformas, apesar de ser possível a verificação da existência de reclamações, essas são feitas de forma unilateral, sem a existência do contraditório, tratando-se muitas vezes de assuntos diversos e não constando a informação a respeito do eventual desfecho do caso em discussão. Não há a comprovação efetiva de um dano coletivo que transcenda a individualidade de quem apresentou eventual reclamação.

Por meio do REsp nº 1.946.020, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de ausência de força probatória dessas plataformas:

"(…)
As reclamações constantes no sítio eletrônico 'Reclame Aqui', igualmente, não são capazes de demonstrar expressividade e relevância social da alegada violação do bem jurídico a justificar a tutela de ordem coletiva, mormente porque em sua maioria tratam de defeitos diversos, não relacionados especificamente ao serviço de atendimento ao cliente.
(…)
Os elementos constantes dos autos não demonstram a existência de representatividade e de relevância social, portanto, impõe-se a improcedência dos pedidos contidos na ação, aplicando-se na hipótese os princípios da primazia do mérito e da teoria da asserção".
(Decisão monocrática, REsp nº 1.946.020, relatora ministra Nancy Andrighi, Dje. 16.8.2021  sem ênfase no original).

Em recente decisão, o TJ-RS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul) seguiu a mesma orientação. No caso em questão, verificou-se que as informações prestadas pela plataforma de comunicação entre consumidores e fornecedores não eram suficientes para comprovação de danos aos consumidores. Confira-se:

"(…)
PRÁTICAS ABUSIVAS. NÃO COMPROVADAS. ÔNUS PROBATÓRIO NÃO ATENDIDO PELO MP.
(…)
3. Os ofícios respondidos pela Senacon e pelo Procon do estado de Porto Alegre / RS, indicam inexistir reclamações análogas registradas em seus bancos de dados, reformando a precariedade da prova extraída de uma página da internet.
4. Embora aludido site exerce um fundamental papel na solução de impasses entre fornecedores e consumidores, não é prova capaz de, por si só, dar ensejo a uma ação civil pública.(…).
(…)
Ainda que o número de reclamações seja massivo, a ação civil pública não é norteada, apenas, pelo critério quantitativo. Isso porque, também deve ficar comprovada a efetiva repercussão qualitativa dos direitos em discussão.
As meras reclamações do site Reclame Aqui, não são, por si só, prova suficiente para a procedência desta ação. Primeiro, porque manifestamente unilaterais e, segundo, porque não veio aos autos o desfecho de cada uma das reclamações.
Ou seja, não se tem conhecimento se foram consideradas pertinentes, tampouco, se foram solucionadas ou não. (…)".
(16ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 5124299-67.2021.8.21.0001/RS, Relatora Desembargadora Jucelana Lurdes Pereira dos Santos, j. 28.9.2023
 sem ênfase no original).

Assim, verifica-se que a jurisprudência pátria está caminhando no sentido justamente de delimitar a utilização de repositórios de reclamações de consumidores como prova de alegado dano coletivo, cabendo ao legitimado que propõe a ação coletiva efetivamente demonstrar que aquela determinada prática reputada abusiva transcende a individualidade e tem o condão de ensejar a reparação prevista no ordenamento jurídico.

 

 


[1] "Artigo 5º – Tem legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I – o Ministério Público;

II – a Defensoria Pública;

III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;

V – a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos um ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico".

[2] "Artigo 82. Para os fins do artigo 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:

I – o Ministério Público,

II – a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal;

III – as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;

IV – as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear".

[3] "Artigo 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".

[4] "Artigo 927. Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo".

[5] "Artigo 8º Para instruir a inicial, o interessado poderá requerer às autoridades competentes as certidões e informações que julgar necessárias, a serem fornecidas no prazo de 15 dias.

§1º O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a dez dias úteis".

[6] "Artigo 5º (…).

§1º O Ministério Público, se não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente como fiscal da lei".

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  • é sócio do CSMV Advogados, mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP e especialista em Direito do Consumidor pela PUC-SP e em Contratos Empresariais pela FGV.

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