Opinião

8ª Reunião da Comissão Especial da Haia sobre proteção internacional das crianças

Autores

  • Daniele Maranhão

    é desembargadora federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região juíza de enlace e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).

  • Theophilo Antônio Miguel Filho

    é desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região juiz de enlace e mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

  • Guilherme Clamon Nogueira da Gama

    é desembargador presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) coordenador nacional da Rede Brasileira dos Juízes de Enlace e mestre e doutor em Direito Civil da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

  • Inês Virginia P. Soares

    é desembargadora federal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região juíza de enlace e mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

  • Juliano Alves Pinto

    é diplomata de carreira mestre e doutorando em Inovação Tecnológica pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e chefe da Divisão de Cooperação Jurídica Internacional no Ministério das Relações Exteriores.

  • Michelle Najara A. Silva

    é coordenadora-geral da Coordenação de Adoção e Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes procuradora Assistente do Estado de São Paulo em Brasília e mestre em Administração Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.

  • Nereida de Lima Del Águila

    é advogada da União em exercício na Procuradoria Nacional da União de Assuntos Internacionais/PGU/AGU doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB).

30 de outubro de 2023, 6h01

De 10 a 17 de outubro aconteceu, na Academia de Direito Internacional da Haia, na Holanda, o 8° Encontro da Comissão Especial sobre a aplicação da Convenção da Haia de 1980, que trata dos Aspectos Civis da Subtração Internacional de Crianças e da Convenção da Haia de 1996, a qual dispõe sobre jurisdição, lei aplicável, reconhecimento, execução e cooperação em matéria de responsabilidade parental e medidas para a proteção das crianças.

O encontro, que contou com a participação de 66 países membros, 13 países não-membros, 1 observador de país não-membro, 7 observadores intergovernamentais e 19 organizações internacionais não governamentais, foi na HCCH (Hague Conference on Private International Law — Conférence de La Haye de Droit International Privé), organização intergovernamental responsável pela edição, acompanhamento e cumprimento das Convenções da Haia de 1980 e de 1996.

123RF
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A comissão especial se reúne com alguma periodicidade, aproximadamente a cada cinco anos, tratando-se de mecanismo adequado para avaliar o bom ou mau funcionamento das regras convencionais.

O Brasil é signatário apenas da Convenção da Haia de 1980, que versa sobre Subtração Internacional de Crianças, prática consistente na remoção da criança para outro país ou na retenção de uma criança em um determinado país, por um dos genitores, sem o consentimento do outro. Esta determina que, comprovada a subtração internacional, a criança deve ser imediatamente devolvida para o país de residência habitual, a quem compete decidir os conflitos envolvendo direitos de custódia e visita.

Para tanto, os países signatários da convenção [1] devem indicar uma autoridade central com a função de promover a cooperação com as demais autoridades centrais visando o retorno seguro da criança.

É importante destacar que a Convenção da Haia de 1980 é uma forma de cooperação jurídica internacional e que possui suporte jurídico-processual nos artigos 26 e seguintes do Código de Processo Civil. Especificamente, funciona na modalidade de auxílio direto, segundo o qual a cooperação será exercida por meio de autoridades centrais dos países signatários, e que poderá resultar em busca de medida judicial que não decorra diretamente de autoridade jurisdicional estrangeira a ser submetida a juízo de delibação no Brasil, conforme estabelece o artigo 28, do CPC.

No Brasil, nos termos do artigo 15 do Decreto 11.348/23 c/c o artigo 8º da Portaria MJSP 1.223/17, o papel de autoridade central é exercido pela Acaf, cujo principal objetivo é garantir o retorno voluntário do menor ou ainda, incentivar a realização de acordo entre os genitores sobre o país de residência habitual da criança.

Não sendo possível o retorno voluntário ou a conciliação entre os pais, a Acaf encaminha o caso para a Advocacia Geral da União (AGU), que possui legitimidade ativa para ajuizar a ação de busca, apreensão e restituição do menor com base no artigo 21, inciso I, da Constituição, combinado com o disposto na Convenção da Haia de 1980, já que a AGU representa judicialmente a União, pessoa jurídica de direito público interno, que é a face do Estado brasileiro, pessoa jurídica de direito internacional. Compete à Justiça Federal o julgamento da ação, em conformidade com o artigo 109, inciso III da Constituição.

A delegação brasileira, chefiada pelo embaixador do Brasil na Haia, Fernando Simas Magalhães, e coordenada pelo diplomata Juliano Alves Pinto, contou com membros do Judiciário Federal, do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Acaf-Autoridade Central, doutora Michelle Najara A. Silva) e da Advocacia da União (advogada da União Nereida de Lima Del Águila, que atua na Procuradoria Nacional da União de Assuntos Internacionais da AGU), teve atuação importante na reunião, com intervenções que contribuíram para os documentos finais bem como com a participação na redação dos relatórios das atividades.

Da perspectiva da delegação brasileira, uma novidade em relação a outras edições das reuniões da comissão especial, foi a participação de quatro juízes de enlace, o coordenador nacional do grupo de juízes de enlace, desembargador Guilherme Calmon, e os juízes de enlace da 1ª, 2ª e 3ª Região, respectivamente os desembargadores Daniele Maranhão, Theophilo Miguel e Inês Virgínia Soares.

Essa presença ativa reflete a recente estruturação do Judiciário no tema que, dentre as medidas adotadas, pode-se destacar a designação, em 2021, pelo presidente do STF, de um coordenador nacional do grupo de juízes de enlace e a indicação de um magistrado de ligação para cada região da justiça federal. Vale lembrar que a função precípua do juiz de enlace designado pelo supremo para o cargo é a de, a partir da conexão entre juízes de estados nacionais diversos, mediar a comunicação e obter informações relevantes para que o Brasil cumpra a Convenção de 1980. O tema atualmente vem regulado na Resolução nº 449/22, do  Conselho Nacional de Justiça.

Outra novidade foi que, juntamente com representantes da África do Sul, Alemanha, Canadá, Chile, Estados Unidos, França, Reino Unido e União Europeia, representantes da delegação brasileira integraram a Comissão de Redação sobre o documento final de conclusões e recomendações da comissão especial, com base nos debates e intervenções durante as sessões da reunião da comissão especial.

No Brasil, em 79% dos casos ativos, a mãe figura como responsável pelo ato de subtração. Por esse motivo, a delegação brasileira defendeu o aprofundamento da discussão sobre a compreensão jurídica da violência doméstica para além da violência física, incluindo as outras formas de violência — psicológica, patrimonial — como estabelecido no artigo 7º da Lei Maria da Penha, bem como as dificuldades de retorno da criança para países que criminalizam a prática da subtração.

Além disso, o Brasil apresentou as boas práticas adotadas pelo país visando o efetivo cumprimento da Convenção de 1980, como a realização de mediações tanto na fase administrativa como na judicial, e o estímulo à manutenção do convívio entre a criança e o genitor requerente.

A defesa da criança pressupõe a proteção de seus pais, inclusive a proteção judicial, no local onde se encontrem, mesmo que o deslocamento para outro Estado com o filho esteja marcado pela violação em relação à guarda.

Como já mencionado, nos casos em tramitação no Brasil, a figura do genitor subtrator se concentra normalmente na mãe, geralmente brasileira, que retorna ao país após o fim do relacionamento.

Quando os conflitos interpretativos se inauguram, diante do tratamento diverso dos estados à subtração propriamente dita, é possível que a mãe que subtraiu a criança seja punida desproporcionalmente, já que no Brasil a subtração parental não é tipificada como crime, diversamente do que ocorre em vários outros estados nacionais, como, por exemplo, nos Estados Unidos. Ou seja: há estados em que a subtração de crianças por seus genitores é tema de direito civil, enquanto que em outros países a questão é matéria é tratada pelo direito penal e consequentemente o genitor acusado de praticar a subtração recebe tratamento restritivo, seja com a privação de sua liberdade, seja pela fixação de medidas protetivas ou restritivas de direitos.

A participação do Brasil na 8ª Comissão Especial foi de suma importância para não apenas apresentar às demais partes contratantes boas práticas quanto ao cumprimento da Convenção de 1980, mas também para dar eco a uma série de pautas que se tornaram relevantes e atuais com o passar dos anos, tais como a correlação entre violência doméstica e a subtração de crianças, de maneira a refletir importantes questões hoje debatidas internamente, sempre com a perspectiva de que a Convenção é o melhor instrumento disponível para facilitar o retorno tempestivo de crianças a seu país de residência habitual.

Sem perder de vista o melhor interesse da criança, foi possível endereçar a importância do direito de acesso e da não-criminalização da subtração de crianças, de maneira a que o menor não se veja alijado do convívio do genitor subtrator, o que foi amplamente apoiado, ao longo da Comissão Especial, por países como África do Sul, Argentina e Turquia, os quais, em boa medida comungam de realidades socioeconômicas semelhantes às do Brasil.

O Estado brasileiro teve a oportunidade de apresentar, no plano externo, a importância de um diálogo interinstitucional fluido, consubstanciado na harmonia entre os Poderes constituídos, que vem trazendo resultados expressivos no cumprimento correto da Convenção, ainda que, em casos excepcionais, a aplicação da exceção pelo não-retorno é realizada.

A partir do visível amadurecimento das instituições vinculadas à aplicação da convenção, por meio da consolidação da Rede de Juízes de Enlace e da plena interação entre a Acaf (MJSP), a AGU e o MRE, está sendo possível construir no Brasil extenso cabedal hermenêutico e de boas práticas, que chama a atenção positivamente de diversos Estados-partes que já vem considerando o Brasil uma referência no cumprimento da convenção.

A expectativa para 2024 é animadora. Além do trabalho cotidiano das instituições, a realização, em maio de 2024, do 1º Encontro de Juízes de Enlace da América Latina e Caribe, na cidade do Rio de Janeiro, permite pensar no protagonismo regional do Brasil e na potencialidade de sua contribuição para consolidação da aplicação da Convenção da Haia de 1980 a partir do agir, pensar e sentir latinoamericano.

 

 


[1] Atualmente são 103 países signatários da Convenção de 1980.

Autores

  • é desembargadora federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e juíza de enlace.

  • é desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região e juiz de enlace.

  • é desembargador presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), coordenador nacional da Rede Brasileira dos Juízes de Enlace e mestre e doutor em Direito Civil da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

  • é desembargadora federal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, juíza de enlace e mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

  • é diplomata de carreira, mestre e doutorando em Inovação Tecnológica pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e chefe da Divisão de Cooperação Jurídica Internacional no Ministério das Relações Exteriores.

  • é coordenadora-geral da Coordenação de Adoção e Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes, procuradora Assistente do Estado de São Paulo em Brasília e mestre em Administração Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.

  • é advogada da União em exercício na Procuradoria Nacional da União de Assuntos Internacionais/PGU/AGU, doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB).

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