Opinião

Um direito de todos: leitos de UTI privados e as portas de entrada do SUS

Autor

  • Horcades Hugues Uchôa Sena Júnior

    é advogado pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera (Uniderp) procurador do Estado de Rondônia diretor da Procuradoria Setorial da Procuradoria Geral do Estado de Rondônia junto à Secretaria de Estado da Saúde ex-defensor público do Estado do Acre e ex-servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Acre no cargo de analista processual.

30 de outubro de 2023, 11h19

A Constituição prevê em seu artigo 196 que a saúde é um direito de todos e dever do Estado. As ações e serviços de saúde pública constituem um sistema único (artigo 198), o qual as instituições privadas podem participar de forma complementar, mediante contrato de direito público ou convênio, conforme previsão do artigo 199, § 1º. Por sua vez, o caput do artigo 199 dispõe que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

Nota-se que há distinção entre a saúde prestada pela iniciativa privada e a participação privada no Sistema Único de Saúde (SUS).

Rogerio Santana
Rogerio Santana

Há no primeiro caso uma atividade econômica com incidência de normas cogentes, em que há livre iniciativa para a prestação do serviço. Nesse caso, a relação entre o cliente e o estabelecimento se submete a um regime jurídico próprio, inclusive com aplicação de normas consumeristas.

Já no segundo caso, a atuação dos estabelecimentos privados está dentro do SUS, razão pela qual o prestador está submetido à regulação promovida pelo ente público pelo qual foi contratado ou conveniado. Consequentemente, a relação entre os usuários e o hospital privado não é consumerista, submetendo-se ao mesmo regime de responsabilidade civil do Estado. Nesse sentido, corretamente inclusive, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça no RESP 1771169.

Feita essa distinção, sendo o sistema público de saúde um direito subjetivo do cidadão, pretende-se refletir neste breve estudo sobre a seguinte questão: o paciente que está internado em um leito de UTI privado (que não integra o SUS) tem o direito de migrar para um leito de UTI público?

Antes de responder a essa questão, é preciso lembrar que, apesar da previsão constitucional, infelizmente os recursos públicos ainda são limitados, razão pela qual não raro existe uma "fila de espera" para ingressar em um leito de UTI público.

Com isso, esse paciente que está internado em um leito de UTI privado está "concorrendo" com um paciente da rede pública que ainda não está recebendo esse tipo de atendimento.

Não se pode também precisar de forma uniforme as razões que levam os pacientes a inicialmente buscarem a rede privada para posteriormente buscarem a migração para a rede pública.

Essa circunstância pode envolver diversos fatores, como, por exemplo, uma internação mais longa do que a esperada, gerando então uma dívida maior do que a expectativa da família do paciente; uma forma de mais rapidamente ser atendido, considerando as "filas de espera" na regulação do leito de UTI; problemas relacionadas à operadora do plano de saúde, como ocorre na situação de inadimplência do usuário; inadimplência perante o hospital privado.

Pois bem.

Para ingressar no SUS, o usuário deve passar pelas chamadas "portas de entrada", conforme preceitua o artigo 2º, III, do Decreto Federal nº 7.508/2011, definidas como os "serviços de atendimento inicial à saúde do usuário no SUS".

O Decreto inclusive estabelece quais são as "portas de entrada" do SUS:

Art. 9º São Portas de Entrada às ações e aos serviços de saúde nas Redes de Atenção à Saúde os serviços:
I – de atenção primária;
II – de atenção de urgência e emergência;
III – de atenção psicossocial; e
IV – especiais de acesso aberto.
Parágrafo único. Mediante justificativa técnica e de acordo com o pactuado nas Comissões Intergestores, os entes federativos poderão criar novas Portas de Entrada às ações e serviços de saúde, considerando as características da Região de Saúde.

Com base na legislação de regência, portanto, e aí incluindo a Lei 8.080/1990, inexiste previsão para regulação leitos de UTI oriundos de hospitais privados.

Apesar da inexistência dessa previsão normativa, os cidadãos têm buscado o Judiciário no intuito de serem incluídos no SUS mesmo não passando por essas "portas de entrada".

O tema ainda não está pacificado nos Tribunais de Justiça.

Há decisões reconhecendo a validade do ingresso no SUS pelas "portas de entrada". Nesse sentido, cite-se os acórdãos dos Tribunais de Justiça dos Estados de Sergipe e do Tocantins (grifo nosso):

AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO COMINATÓRIA – TUTELA DE URGÊNCIA ANTECIPADA PARA COMPELIR O ESTADO DE SERGIPE A CUSTEAR A AGRAVADA EM UTI DO HOSPITAL PRIMAVERA ATÉ MELHORA DE QUADRO CLÍNICO QUE POSSIBILITA-SE TRANSFERÊNCIA – DEMANDANTE QUE POR CONTA PRÓPRIA DIRIGIU-SE À EMERGÊNCIA DE HOSPITAL PARTICULAR – REQUISITO DA PORTA DE ENTRADA INOBSERVADO – AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DE UTI POR MÉDICO VINCULADO AO SUS – INOBSERVÂNCIA DO ART. 28 DO DECRETO 7.508/11 – ANTECIPAÇÃO DE TUTELA REVOGADA – RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (Agravo de Instrumento nº 201800734590 nº único0010689-09.2018.8.25.0000 – 1ª CÂMARA CÍVEL, Tribunal de Justiça de Sergipe – Relator (a): Iolanda Santos Guimarães – Julgado em 24/05/2019)
(TJ-SE – AI: 00106890920188250000, Relator: Iolanda Santos Guimarães, Data de Julgamento: 24/05/2019, 1ª CÂMARA CÍVEL)
(….)
EMENTA APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. INTERNAÇÃO POR COVID EM UTI DE HOSPITAL PARTICULAR. PRETENSÃO DE PAGAMENTO DAS DESPESAS PELO ESTADO. NÃO OBEDIÊNCIA AO "PROTOCOLO DE FLUXO DE ADMISSÃO DE PACIENTES NA UTI- COVID 19". ESTADO NÃO É OBRIGADO A CUSTEAR HOSPITAL PARTICULAR ESCOLHIDO PELA PARTE. 1. De acordo com o "Plano de Contingência do Tocantins/ Novo Coronavírus, de 26 de junho de 2020", "(a) o paciente é admitido em uma das portas de entrada do SUS: através da Unidade de Pronto Atendimento – UPA, no caso de urgência/emergência, ou através do Pronto Socorro – PS, no caso de demanda espontânea de pacientes urgentes; (b) o médico assistente faz o atendimento e a elaboração do prontuário, com descrição e evolução do prognóstico de cada paciente, e, se houver necessidade de leito de UTI – COVID 19, solicita vaga junto ao Núcleo Interno de Regulação – NIR; (c) por sua vez, o Núcleo Interno de Regulação faz a reavaliação do paciente e solicita vaga para a Regulação Estadual, responsável pela liberação dos leitos de UTI das Unidades Hospitalares do Estado do Tocantins". 2. Parte que optou pela internação em leito de UTI da rede privada ante a quantidade de pessoas na fila aguardando atendimento na Upa Sul de Palmas/TO, sem ter seguido o "protocolo de fluxo de admissão de pacientes na UTI- COVID 19". Hospital privado não é uma das portas de entrada de acesso ao SUS (salvo exceção normatizada). Não houve busca administrativa para inserção do paciente junto ao Sistema Único de Saúde. Conforme informações do NATJUS, no ESUS não há registro de atendimento em favor do autor pela UPA Sul ou em outras unidades de saúde vinculadas à Secretaria Municipal de Saúde de Palmas. 3. Embora se reconheça que o direito à saúde é direito universal e que deve ser estendido a todos os cidadãos, de acordo com os ditames constitucionais (art. 196, CF), deve ser respeitada a paridade de tratamento, a isonomia, o direito de igualdade entre os semelhantes, que deve ser levado a efeito como sinuelo a todas as pessoas. Justificativa da parte apelante foi de que a fila para atendimento na UPA-SUL estava demasiadamente extensa, não sendo possível a espera, o que deixa desproporcional e desigual o tratamento dispensado aos demais pacientes que estavam na fila. 4. Recurso de apelação conhecido. Provimento negado. (Apelação Cível 0007001-38.2021.8.27.2729, Rel. MAYSA VENDRAMINI ROSAL, GAB. DA DESA. MAYSA VENDRAMINI ROSAL, julgado em 10/08/2022, DJe 18/08/2022 15:58:41)
(TJ-TO – AC: 00070013820218272729, Relator: MAYSA VENDRAMINI ROSAL, Data de Julgamento: 10/08/2022, TURMAS DAS CAMARAS CIVEIS, Data de Publicação: 18/08/2022)

Por sua vez, o Tribunal de Justiça de Rondônia deu entendimento diverso à matéria na ocasião de julgamento da apelação da ação civil pública nº 7010096-47.2020.8.22.0007:

CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SAÚDE. DIREITO FUNDAMENTAL. UTI. SECRETARIA ESTADUAL DE SAÚDE. NORMATIVA INTERNA. CENTRAL DE REGULAÇÃO. PACIENTES PROVINDOS DA REDE PARTICULAR DE SAÚDE. RECUSA AUTOMÁTICA. TUTELA DE URGÊNCIA. SENTENÇA CONFIRMATÓRIA.
A concessão de vaga em leito de UTI deve decorrer da criteriosa avaliação de equipe médica da Central de Regulação, com vista a dimensionar o grau de risco que o quadro da doença pode oferecer ao paciente, por isso que a recusa injustificada de internação, lastreada no só fato de provir da rede particular, viola direito fundamental à saúde, com risco de dano irreparável, se a requisição de vaga deve inserir o postulante na lista de espera, a ser avaliada conforme os critérios de gravidade, necessidade e urgência, e não excluí-lo, de plano, pela condição de sua origem. Apelação a que se nega provimento.

Embora com diferenças do caso aqui analisado, o Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou sobre a inexistência do direito subjetivo à "diferença de classes".

No Tema 579, entendeu-se que é "é constitucional a regra que veda, no âmbito do SUS, a internação em acomodações superiores, bem como o atendimento diferenciado por médico do próprio Sistema Único de Saúde, ou por médico conveniado, mediante o pagamento da diferença dos valores correspondentes".

O leading case foi o Recurso Extraordinário 581.488/RS e, como fundamento, também se discutiu a questão "portas de entrada" no SUS. Conforme consta no relatório do voto condutor do ministro Dias Toffoli, "a Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul exigia do paciente que desejar internar-se pelo SUS dirija-se antes, obrigatoriamente, a um posto de saúde, a fim de submeter-se a uma triagem".

Nesse mesmo julgado, os princípios do SUS previstos na Lei 8.080/1990, foram abordados: a) Universalidade, como garantia de atenção à saúde por parte do sistema a todo e qualquer cidadão, por meio de serviços integrados por todos os entes da federação; b) Equidade, para assegurar que serviços de todos os níveis sejam prestados, de acordo com a complexidade que o caso venha a exigir, de forma isonômica, nas situações similares; e c) Integralidade, reconhecendo-se na prática cotidiana, que cada indivíduo seja considerado como um todo indivisível e integrante de uma comunidade, a exigir que as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde formem, também, um todo indivisível, atendendo os casos e observando os diversos graus de complexidade de forma integral pelas unidades prestadoras de serviços de saúde.

Dito isso, quando o Poder Judiciário impõe a obrigação de regulação desses leitos privados ao SUS, ocorrem diversas distorções e inconsistências.

A primeira inconsistência dessa regulação vem da própria concretização do direito à saúde.

O paciente que está internado em leito de UTI de hospital privado está em tese recebendo um tratamento médico adequado, já sob os cuidados e responsabilidade de uma equipe de saúde. Ele está devidamente assistido pela rede privada, porque optou por nela ingressar.

Por sua vez, enquanto está devidamente assistido, como visto, ele irá "concorrer" por um leito de UTI público com pacientes que ainda não estão internados em um leito de UTI, seja público ou privado.

Inegavelmente há uma vantagem ao paciente que está na rede privada.

Realmente, um paciente permanece aguardando o leito de UTI público já devidamente assistido, ainda que ao custo de um sacrifício patrimonial, enquanto outro está aguardando a vaga sem essa assistência, uma vez que obedece aos fluxos e procedimentos normais do SUS.

É aí que surge a segunda inconsistência. Esse sistema beneficia as pessoas com algum poder aquisitivo em detrimento dos grupos mais vulneráveis. É de conhecimento público e notório que os hospitais privados são acessíveis apenas a uma parcela pequena da população. Em um país extremamente desigual, a maior parte da sociedade depende exclusivamente do SUS.

Nesse cenário, os socialmente excluídos não se arriscarão a ingressar em um hospital privado enquanto aguardam a sua vaga em um leito público de UTI, e não terão oportunidade de avançar as etapas da "porta de entrada".

Em outras palavras, eventual decisão judicial impondo essa regulação cria uma nova "porta de entrada" sem observar o caráter universal do SUS.

A terceira inconsistência dessa regulação é que ela desconsidera a diferença entre a saúde pública e privada.

Como visto acima, são deveres e obrigações distintos. Ao livremente ingressar na rede privada de saúde, o paciente cria um vínculo jurídico com o estabelecimento, cabendo à instituição privada executar os serviços e proceder com o respectivo faturamento, já que o serviço não é gratuito. Ainda assim, essa instituição tem a responsabilidade de prestar assistência à saúde ao usuário conforme suas capacidades. Ao usuário, cabe efetivar o respectivo pagamento dos serviços prestados.

Eventual inadimplemento do paciente, por qualquer motivo, está dentro do risco da autonomia e gestão privada dos bens pelo usuário. Não há razão para se criar uma nova "porta de entrada" em razão de equívocos relacionados à tomada de decisão patrimonial.

Na outra frente, o prejuízo decorrente da inadimplência está dentro do risco da atividade econômica prestada pelo estabelecimento, devendo incidir as normas privadas para satisfação de obrigação.

Logo, não pode o usuário que está internado em leito de UTI privado simplesmente "solicitar" um leito de UTI público.

A concessão desse pedido, aliás, distorce o SUS.

Acarreta o anacronismo de conceder o direito subjetivo ao usuário de quando achar conveniente pleitear um leito público de UTI.

Ficaria ao alvedrio do paciente ter uma parcela da prestação do serviço de saúde na rede privada e outra na rede pública. Essa situação é claramente violadora da isonomia, pois a maior parte da população não tem o direito dessa escolha.

E, mesmo que a indicação seja médica (cujo motivo pode ser bastante questionável, já que o paciente está internado), o profissional não faz parte do SUS.

Note-se que não está propondo a exclusão desse paciente do SUS tão somente por ter buscado a iniciativa privada.

O SUS tem caráter universal. Esses pacientes ainda podem ingressar no sistema público de saúde, porém, devem seguir as normas procedimentais para esse fim, em especial as "portas de entrada" previstas no artigo 9º, no Decreto Federal nº 7.508/2011.

Autores

  • é advogado, pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera (Uniderp), procurador do Estado de Rondônia, diretor da Procuradoria Setorial da Procuradoria Geral do Estado de Rondônia junto à Secretaria de Estado da Saúde, ex-defensor público do Estado do Acre e ex-servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Acre no cargo de analista processual.

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