Opinião

A reforma da lei de arbitragem alemã

Autores

  • Max Oberfeld

    é um jurista alemão. Possui especialização em direito brasileiro pela Universidade de Humboldt em Berlim e fez seu período prático na equipe de arbitragem do escritório BMA em São Paulo.

  • Luana Matoso

    é pesquisadora e doutoranda no Instituto Max Planck para Direito Comparado e Direito Internacional Privado.

29 de outubro de 2023, 6h32

O legislador alemão anunciou que pretende reformar a sua lei de arbitragem, consolidada no décimo capítulo do Código Processual Civil alemão (ZPO). A reforma da redação atual, em vigor há 25 anos, tem como objetivo principal a modernização da lei de arbitragem por meio da digitalização, do aumento da transparência e da redução de formalismo. Para alcançar esses objetivos, o Ministério da Justiça alemão publicou no dia 18 de abril de 2023 um documento informativo (Eckpunktepapier) sobre os principais pontos da reforma.[1]

No processo legislativo alemão, essa publicação marca formalmente o primeiro passo de uma reforma legislativa, servindo como orientação para o público geral e base para que grupos de interesse se manifestem.

Este artigo tem como objetivo abordar os pontos da reforma e contextualizá-los com relação às regras em vigor. O documento informativo destaca 12 pontos a serem adressados pela reforma:

1 – Revogação da forma escrita como requisito da cláusula compromissória de arbitragem em transações comerciais
O legislador alemão pretende facilitar a celebração da cláusula compromissória de arbitragem em transações comerciais por meio da eliminação do requisito da forma escrita, estabelecido pelo atual § 1027 II ZPO. Assim, será permitida a estipulação de cláusula compromissória pela forma eletrônica ou pela via oral. A nova regra deverá ser inspirada pela opção 2 do artigo 7° da Lei Modelo da Uncitral sobre Arbitragem Comercial Internacional de 2006, que estabelece a livre forma para as cláusulas arbitrais. Essa alteração, no entanto, será aplicável apenas aos contratos empresariais, de modo que não afetará as regras especiais de proteção aplicáveis a contratos de consumo ou de trabalho.

2 – Introdução de um procedimento para a nomeação de árbitros em arbitragens multiparte
Devido ao aumento significativo de arbitragens multiparte e suas implicações práticas, pretende-se implementar disposições específicas para o processo de nomeação dos árbitros em arbitragens multiparte. Paralelamente, será previsto um procedimento em que, na ausência de consenso entre as partes, o juiz nacional nomeará os árbitros em substituição.

3 – Extensão da competência do juiz nacional para revisar decisão arbitral sobre incompetência
A atual versão do § 1040 III ZPO prevê às partes a possibilidade de recorrer ao juiz nacional para revisar uma decisão interlocutória do tribunal arbitral que declare a sua competência. A reforma legislativa pretende estender essa previsão também para os casos em que o tribunal arbitral rejeite a própria competência, de modo que as partes possam recorrer ao juiz nacional para que ele declare a validade da cláusula compromissória de arbitragem. Trata-se de um alinhamento do tratamento dado à legislação às decisões interlocutórias sobre a competência do tribunal arbitral: a partir da nova regra, todas as decisões interlocutórias sobre competência terão a mesma possibilidade de revisão pelo juiz nacional, independentemente de seu conteúdo.

O Instituto de Arbitragem Alemão (DIS) se pronunciou sobre esse tema, declarando dúvidas com relação à necessidade da alteração. O argumento principal seria de que uma decisão interlocutória que rejeite a competência do tribunal arbitral não afeta o direito de acesso à justiça das partes, já que nesse caso o juiz nacional seria, na ausência de cláusula arbitral válida, competente para conhecer e julgar o litígio. Além disso, na opinião da DIS, caso o tribunal arbitral declare a sua incompetência, devem as partes estar obrigadas a aceitar essa decisão sem possibilidade de recurso a um juiz nacional, assim como ocorre com as decisões de mérito.[2]

4 – Audiência arbitral virtual e gravação de audiências
Considerando os avanços tecnológicos e as novas práticas que se consolidaram sobretudo após a pandemia de Covid-19, pretende-se prever na legislação nacional a possibilidade de audiência arbitral por videoconferência, caso as partes não disponham em contrário. Essa prática já é consolidada em arbitragens internacionais e encontra previsão em regulamentos de instituições arbitrais, como prevê o artigo 4.3 do Regulamento de 2022 da CAM-CCBC e o artigo 24 (4) do Regulamento de 2021 da International Chamber of Commerce (ICC). Além disso, a nova regra alemã também deve prever a possibilidade da gravação de audiências arbitrais, fortalecendo, assim, a digitalizacão no direito processual.

5 – Publicação de sentenças arbitrais
Como incentivo para aumentar a transparência no processo arbitral, deverá ser introduzida previsão que permita expressamente a publicação de sentenças arbitrais, mediante consentimento das partes. Tal possibilidade é prevista também por instituições arbitrais, como o artigo 44.3 do Regulamento de 2018 do Instituto de Arbitragem Alemão (DIS) e o artigo 39.2 do Regulamento de 2022 da CAM-CCBC.

6 – Apresentação de documentos em inglês perante o juiz alemão nos processos de execução e anulação de sentença arbitral e nos processos de assistência judiciária
O legislador alemão pretende instalar as condições legislativas para que as partes possam apresentar uma sentença arbitral e demais documentos do processo arbitral em língua inglesa perante o juiz nacional, sem a necessidade de tradução, durante os processos de execução e anulação da sentença arbitral. Igualmente, pretende-se prever essa possibilidade nos casos em que cortes nacionais prestem assistência judiciária ao processo arbitral nos termos do § 1050 ZPO, como por exemplo na obtenção de provas por meio do juiz ordinário. Essa medida tem como objetivo acelerar o andamento dos processos e diminuir os custos envolvidos com as traduções.

7 – Transferência da competência para julgar pedidos de execução e de anulação da sentença arbitral para as Commercial Courts
De acordo com a redação atual do § 1062 I 4 ZPO, é dos Tribunais Estaduais Superiores (Oberlandesgerichte) a competência para o julgamento dos pedidos de reconhecimento e execução, assim como os pedidos de anulação de uma sentença arbitral. A reforma legislativa pretende possibilitar às partes a transferência dessa competência para as Commercial Courts, que devem ser em breve introduzidas no sistema judiciário alemão pela Lei para o fortalecimento dos tribunais em disputas comerciais, o Justizstandort-Stärkungsgesetz.[3]

Essa nova lei, atualmente em tramitação no parlamento alemão e inspirada no modelo inglês, pretende criar na Alemanha cortes especializadas com competência originária para julgar litígios comerciais com o valor acima de 2 milhões de euros. Essa medida tem como objetivo tornar o judiciário alemão mais atrativo para litígios internacionais, não somente pela sua especialização técnica, mas também pela flexibilidade no procedimento e pela possibilidade de condução de processos inteiramente em inglês. Dessa forma, a extensão da competência das Commercial Courts para o julgamento de pedidos relacionados a processos arbitrais estenderia os benefícios dessas cortes à arbitragem, tornando a Alemanha um país mais atrativo como sede de processos arbitrais.

8 – Anulação de sentenças arbitrais domésticas após trânsito em julgado
Buscando a harmonização do direito processual civil alemão e a equiparação das sentenças arbitrais às sentenças proferidas por cortes nacionais, o legislador pretende instaurar a possibilidade de se ajuizar uma ação anulatória contra sentenças arbitrais domésticas transitadas em julgado. Os requisitos para a anulação da sentença arbitral se orientarão pelos requisitos de anulação de sentença judicial comum, segundo o § 580 ZPO (Restituitionsklage), nomeando, entre outros, casos de corrupção do juiz.

9 – Execução de medidas de urgência advindas de tribunal arbitral estrangeiro
A reforma pretende inserir dispositivo que permita expressante a execução, pelo juiz nacional alemão, de medidas de urgência requeridas por tribunais arbitrais com sede fora da Alemanha. Sob a perspectiva da lei atualmente vigente, o cumprimento de medidas de urgência ordenadas por tribunais arbitrais com sede no estrangeiro é matéria controversa. A reforma pretende eliminar as incertezas com relação ao tema e igualar o tratamento das medidas de urgência ordenadas por tribunais arbitrais localizados dentro e fora da Alemanha.

10 – Extensão do alcance da coisa julgada das decisões judiciais nacionais sobre a admissibilidade de um processo arbitral com base no § 1032 II ZPO
O § 1032 II ZPO é um dispositivo especial do direito alemão que não encontra correspondência na Lei Modelo da Uncitral sobre Arbitragem. Trata-se de uma ação sobre a admissibilidade ou inadmissibilidade de um processo arbitral, a qual as partes podem iniciar perante o juiz nacional alemão (Antrag auf Feststellung der Zulässigkeit oder Unzulässigkeit eines schiedsrichterlichen Verfahrens).

Por trás do dispositivo está a intenção do legislador de possibilitar às partes esclarecer a questão da competência do tribunal arbitral antes de o procedimento arbitral se instaurar, garantindo maior segurança na fase de reconhecimento e execução da sentença arbitral. O objeto do pedido é que um procedimento arbitral seja declarado como admissível ou inadmissível segundo o direito alemão, sendo esse também o conteúdo da matéria que transita em julgado após o proferimento da sentença.

Nesse contexto, a doutrina diverge sobre os efeitos da sentença com base no § 1032 II ZPO com relação a um posterior processo de reconhecimento e execução da sentença arbitral. Isso porque, a princípio, os fundamentos da sentença – por exemplo, se o procedimento arbitral foi declarado inadmissível porque a cláusula arbitral é inválida – não fazem parte da coisa julgada. Controvertido na doutrina é assim, se o fundamento da invalidade da cláusula arbitral é vinculante para um futuro processo de reconhecimento e execução da sentença arbitral. Parte da doutrina defende que o fundamento da invalidade da cláusula tem efeito vinculante, outra parte sustenta opinião oposta.

Buscando esclarecer esse impasse e alcançar maior segurança jurídica, o legislador visa alterar o § 1032 II ZPO para que o juiz nacional, juntamente com a decisão sobre a admissibilidade ou inadmissibilidade do procedimento arbitral, decida sobre a existência e validade da cláusula. Dessa forma, a decisão formará, também sobre esses aspectos, coisa julgada, sendo vinculante em processos posteriores.

11 – Extensão da remissão dos autos e ressuscitação da cláusula arbitral ao processo de reconhecimento e execução de sentença arbitral
No processo de anulação de sentença arbitral pode o juiz nacional, a pedido das partes e com base no § 1059 IV ZPO, remeter os autos ao tribunal arbitral para que este prolate uma nova sentença, desde que o vício de nulidade da sentença seja sanável. De acordo com o § 1059 V ZPO, o juiz nacional pode ainda reconhecer a ressuscitação da cláusula arbitral, de modo que um procedimento arbitral possa ser retomado ou reiniciado com base na mesma cláusula, desde que a anulação não tenha como base a invalidade da cláusula.

A reforma na lei de arbitragem pretende estabelecer que essas mesmas medidas, que hoje encontram previsão legal para os processos de anulação da sentença arbitral, sejam estendidas aos processos de reconhecimento e execução de sentença, caso no bojo destes o pedido seja indeferido. Essa medida pretende fortalecer o paralelismo e a harmonia entre os processos de anulação e de reconhecimento e execução de sentença arbitral.

12 – Restrição dos poderes do juiz-presidente para tomar decisões inaudita altera pars
De acordo com § 1063 III 1 ZPO, o juiz-presidente da câmara competente tem, no procedimento de reconhecimento e execução de uma sentença arbitral, o poder de tomar certas decisões sem consulta prévia do oponente processual. A reforma pretende limitar esse poder atribuído, permitindo decisões sem a garantia do contraditório somente em casos de urgência.

Além dos 12 pontos-chave apresentados, o legislador alemão lista ainda quatro tópicos como possíveis objetos da reforma, sobre os quais ainda não se chegou a um consenso. São eles a introdução da figura do árbitro de emergência (emergency arbitrator), a possibilidade da introdução de regras sobre votos dissidentes em sentenças arbitrais, a criação de câmaras especializadas em arbitragem em diferentes estados federais alemães, e a transferência da competência originária para medidas de assistência judiciária dos tribunais locais (Amtsgerichte) para os tribunais de justiça estaduais (Oberlandesgerichte).

Apesar de a reforma ainda estar em um período inicial e não haver um texto final do projeto de lei, as mudanças foram em geral bem recebidas pela DIS e por outras instituições e profissionais atuantes no ramo. A expectativa é de que a reforma torne a Alemanha um país cada vez mais atrativo como sede para casos de relevância na arbitragem internacional. Se esse objetivo será alcançado, o futuro demonstrará. Por ora, resta aguardar os próximos passos da reforma, verificar quais mudanças serão de fato implementadas pelo texto final e como isso interferirá na prática da arbitragem na Alemanha, e fora dela.

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[1] Nota de imprensa do Ministério Federal da Justiça da Alemanha (Bundesministerium der Justiz), publicada em 18 de abril de 2023. Disponível em: https://www.bmj.de/SharedDocs/Downloads/DE/Gesetzgebung/Eckpunkte/Eckpunkte_Schiedsverfahrensrecht.html?nn=110490, último acesso em 20.10.2023.

[2] Comentários da Instituição Alemã de Arbitragem (DIS) sobre o Eckpunktepapier referente à reforma na lei de arbitragem alemã, pág. 2. Disponível em: https://www.disarb.org/fileadmin//user_upload/Ueber_uns/DIS-Mitteilungen/Stellungnahme_der_DIS_zu_den_Eckpunkten_zur_Modernisierung_des_deutschen_Schiedsverfahrensrechts.pdf, último acesso em 20.10.2023.

[3] Projeto de lei para o fortalecimento dos tribunais em disputas comerciais, publicado em 27 de abril de 2022. Disponível em: https://dserver.bundestag.de/btd/20/015/2001549.pdf, último acesso em 20.10.2023.

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  • é um jurista alemão. Possui especialização em direito brasileiro pela Universidade de Humboldt em Berlim e fez seu período prático na equipe de arbitragem do escritório BMA, em São Paulo.

  • é pesquisadora e doutoranda no Instituto Max Planck para Direito Comparado e Direito Internacional Privado.

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