AMBIENTE JURÍDICO

Debate no CNJ sobre dano climático: preços de offsets ou custo social do carbono?

Autores

  • Gabriel Wedy

    é juiz federal professor nos programas de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-doutor doutor e mestre em Direito Ambiental membro do Grupo de Trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas" do Conselho Nacional de Justiça visiting scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e pela Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) autor de diversos artigos na área do Direito Ambiental no Brasil e no exterior e dos livros O desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental e Litígios Climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro Norte-Americano e Alemão e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

  • Ramiro Peres

    é analista do Banco Central pós-doutorando na Universidade Nova de Lisboa vice-coordenador do GEP Riscos Globais (Ieac/Unifesp) e associado da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS).

28 de outubro de 2023, 12h15

Estamos aqui na revista eletrônica Consultor Jurídico para manifestar, de modo claro e democrático, a opinião de que embora sejam importantes para a política climática, os preços de mercado voluntários não refletem os reais prejuízos causados e os custos de oportunidade das emissões. O mais razoável seria inserir o custo social ou o preço sombra do carbono no processo de quantificação do dano ambiental como demonstram os mais elementares conceitos de economia e da própria ciência climática dos nossos dias.

Spacca
Aliás, recentemente, ganhou justa repercussão a ação civil pública proposta pelo IBAMA, representada pela Advocacia-Geral da União (AGU), cobrando indenização R$ 292 milhões por dano climático causado por desmatamento. Para chegar a esse valor, a parte autora partiu de uma análise da área desmatada, inferindo uma estimativa para a quantidade de gases de efeito estufa emitidos, convertidos em seu equivalente em dióxido de carbono – de acordo com o respectivo potencial de aquecimento. A seguir, multiplicou essa quantidade de gases utilizando um preço de carbono de US$ 60/tCO2e1 — valor empregado por pesquisadores da OCDE no estudo Effective Carbon Rates 2018 para calcular o carbon pricing gap (i.e., a diferença entre o preço marginal efetivamente cobrado por 1 tCO2e e o valor que deveria ser cobrado). Tal preço contrasta, porém, com o utilizado em outra demanda, esta ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF) (Processo nº 10058857820214013200), na 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas, em que a parte autora requer uma indenização de R$44,7 milhões com base nos parâmetros de monetarização de créditos de carbono utilizados no Fundo Amazônia, no valor de US$5/tCO2e.

Esse tema foi debatido, ainda que de modo bastante superficial, na Audiência Pública Quantificação de Dano Ambiental do Conselho Nacional de justiça (CNJ), realizada em 27 de julho 2023, que poderia ter enfocado de modo mais técnico a questão e necessariamente avançado neste tema de especial relevância científica e que precisa ser traduzido para o direito urgentemente. Fato, aliás, que certamente será observado pelo jurista e atual presidente do CNJ, Ministro Luís Roberto Barroso que, inclusive, poderia assumir diretamente a condução deste debate ou, ainda, tem a alternativa de delegar a tarefa para outro Ministro do STF estudioso no assunto, para o colegiado do CNJ, ou, também, ao Ministro Antonio Herman Benjamin, que é uma das autoridades mais respeitadas no âmbito do direito ambiental comparado.

O objetivo do evento, como anunciado, foi buscar um consenso — que na realidade torna-se impossível, em virtude das evidentes incertezas científicas que envolvem o tema — sobre o art. 14, primeira parte, da Resolução CNJ n. 433/2021 (a Política Nacional do Poder Judiciário para o Meio Ambiente): "Na condenação por dano ambiental, o(a) magistrado(a) deverá considerar, entre outros parâmetros, o impacto desse dano na mudança climática global, os danos difusos a povos e comunidades atingidos e o efeito dissuasório às externalidades ambientais causadas pela atividade poluidora."

De qualquer modo, em respeito ao debate, justificado com base em um simples artigo, que não resume a complexidade dos critérios que precisam estar envolvidos no debate para a quantificação do dano ambiental e climático, tentaremos, não sem algum esforço, resumir os principais pontos dessa discussão, bem como abordar a relação entre ela e outros temas onde se discutem os preços de carbono – como os mercados e as taxas referentes ao mesmo.

Preços de offsets
Apenas para ilustrar o contexto deste debate, ao usar um preço de carbono de U$5/tCO2e, o MPF baseou-se em uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) sobre o custo marginal de abatimento das emissões referente ao Fundo Amazônia. A ideia é que, seguindo o princípio do poluidor pagador, o causador do dano deveria pagar uma compensação correspondente ao custo da reparação integral do dano climático. No caso, isso seria o valor necessário para que, através do financiamento da preservação florestal, fosse evitada uma quantidade equivalente de emissões de gases de efeito estufa. Subjaz a este argumento a ideia de que comprar um offset (assim financiando o respectivo projeto do Fundo Amazônia) equivaleria a deixar de emitir 1 tCO2e.

Pode-se constatar, após simples leitura da própria página do IPAM , que o valor de U$5 / tCO2e foi estipulado há mais de uma década para emissões evitadas em 2006, sem base em estudos abrangentes, e que encontra-se bastante desatualizado:

As captações de contribuições para as emissões evitadas no ano-calendário de 2006 se iniciaram em agosto de 2008 e se estenderam até julho de 2009. Para esse primeiro período de captações foi utilizado o valor padrão de US$ 5,00/tCO2. Os valores futuros irão variar de acordo com a dinâmica do fundo, principalmente, levando em consideração a demanda de projetos. (Grifo nosso)

Pois bem, vamos aos preços de créditos de carbono de mercados voluntários para que este ponto fique mais claro para o leitor. Em linhas gerais, um crédito de carbono é um título que representa uma quantidade de gases de efeito estufa, equivalente a 1 ton de CO2, capturada – ou cuja emissão foi evitada. Indivíduos e empresas adquirem tais créditos para revendê-los em trading exchanges, ou para cumprir compromissos não cogentes de redução de emissões.

Ao longo do último ano, os preços de créditos de carbono dos mercados voluntários têm apresentado queda, e, segundo a CarbonCredits.com, hoje se encontram variando em torno de US$2/tCO2e. Os motivos seriam um excesso de oferta desses créditos (Trove Research e UCL, 2021, p. 4 e 45). Além disso, pesquisas indicam que os respectivos projetos falharam na comprovação de impactos dos mesmos (West et al., 2020), o que tem sido, aliás, amplamente repercutido pela imprensa especializada (Greenfield, 2023).

Algo similar já havia ocorrido em 2012 com os créditos associados ao Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) criado no Protocolo de Quioto, cujos preços entraram em colapso em meio a um “carbon panic” (v. IPCC, 2022). Enfim, a utilização do preço de offsets, como os do Fundo Amazônia, ou de créditos de carbono de mercados voluntários, como medida para a quantificação do dano ambiental causado por emissões, gera uma natural e evidente tendência de resultar em preços arbitrariamente artificiais, baixos e profundamente instáveis. É um preço que não vai auxiliar no combate ao aquecimento global.

Preços compulsórios (compliance)
Na condução de um debate desta dimensão não se pode ignorar que, de acordo com Carbon Pricing Dashboard, os preços de carbono utilizados em políticas climáticas referem-se a dois tipos de mecanismos compulsórios de precificação:

  1. os preços de cotas de mercados de emissões regulados (os Emissions Trading Systems, ou ETS), em que o governo estipula uma limitação para as emissões de um conjunto de setores da economia e aloca licenças para emitir, as quais por sua vez podem ser comercializadas nesse mercado2; e

  2. as taxas de carbono, um tributo que o governo impõe sobre as emissões de determinados setores da economia.

Ambos têm finalidades semelhantes: ao impor um custo financeiro sobre as emissões, eles buscam "internalizar" os danos futuros (as externalidades), desencorajando-as. Por isso, estes preços de carbono são considerados fundamentais para os esforços de mitigação das mudanças climáticas. Contudo, esses mecanismos dependem de decisões do governo, as quais têm de levar em conta diversos outros fatores – que vão desde o direito econômico internacional até cálculos sobre conveniência política (como a exclusão de alguns setores da economia). Por isso, os preços de carbono reais são inferiores aos que deveriam ser aplicados – como mostra um consenso entre economistas entrevistados pelo painel da Initiative on Global Markets (IGM) da Universidade de Chicago.

Qual deveria ser o preço do carbono?
Mas qual deveria ser o preço do carbono? Uma resposta plausível é que deveria ser o suficiente para compensar os danos correspondentes, ou o equivalente às externalidades negativas impostas ao restante da sociedade. Essa resposta pode ser justificada por uma concepção de justiça, ou até mesmo por uma análise econômica — esse, aliás, seria o que se chama de preço "ótimo".

A principal abordagem para calculá-lo é a do custo social do carbono — CSC. Esta é a metodologia adotada, inclusive, pelo governo americano desde o precedente Massachusetts v. EPA 549 U.S. 497 (2007) da Suprema Corte dos Estados Unidos, pelo qual a agência ambiental desse país foi obrigada a regular emissões de gases de efeito estufa. Embora os EUA não tenham uma taxa federal de carbono, nem um mercado de emissões nacional, o país tem uma forma de precificar emissões para fins de preservação ambiental e para a adoção do procedimento da análise de custo-benefício.

À primeira vista, essa poderia ser a abordagem adequada. No entanto, o governo brasileiro ainda não definiu um CSC, e as estimativas usadas na literatura e por diferentes governos variam muito: nos EUA, nos últimos anos, variou de US$1 (o mínimo adotado durante a Administração Trump) a US$ 51 (Carleton e Greenstone, 2021) — ainda considerado baixo, havendo quem recomende valores superiores a US$ 2.000 (Wang et al., 2009)3. Essa discrepância se deve à incerteza factual sobre os danos que serão sofridos, à trajetória social e econômica do mundo, e a discordâncias metodológicas e filosóficas sobre as taxas sociais de desconto utilizadas para compensar danos futuros de acordo com um valor atual4.

Uma abordagem alternativa é a análise dirigida a objetivos (goals-driven analysis), por meio da qual se calcula um preço sombra consistente com os compromissos de redução de emissões assumidos pelos respectivos países (por isso também é chamada de target-consistent pricing). Esta abordagem (nominada igualmente de mitigation costs approach —Vivid Economics, 2021) tem sido defendida por economistas do quilate de Joseph Stiglitz e de Nicholas Stern, entre outros (2022). É nela que se baseia o preço utilizado no estudo Effective Carbon Rates da OCDE (2018) – que por sua vez usa os valores da conclusão do Report of the High-Level Commission on Carbon Prices do Banco Mundial (2017), organizado, inclusive, pelos já mencionados Stern e Stiglitz. Aplicada à litigância climática, a externalidade que esse preço sombra representa não é o custo esperado que será suportado por gerações futuras (que é o que o CSC faz), mas o ônus imposto à sociedade, num prazo mais curto, para cumprir metas de descarbonização. Simples assim!

Qual seria esse preço sombra aplicado ao Brasil?

Infelizmente, o governo brasileiro, embora muito bem intencionado no último ano, também não produziu ainda um estudo nesse sentido. Em 2022, o Guia de Análise de Custo-Benefício para projetos de infraestrutura (Guia ACB) do Ministério da Economia incluiu o "preço sombra do carbono" na sua lista de parâmetros, mas não indicou um valor específico para ele – apenas referindo o estudo do Banco Mundial (2017) como um exemplo. Recentemente, o Projeto da COPPE / UFRJ com o Centro Clima e Desenvolvimento propõe, visando orientar o desenvolvimento do mercado de emissões brasileiro, um preço de apenas US$19/tCO2e5 em 2030 para o Brasil cumprir as metas do Acordo de Paris (La Rovere et al., 2021). Isso contrasta, porém, com um estudo do FMI (Parry et al., 2021) que conclui que um preço de carbono de US$75 / tCO2e em 2030 (um carbon floor aplicado aos maiores emissores) ainda seria absolutamente insuficiente para cumprir as NDC assumidas pelo Brasil (Parry et al., 2021, p. 14).

Essa divergência ocorre porque os dois estudos, além de usarem modelos econométricos distintos, também usam cenários diferentes sobre as demais políticas de mitigação que serão adotadas pelo governo. No entanto, pode-se, provisoriamente, concluir, que o preço sombra do carbono de 2030 no Brasil não deve ser menor do que US$19/tCO2e e possivelmente deve ser superior a US$75 / tCO2.

Conclusão: o preço de carbono do dano climático no Brasil
Em conclusão, a expressão "preço de carbono" tem diversos sentidos: pode referir-se ao preço de offsets (como os do Fundo Amazônia) ou de créditos de carbono; ou aos preços compulsórios — das cotas de um ETS, ou de uma taxa de carbono. Ou pode tratar-se de um valor pecuniário utilizado na análise econômica para medir as externalidades causadas pelas emissões (o CSC ou o preço sombra do carbono).

Como já referido, utilizar preços de offsets ou de créditos de carbono para o cálculo do dano climático acarreta sérios problemas . Uma decisão judicial que busque estabelecer um preço de carbono para reparação ambiental não deve permitir que o poluidor pague um valor menor pela emissão dos gases de efeito estufa do que aquele que deveria ser pago para cumprir com suas obrigações climáticas — sob pena de permitir-lhe beneficiar-se da própria "torpeza".

Assim, esse valor não deve ser inferior:

  1. ao preço compulsório que vier a ser cobrado no Brasil;

  2. ao preço de carbono adotado pelo governo federal para análise de custo-benefício de políticas públicas e de projetos de longo prazo;

  3. ao preço sombra consistente com o cumprimento do Acordo de Paris pelo Brasil, ou com outros compromissos de mitigação climática que venham a ser assumidos pelo país (como um preço mínimo global de carbono).

Referências

Brasil. (2021). Guia geral de análise socioeconômica de custo-benefício de projetos de investimento em infraestrutura. 2ª Versão. Ministério da Economia. Secretaria Especial de Produtividade e Competitividade. Secretaria de Desenvolvimento da Infraestrutura.

Brasília, SDI/ME. Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/governanca/comite-interministerial-de-governanca/arquivos/guia_acb.pdf

Carleton, T., & Greenstone, M. (2021). Updating the United States government's social cost of carbon. SSRN Electronic Journal. Energy Policy Institute at the University of Chicago: 50. doi:10.2139/ssrn.3764255

Busch, J., Engelmann, J., Cook-Patton, S. C., Griscom, B. W., Kroeger, T., Possingham, H., & Shyamsundar, P. (2019). Potential for low-cost carbon dioxide removal through tropical reforestation. Nature Climate Change, 9(6), 463–466. doi:10.1038/s41558-019-0485-x

Assunção, Juliano J. and Hansen, Lars Peter and Munson, Todd and Scheinkman, José. Carbon Prices and Forest Preservation Over Space and Time in the Brazilian Amazon (April 10, 2023). WORKING PAPER · NO. 2023-86 do Becker Friedman Institute. http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.4414217

IPCC (2022). "Summary for Policymakers". Climate Change 2022: Mitigation of Climate Change. Contribution of Working Group III to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge, UK: Cambridge University Press.

Greenfield, P. (2023). Revealed: more than 90% of rainforest carbon offsets by biggest certifier are worthless, analysis shows. The Guardian, publicado online em 4 de maio de 2021. Disponível em <https://www.theguardian.com/environment/2023/jan/18/revealed-

1 O termo “tCO2e” quer dizer “tonelada de dióxido de carbono equivalente” – o que permite abranger outros GEE além do gás carbônico (CO2), de acordo com o correspondente potencial de aquecimento.

2 Os preços do ETS da União Europeia se encontram hoje em torno de €90 / tCO2e, mas têm variado acentuadamente ao longo dos anos.

3 A menos que expressamente mencionado, usamos valores de 2007.

4 Uma taxa de desconto serve para trazer a valor presente o cálculo de riscos e benefícios futuros; ela decorre da observação básica de que indivíduos preferem receber / consumir $1 hoje do que no futuro, e busca medir essa preferência temporal. Assim, a taxa social de desconto (TSD) utilizada em análises de custo-benefício representa o valor presente de projetos cujos efeitos serão percebidos no futuro

5 O que converge com os valores em torno de US$20 / tCO2e para reflorestamento (v., p. ex., Busch et al., 2019; Assunção et al., 2023).

Autores

  • é juiz federal, membro do grupo de trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas, do CNJ, professor do PPG em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), vice-presidente do Instituto O Direito Por um Planeta Verde e ex-presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

  • é analista do Banco Central, pós-doutorando na Universidade Nova de Lisboa, vice-coordenador do GEP Riscos Globais (Ieac/Unifesp) e associado da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS).

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