Opinião

O manifesto do ensino do Direito Econômico de 1976

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27 de outubro de 2023, 7h08

O ano de 1976 marcou a comemoração do cinquentenário da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e, em razão disto, a promoção de diversos eventos importantes. Dentre eles, nos dias 18 a 21 de maio daquele ano, ocorreu o primeiro — e único —  Seminário de Professores de Direito Econômico. O evento gerou no ano seguinte a publicação do livro "I Seminário de Professores de Direito Econômico", que apresenta a degravação dos profícuos diálogos que ocorreram nos seminários e viabiliza a consulta daqueles que não estiveram presentes.

Participaram dos seminários, inclusive, os professores Afonso Insuela Pereira, Alberto Venâncio Filho, Ana Maria Ferraz Augusto, Antônio Angarita Silva, Eros Roberto Grau, Esteban Cottely, Fabio Nusdeo, Geraldo de Camargo Vidigal, José Alfredo de Oliveira Baracho, Maurício Lourenço da Costa, Modesto Carvalhosa e Washington Peluso Albino de Souza. A participação ativa destes notáveis professores de Direito Econômico da época nos seminários faz a degravação destes recordar os personagens dos diálogos platônicos, por vezes com breves palavras repletas de significado.

A escolha do tema inserido no aniversário da universidade não foi ao acaso: a Federal de Minas Gerais foi a precursora na instituição da disciplina de Direito Econômico na graduação, em 1970, com o professor Washington Peluso Albino de Souza. Ele já recomendava a sua implementação nas conclusões da sua tese "Ensaio de Conceituação Jurídica do Preço", de 1949. O evento buscava debater sobretudo o ensino do Direito Econômico nos cursos de bacharelado, mestrado e doutorado em Direito. Ainda naquela época, os professores já afirmavam que saíam de uma fase de justificação teórica do Direito Econômico, sobre a sua existência ou não, e estavam em uma fase de implantação nos currículos, sendo necessária a identificação das suas regras, princípios e institutos próprios da disciplina.

Ao longo dos seminários, os participantes já cogitavam concluir o evento com um documento final a ser chamado de Carta do Caraça. Este documento foi efetivamente debatido, aprovado e publicado pelos professores participantes. O documento conclui pela importância do ensino da disciplina do Direito Econômico tanto na graduação quanto na pós-graduação e apresenta uma sugestão de conteúdo mínimo que deve ser analisado pela disciplina.

Talvez esta busca pelo conteúdo mínimo a ser abordado pelo Direito Econômico transmitido aos alunos — e que gerou tantas discussões, por vezes acaloradas, entre os professores que participaram do Seminário – seja o mais interessante resultado do evento. Alberto Venâncio Filho referiu que havia a necessidade de se evitar um "imperialismo" do Direito Econômico ao se encarar como o Direito da atividade econômica, pois resultaria em abarcar todo o campo das relações patrimoniais, que são estudados por outros ramos do Direito, como o Direito Civil (salvo a área de família), Comercial, do Trabalho, Administrativo, dentre outros.

Problemas como a injustiça na distribuição de riqueza e renda, na livre concorrência e crises econômicas cíclicas empurraram ao Estado a necessidade de promoção do desenvolvimento (e não apenas o crescimento) e do bem-estar social. O Estado passou de um espectador da desigualdade crescente a um propulsor da redução da desigualdade. Eis que surge o papel do Direito Econômico. Embora não tenha sido apresentado um consenso unânime sobre o que seria o Direito Econômico, Fábio Nusdeo referiu que a norma de Direito Econômico não busca contrariar princípios básicos do mercado que seguem as leis da economia, próprias do "mundo do ser", mas buscar transformar o status quo naqueles objetivos/finalidades através do próprio Direito (dever-ser). Mesmo sem uma definição unânime, formas de atuação do Estado na economia, planejamento, repartição, consumo, crédito, poupança, estoques, emprego, concorrência, câmbio, política fiscal e monetária são temas comumente citados que podem ser abordados pelo Direito Econômico.

O mesmo fato econômico e social pode ser abordado por mais de uma disciplina do Direito. Eros Roberto Grau traz o exemplo da falência, onde o Direito Comercial trata do aspecto microjurídico, versando sobre os interesses individuais dos sujeitos envolvidos. Já quando se observa sob o Direito Econômico, se verifica de forma macrojurídica, ou seja, a proteção que a norma confere e que visa diretamente o interesse social de todos os agentes atuantes no mercado, ou atingidos pela atuação destes, e apenas indiretamente está o interesse individual do caso concreto.

Sobre o ensino em si, Afonso Insuela Pereira já referia naquela época um problema no ensino que infelizmente ainda persiste. Referia que o bacharel em Direito não deveria obter um diploma "na forma da lei vigente". É necessário preparar o bacharel com uma abordagem crítica, reflexiva e aberta dos conteúdos. Esta abordagem é especialmente importante para o dinâmico Direito Econômico, embora não se deva perder de vista que se está a tomar em consideração, para resolver os problemas pertinentes, o Direito positivo, e que é a partir das modificações que são produzidas neste que se verifica o rumo adotado pela política econômica em geral.

No evento, Washington Peluso Albino de Souza, destacando a importância do Direito Econômico, referiu que o seu "surgimento" durante as Guerras Mundiais é comparável ao surgimento do Direito Comercial durante grande época das navegações, ao do Direito Trabalhista na grande fase das lutas de classe e ao do Direito Canônico na Idade Média.

Embora não fosse explicitada a sua existência antes das Guerras Mundiais, não significa que uma política econômica juridicamente regulamentada estava ausente, justamente distinguindo-se entre o Direito dos juristas, enquanto ramo do conhecimento humano, e o Direito positivo, os comandos emanados a partir de quem esteja investido em capacidade nomogeradora. Entretanto, infelizmente, atualmente a pesquisa sobre o Direito Econômico parece se limitar à procura de uma linha de menor custo/benefício e de liberdade de iniciativa. Estes objetos são apenas uma ínfima fração daquilo que pode ser estudado pelo Direito Econômico.

A limitação do ensino do Direito Econômico e do seu espectro a estes aspectos se apresenta como um injustificado esquecimento dos esforços dos professores que desbravaram as potencialidades da disciplina, e passa ao largo da advertência, segundo a qual os problemas reais não deixam de existir pelo simples fato de que admitir-lhes a existência seja desconfortável aos que esposam tal ou qual sistema de crenças, disputando entre si para mostrarem quem é o mais ortodoxo.

Atualmente, o Direito Econômico não é uma disciplina obrigatória imposta pelo Ministério da Educação no curso de graduação em Direito, embora algumas (poucas, de que se tem notícia) faculdades a tenham tornado obrigatória em suas grades. Muitas nem sequer ofertam a disciplina de forma eletiva.

No evento de 1976, Alberto Venâncio Filho referiu que o órgão estatal não deveria efetivamente impor a obrigatoriedade da disciplina, pois seria necessária a supressão de outra disciplina no já escasso tempo de estudo do bacharelando em Direito, embora tenha referido que seria importante que as faculdades a adotassem como obrigatória. Eros Roberto Grau, que posteriormente se tornou ministro do Supremo Tribunal Federal, defendeu a sua obrigatoriedade em todas as faculdades.

A despeito da preterição da disciplina, professores que acreditam no seu valor aos alunos e ao país realizam eventos, formam grupos de pesquisa, publicam trabalhos em que facilmente se expõe a sua importância. Em 2021, foi publicado o Manifesto da Rede de Professores e Pesquisadores de Direito Econômico que se aproxima da Carta do Caraça publicada anteriormente e reforça a necessidade da pesquisa na disciplina em prol do próprio país.

Não se trata de uma disciplina que busca necessariamente o aumento do tamanho ou da atuação do Estado na economia, mas da concretização da ideologia constitucionalmente adotada. Na alternância democrática dos governos, pode haver maiores inclinações a favor do aumento ou da diminuição da atuação do Estado na seara econômica, inclusive diante dos cenários que se apresentem, desde que não ultrapassados os limites que a própria Constituição estabelece, seja na ampliação, seja na redução de sua atuação. Independentemente, o estudo da disciplina se revela importante instrumento para o avanço econômico e social brasileiro.

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