Opinião

Controle de zoonose como direito social e ambiental

Autor

26 de outubro de 2023, 7h06

A zoonose é definida pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como "qualquer doença ou infecção que seja naturalmente transmissível entre animais vertebrados e seres humanos". Segundo a organização, existem mais de 200 tipos de zoonoses, que podem ser causadas por vírus, bactérias, fungos, parasitas ou príons. Algumas das zoonoses mais conhecidas são a raiva, a leptospirose, a leishmaniose, a toxoplasmose, a brucelose, a tuberculose e a Covid-19.

As zoonoses representam um grave problema de saúde pública, pois podem causar morbidade e mortalidade tanto nos animais quanto nos seres humanos, além de gerar impactos econômicos e sociais negativos. A OMS estima que as zoonoses são responsáveis por cerca de 2,5 bilhões de casos de doenças humanas e 2,7 milhões de mortes por ano no mundo. Além disso, as zoonoses podem provocar emergências sanitárias globais, como as pandemias de gripe aviária (H5N1), gripe suína (H1N1) e Covid-19 (SARS-CoV-2), que afetaram milhões de pessoas e causaram enormes prejuízos econômicos.

Diante desse cenário, o controle de zoonose se torna uma medida essencial para prevenir e combater as doenças transmitidas entre animais e seres humanos, bem como para proteger o bem-estar dos animais e a qualidade do meio ambiente. O controle de zoonose envolve diversas ações integradas e multidisciplinares, que vão desde a vigilância epidemiológica, o diagnóstico laboratorial, o tratamento clínico e a vacinação até a educação sanitária, o manejo ambiental e o controle populacional dos animais.

No Brasil, o controle de zoonose é um dever do poder público, que deve atuar em todos os níveis federativos (União, estados e municípios) para garantir os direitos sociais e ambientais previstos na Constituição. A Carta Magna estabelece que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado (artigo 196), que o meio ambiente é um bem comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (artigo 225) e que compete aos entes federativos proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (artigo 23). Além disso, a Constituição atribui aos municípios a competência para organizar e prestar os serviços públicos de interesse local (artigo 30).

Nesse sentido, cabe aos municípios implementar políticas públicas efetivas para o controle de zoonose em seus territórios, respeitando as normas federais e estaduais sobre a matéria. Entre essas normas, destacam-se a Lei Federal nº 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a Lei Federal nº 9.605/98, que estabelece as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, a Lei Estadual nº 12.961/08, que institui o Programa Estadual de Controle Populacional de Cães e Gatos, o Código de Proteção aos Animais do Estado de São Paulo (Lei Estadual nº 11.977/05) e o Código de Posturas do Município de Paraguaçu Paulista (LCM 15/1995).

No entanto, nem sempre os municípios cumprem adequadamente suas obrigações legais no que se refere ao controle de zoonose, seja por falta de recursos financeiros, humanos ou materiais, seja por falta de vontade política ou planejamento estratégico. Essa situação pode gerar danos irreparáveis à saúde pública, aos animais e ao meio ambiente, bem como ensejar a responsabilização civil, administrativa e penal dos agentes públicos envolvidos.

Nesse contexto, surge o papel do Ministério Público como instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, incumbido da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, artigo 127). O Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (CF, artigo 129, III), bem como para expedir recomendações visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública (LC 75/93, artigo 6º, XX).

Assim, o Ministério Público pode atuar na fiscalização e na cobrança das medidas necessárias para o controle de zoonose por parte dos municípios, podendo inclusive recorrer ao Poder Judiciário para compelir o cumprimento das normas constitucionais e legais sobre a matéria. Nesse caso, cabe ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional da atuação administrativa do poder público municipal, verificando se há omissão ou ilegalidade na implementação das políticas públicas de controle de zoonose e determinando as providências cabíveis para a garantia dos direitos fundamentais em jogo.

Um exemplo dessa atuação judicial é a decisão proferida pelo TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) na Apelação Cível nº 0004160-69.2009.8.26.0417, que será objeto de análise neste artigo.

Decisão do TJ-SP sobre a construção de um centro de controle
A decisão em questão foi proferida pelo TJ-SP em 27/8/2014, em uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra Paraguaçu Paulista. O objeto da ação era a condenação do município nas seguintes obrigações de fazer: construção de canil/gatil, recolhimento dos animais abandonados, castração, tratamento médico adequado e registro.

O MP alegou que o município era omisso na prestação dos serviços públicos relativos ao controle de zoonose, deixando de cumprir as normas constitucionais e legais sobre a matéria. Segundo a promotoria, essa omissão acarretava riscos à saúde pública, à proteção dos animais e à preservação do meio ambiente.

O município contestou a ação, sustentando que não havia prova da existência de animais abandonados nas ruas da cidade, que já realizava campanhas periódicas de vacinação e castração dos animais domésticos e que não dispunha de recursos financeiros para construir um centro de controle de zoonoses.

O juízo de primeiro grau julgou procedente a ação civil pública, condenando o Município nas obrigações requeridas.

O município apelou da sentença, alegando que a decisão violava o princípio da separação dos poderes, pois interferia na discricionariedade administrativa do Poder Executivo municipal, impondo-lhe obrigações que extrapolavam suas possibilidades financeiras e orçamentárias. O município também argumentou que não havia prova de que a construção de um centro de controle de zoonoses fosse necessária ou eficaz para o controle de zoonose, e que já existiam outras medidas em andamento para esse fim.

O TJ-SP negou provimento ao recurso do município, mantendo a sentença em sua maior parte. O tribunal entendeu que a decisão não representava ofensa ao princípio da separação dos poderes, mas sim o exercício do controle jurisdicional da atuação administrativa do poder público municipal, diante da omissão que repercutia sobre toda a coletividade. O TJ-SP afirmou que o Poder Judiciário pode compelir o ente estatal a adotar medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, como a saúde e o meio ambiente, desde que haja previsão legal e fática para tanto.

O tribunal paulista também reconheceu que o controle de zoonose é uma questão de relevância pública, que envolve a garantia de direitos sociais e ambientais, e que cabe ao município cumprir as normas constitucionais e legais sobre a matéria. O TJ-SP citou a legislação federal, estadual e municipal que disciplina o controle de zoonose, bem como os precedentes do STF que afirmam a competência dos municípios para organizar e prestar os serviços públicos de interesse local, inclusive os relativos à saúde e ao meio ambiente.

O TJ-SP ainda destacou que havia prova nos autos de que o Município era omisso na prestação dos serviços públicos relativos ao controle de zoonose, deixando de construir um centro de controle de zoonoses, de recolher os animais abandonados, de castrar, de tratar e de registrar os animais domésticos. O tribunal ressaltou que essa situação gerava riscos à saúde pública, à proteção dos animais e à preservação do meio ambiente, além de violar os princípios da dignidade da pessoa humana, da prevenção e da precaução.

Por fim, o TJ-SP reformou parcialmente a sentença apenas para dilatar para no máximo três anos o prazo para a construção do centro de controle de zoonoses, obra que deve receber o necessário estudo e planejamento, com a prévia dotação orçamentária. O tribunal considerou que esse prazo era razoável e proporcional para viabilizar a execução da medida judicialmente imposta, sem comprometer as demais obrigações do município.

A decisão do TJ-SP foi acertada ao reconhecer a relevância do controle de zoonose para a garantia da saúde pública, da proteção dos animais e da preservação do meio ambiente, bem como ao determinar ao Poder Executivo municipal o cumprimento de suas obrigações constitucionais e legais, sem violar o princípio da separação dos poderes. Também se baseou em provas consistentes da omissão do município na prestação dos serviços públicos relativos ao controle de zoonose, que gerava riscos à coletividade e aos animais.

A decisão contribuiu para a efetivação dos direitos sociais e ambientais, para a promoção da saúde pública, para a defesa dos animais e para a melhoria da qualidade de vida da população de Paraguaçu Paulista. Decisões semelhantes devem ser tomadas em outros casos de omissão municipal nesse tipo controle, visando à implementação de políticas públicas efetivas e integradas para o enfrentamento das zoonoses no Brasil.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!