Opinião

Reclamação constitucional, processo e identidades laborais

Autores

  • Simony Braga

    é advogada sócia do escritório Da Fonte Advogados especialista em Direito Laboral e Governança Global pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha) e membro consultora da Comissão de Direito Sindical do Conselho Federal da OAB.

  • Ronaldo Ferreira Tolentino

    é advogado sócio do escritório Ferraz dos Passos Advocacia especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e presidente da Comissão Especial de Direito do Trabalho do Conselho Federal da OAB.

23 de outubro de 2023, 18h17

Instituto genuinamente brasileiro [1], sem precedentes em outros sistemas jurídicos, a reclamação constitucional assume protagonismo. Com recorrência, o Supremo Tribunal Federal está enfrentando celeumas de grande impacto nas relações de trabalho, a exemplo de terceirização, contrato de franquia e negociado sobre o legislado, dentre outros.

Historicamente, muitas foram as correntes sobre a natureza jurídica da reclamação constitucional ou, simplesmente, reclamação. Apontada como medida administrativa similar à reclamação correicional ou correição parcial, como direito de petição, recurso, sucedâneo recursal, incidente ou verdadeira ação, a reclamação pode ter o seu cabimento justificado na Teoria dos Poderes Implícitos, precedendo à sua previsão em lei [2].

A divergência doutrinária quanto à natureza da medida transborda para os tribunais. O entendimento do próprio STF não é unínosso. O ponto convergente admite, no entanto, que a reclamação se apresenta como medida de cunho jurisdicional. Tome-se, como exemplo, a posição contida na Reclamação 831, que assim dispõe: "Como quer que se qualifique – recurso, ação, ou medida processual de natureza excepcional, (…). Todos os institutos de natureza jurisdicional".

A Constituição possibilita plenamente o manejo da reclamação constitucional (v.g. artigos 102, l, 105, f e 111-A, §3º). O Código de Processo Civil, em seu artigo 988, §1º, prevê a possibilidade de utilização da ação em qualquer tribunal para: (1) preservar a competência do tribunal; (2) garantir a autoridade das decisões do tribunal; (3) garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; e, (4) garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demanda repetitiva ou de incidente de assunção de competência.

De acordo com a Súmula 734, do STF, o limite temporal para a propositura da ação é o trânsito em julgado da decisão. Até que esse ato-fato processual ocorra, a reclamação pode ser proposta, ante a ausência de prazo para tanto, de acordo com a jurisprudência dominante do STF. Imperioso destacar que, proposta a reclamação, se vier a ser julgada procedente, a decisão produzirá efeitos em relação à decisão ou ato impugnado, ainda que tenha ocorrido – neste intervalo – o trânsito em julgado. Nas palavras de Claudio Brandão, a coisa julgada ficará sob condição legal resolutiva, vinculada ao julgamento da ação.

Segundo recente pesquisa desenvolvida pela USP [3], em que se analisou 303 ações relativas à competência da Justiça do Trabalho no STF, verificou-se que 88 delas são reclamações constitucionais, das quais, apenas 15% foram julgadas improcedentes pelo STF. As ações versam processos relativos a trabalhadores de plataformas, motoristas autônomos de cargas, parceiros em salões de beleza, corretores de imóveis, médicos, representantes comerciais e advogados associados.

O TST encontra-se no mesmo patamar do Superior Tribunal de Justiça, sendo, de igual modo, corte de precedentes no que se refere à interpretação e aplicação da legislação trabalhista. É, portanto, a corte competente para dar a última e definitiva palavra sobre o tema, ressalvada a competência constitucional do Supremo.

O STF — em linha com os tempos atuais amplamente afetados pelos novos e diversos contornos do Direito do Trabalho — aduz que a interpretação conjunta dos precedentes permite o reconhecimento da licitude de outras formas de relação de trabalho que não a relação de emprego regida pela Consolidação das Leis do Trabalho, como na terceirização, mas não se limitando a ela. A corte, desta feita, firma posicionamento no sentido de que é possível a existência de modelos alternativos de relação de trabalho.

Em caso concreto, o ministro Luiz Fux, na RCL 54.738, afirma que: "o plenário do Supremo Tribunal Federal já decidiu em inúmeros precedentes o reconhecimento de modalidades de relação de trabalho diversas das relações de emprego dispostas na CLT" [4].

Na Rcl 56.285, o ministro Barroso [5] pontuou que o contrato de emprego não é a única forma de se estabelecerem relações de trabalho; um mesmo mercado pode comportar alguns profissionais que sejam contratados pelo regime da CLT e outros profissionais cuja atuação tenha um caráter de eventualidade ou mais autonomia. Desse modo, são lícitos, ainda que para a execução da atividade-fim da empresa, os contratos de terceirização de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica, desde que o contrato seja real, em obediência ao princípio do contrato realidade, visto que prevalecerá a situação de fato sobre o ajuste formal, quando não coincidentes.

Nas reclamações constitucionais, em que se discute vínculo empregatício, vê-se reiteradas situações em que não há prova de vício de consentimento no pacto formalizado e, ainda, que a parte contratada possui flagrante hipersuficiência, nos termos da lei, com ênfase à capacidade intelectual.

Nesta senda, o julgado na ADPF nº 324 e a tese do Tema nº 725 RG justificam a procedência de reclamação constitucional para afirmar a licitude do fenômeno da contratação de pessoa jurídica unipessoal para prestação de serviço à empresa tomadora de serviço, destacando-se não apenas a compatibilidade dos valores do trabalho e da livre iniciativa na terceirização do trabalho assentada nos precedentes obrigatórios, como também a ausência de condição de vulnerabilidade na opção pelo contrato firmado na relação jurídica estabelecida a justificar a proteção estatal por meio do Poder Judiciário [6].

Atravessando diversas posições sobre o cenário de decisões proferidas pelo STF, com repercussão no ecossistema trabalhista, é fato que a reclamação constitucional se revela meio processual hábil e plenamente eficaz para garantir o cumprimento de precedentes com efeito vinculante e, por conseguinte, a uniformização jurisprudencial.

Certo é que a reclamação constitucional vem se consolidando como instrumento estratégico de prestação jurisdicional tempestiva, efetiva e adequada, na medida em que visa a segurança jurídica mediante reforço emanado pela Corte Suprema.

No entanto, o STF vem sofrendo duras críticas de parte da Justiça do Trabalho em relação às decisões proferidas em sede de reclamação constitucional. Com a devida vênia, dos que pensam em contrário, parece faltar o questionamento sobre o que tem levado a Corte Suprema a proferir referidas decisões.

A resposta, ao nosso ver, passa pela recalcitrante postura de parte da Justiça do Trabalho em aceitar o quanto decidido no Tema 725 de Repercussão Geral e na ADP 324, dentre outras decisões da Corte Suprema.

Sob essa óptica, não é razoável fazer da regra, exceção (licitude de outras formas de contratação que não a CLT); e da exceção, a regra (o reconhecimento de fraude).

Em arremate, é fundamental que a Justiça do Trabalho amplie os horizontes e admita as discussões acerca das novas formas de relações do trabalho, tal qual decidido pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de continuar sendo judiciariamente disciplinada por esta corte.

Limitar a discussão a quem tem ou não competência é conferir visão míope à temática e negligenciar todo o movimento de mutação que as formas de trabalho têm sofrido desde o último meio século. O receio da precarização, aquela vivenciada nos moldes da revolução do século 19, não pode paralisar quem tem legitimidade para mudar o curso da história. Em linhas finais, correr à revelia é cegar para a realidade posta.

 

 


[1] DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Reclamação Constitucional no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2000. p. 385-429

[2] MENDES, Gilmar Ferreira. A reclamação Constitucional no Supremo Tribunal Federal: Algumas Notas. Revista Oficial do Programa de Mestrado em Direito Constitucional da Escola de Direito de Brasília – Instituto Brasiliense de Direito Público, Porto Alegre, n. 12, abr./jun. 2006. p. 1

[4] Julgamento da Rcl 54.738

[5] Julgamento da Rcl 56.285/SP

[6] Rcl nº 58.301AgR-segundo, rel. min. Alexandre de Moraes, 1ª Turma, DJe de 3/5/2023

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