Opinião

A visão hobbesiana é real ou digital?

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23 de outubro de 2023, 21h42

A sociedade é, por definição, uma formação organizada. No mundo contemporâneo, o conceito de sociedade alcança homens, mulheres e leis. Escritas ou não escritas, morais ou jurídicas, as leis têm como propósito permitir e limitar os passos dos indivíduos que habitam um determinado território ou pertencem a um grupo identificado por símbolos, língua, crença ou qualquer outro elemento distintivo.

A organização social é objeto de debates sérios e profundos, a exemplo daquele travado por Thomas Hobbes em sua obra O Leviatã, onde defende a necessidade de elaboração do pacto social fundador da sociedade política a fim de conter as ameaças, os riscos, o caos e a desordem que o estado natural dos homens produz.

A natureza humana, segundo o pensamento hobbesiano, sugere a necessidade de sua domesticação, o que seria possível de ser realizado através do pacto firmador da sociedade política que permite a aplicação não apenas das normas postas, mas também daquelas impostas pelo soberano através do seu poder coercitivo. A paz social não seria possível num ordenamento carente de regras e essas haveriam, necessariamente, de ter a sua força vinculada a uma figura forte o suficiente para conter esse grande Leviatã que aterroriza a humanidade desde que o mundo é mundo.

A obra de Hobbes serviu como fundamento a governos absolutistas que promoveram a barbárie por meio de normas, revelando que o poder e não a natureza humana precisava ser limitado. As ameaças, os riscos, o caos e a desordem se mostraram próprios não da ausência de leis, mas da possibilidade dessas poderem ser editadas e exigidas sem qualquer controle. Cumpre registrar que não é que Hobbes tenha se omitido da defesa de necessidade de limites ao poder do soberano, tanto que não o justificou em nenhuma ordem divina, mas sim na existência de um pacto social elaborado dentro da ideia de contratualismo, corrente filosófica que, justamente por questionar o discurso de legitimação da autoridade política permitiu, anos depois, a construção do pensamento constitucionalista que ampara, hoje, o nosso Estado de Direito.

O que acontece é que uma das grandes dificuldades de se aceitar e aplicar um pensamento paradigmático é reconhecer que nenhuma ruptura é total e as ideias se concretizam em ambientes repletos de contradições que afastam qualquer ingenuidade teórica de se pensar a história como evolução. Veja bem. Dentro da filosofia, uma ideia é vista como paradigmática quando traz uma nova visão de mundo. Na Europa do século XVII, momento em que Hobbes escreveu O Leviatã, tinhamos a defesa do homem como animal político segundo o pensamento de Aristóteles, conceito que atravessa séculos e é rompido por Hobbes com a sua associação do estado natural à ideia de caos, ameaça e desordem. Não é que o homem tenha uma natureza ruim, é que o instinto de sobrevivência é capaz de justificar as maiores atrocidades acaso não seja contido por uma força maior.

É assim com uma sociedade sem leis ou que, muito embora seja possuidora de normas, carece de instituições fortes que as façam valer a despeito da vontade do soberano ou da classe dominante, já que, conforme nos ensinaria posteriormente Frederico Leopoldo César Burlamaque, "as leis podem ser magníficas, mas seus efeitos serão sempre ilusórios se contrariam o interesse da maioria que detém o poder". A razão humana tem como fim a paz, muitas vezes subvertida pelos desejos dos homens [não há aqui, ainda, como falar em mulheres] sedentos de poder.

O forte instinto de sobrevivência do homem capaz, segundo Hobbes, de fazê-lo cometer terríveis atrocidades, justifica o pacto social fundador da sociedade política comandada por um soberano capaz de reunir as atividades executivas, legislativas e judicantes [ou algo próximo disso] não por ser eleito por uma autoridade divina, mas sim por ser investido em tais atribuições. A importância que se confere ao direito positivo não deslegitima o direito natural que, na visão hobbesiana, é, justamente, o direito à vida, aquilo por quem viraríamos bárbaros para proteger.

A barbárie humana na luta pela sobrevivência é descrita por William Golding na sua obra O Senhor das Moscas (1951), cuja importância resta evidenciada pelo Nobel de Literatura concedido a Golding em 1983, sob a justificativa de que o seu romance havia contribuído para a compreensão da natureza humana, hipótese refutada, anos depois, por Rutger Bregman em seu livro Humanidade (2021), com base em pesquisas científicas modernas que afirmou desmentirem a tese ficcional de Golding, argumento reforçado pela descoberta posterior do Senhor das Moscas da vida real, a história de seis garotos náufragos numa ilha rochosa ao sul de Tonga em 1966 que sobreviveram em decorrência do laço de amizade e camaradagem que firmaram naquela situação de pânico.

Bregman nos mostra que o instinto de sobrevivência do ser humano não é responsável por atrocidades cometidas uns contra outros, negando, com isso, a visão hobbesiana e a tese ficcional de Golding. A reação instintiva em desastres ecológicos, combates bélicos ou qualquer outra situação extrema é o espírito de camaradagem que faz com que a união seja a força motora capaz de guiar os envolvidos para a razão e a paz. Isso é verdade com o direito à vida, como nos demonstra Bregman, mas e com a liberdade de expressão, outro direito elementar e um dos primeiros a serem resguardados pelo constitucionalismo? Aqui também podemos sustentar que o estado natural [aquele ausente de regras] e as situações de pânico revelam o melhor do ser humano?

A resposta para essa pergunta exige um exercício de visualização do ambiente que domina os nossos dias, horas e minutos: as redes sociais. Acaso você as frequente, escute falar ou leia sobre, sabe que é muito difícil defender a liberdade de expressão absoluta num ambiente digital onde as pessoas se escondem através de usuários fakes, tal como os meninos náufragos de Golding e as suas pinturas faciais. Seria, dessa forma, a visão hobbesiana digital? Veríamos no mundo virtual o pior do ser humano sobressair diante do instinto de mostrar que sabe por apego à imagem e à vaidade de estar certo ou diante de uma moralidade exacerbada que nos torna mais tolerantes com os nossos erros e impiedosos com as falhas alheias, como afirma Jonathan Haidt em A Mente Moralista?

A professora Lúcia Helena Galvão ensina que o conceito de diálogo no seu sentido clássico pressupõe certos fundamentos básicos, que passam pelo reconhecimento da sua ignorância, amor ao conhecimento e autocontrole emocional. O desejo de estar certo não pode justificar o abandono à razão, então, por que isso segue sendo algo rotineiro no mundo digital da pós-verdade e das fake news? Porque ali no ambiente virtual, assim como na ilha dos meninos náufragos de Golding, estamos falando com máscaras, não com pessoas e a hipocrisia é algo difícil de lidar e conter.

A internet hoje é o palco de discussões das principais questões que nos atingem. As pessoas se colocam no ambiente digital como críticos implacáveis e consumidores de informação, sem se preocupar se aquela nóticia é uma fake news ou está sendo manipulada de alguma forma. Cada indivíduo é um ser político e deve saber se comunicar, buscando educação para o debate. É possível acrescentar ao diálogo moderno mais dois elementos àqueles três citados por Galvão como necessários ao diálogo clássico: clareza e transparência. O primeiro porque não existe troca de ideias sem compreensão e o segundo porque permite a identificação das partes e impede a utilização de "máscaras".

A gente passa muito tempo na internet consumindo informação, trocando ideias, likes e algumas ofensas, sem observar que estamos desaprendendo a conversar e a manter relacionamentos estáveis enquanto indivíduos e sociedade. As redes sociais permitem silenciamentos e bloqueios que acabamos trazendo para a vida real por termos perdido a capacidade de sentar, ouvir e negociar. Confundimos ofensa com opinião e defendemos a liberdade de expressão como valor absoluto, numa lógica que pensa o presente e o futuro sem usar o passado como referência, algo extremamente perigoso, já que permite, por exemplo, que o ódio seja um elemento distintivo de um determinado grupo, algo já presenciado e recriminado por nossa sociedade.

Não é que o homem tenha uma natureza ruim, é que o medo, a ignorância e a vaidade são capazes de justificar as maiores atrocidades acaso não sejam contidas por uma força maior: o estudo. A educação para o diálogo [real ou virtual] nos permite parar de tomar tudo para o lado pessoal e agir como um ator de mudança no mundo [ou atriz, já que aqui já podemos falar em mulheres], despertando individualmente no lugar de se alienar em manada, algo que não foi contado por Hobbes, nem por Golding, mas que pode ser contado por nós.

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