Opinião

Discriminação indireta, interseccionalidade e trabalho doméstico

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23 de outubro de 2023, 6h33

Está em vigor a Resolução CNJ nº 525/2023, "sobre ação afirmativa de gênero, para acesso das magistradas aos tribunais de 2º grau". Expus, em duas oportunidades, objeções ao teor do ato, assunto ao qual não retornarei. Conforme ministério de santo Agostinho, "vestra vero apud competens iudicium […] causa finita est"[1]A democracia pressupõe deferência aos poderes constituídos. Shakespeare pontuou que "a autoridade, embora erre como todos os outros, não obstante, ela traz dentro de si uma espécie de medicação que fecha a ferida com pele nova" [2].

No "jogo do contente"[3], o momento é de examinar os postulados da decisão, a fim de extrair corolários epistemologicamente válidos e aplicáveis a outras situações.

Nesse sentido, uma das premissas adotadas foi a ocorrência de "discriminação indireta". Não se trata de figura nova, embora pouquíssimo explorada pela Justiça do Trabalho, apesar do seu potencial. É sobre ela que falarei.

Discriminação indireta
No Direito do Trabalho, o conceito de discriminação indireta ganhou destaque no início da década de 1970, com a decisão de Griggs v. Duke Power Co., pela Suprema Corte dos EUA. O caso envolvia a contratação de trabalhadores por uma empresa que exigia dos candidatos: (i) ensino médio e (ii) aptidão em testes intelectuais — requisitos desnecessários aos postos de trabalho oferecidos. Isso prejudicava especialmente os negros, que historicamente tinham acesso à educação de péssima qualidade.

Diante de tal quadro, decidiu-se que testes abstratamente neutros — na intenção ou nos efeitos — não eram válidos se, na prática, mantivessem o status quo de discriminação. Quatro anos depois, o Reino Unido afirmou serem discriminatórias condições aplicadas igualmente entre os sexos, se: (i) a proporção de mulheres que puderem as atender for consideravelmente inferior a de homens; (ii) não se mostrarem justificáveis e, (iii), forem impostas em detrimento de uma pessoa incapaz de cumpri-la [4].

Em 1981, foi a vez da Corte de Justiça da União Europeia — ao decidir Jenkins v. Kingsgate Ltd — acolher a teoria. O episódio versava sobre a política remuneratória de uma empresa que pagava, aos trabalhadores a tempo parcial, salário-hora inferior aos de tempo integral. A discriminação indireta foi constatada pelo fato de os trabalhadores a tempo parcial serem todos mulheres, ou seja, ainda que a regra pudesse ser impessoal, ela tinha um "impacto desproporcional" sobre elas.

Na decisão, o tribunal citou o precedente estadunidense e a lei britânica[5]. O conceito espraiou-se para o artigo 2.2 da Diretiva 2002/73/CE[6], do Parlamento Europeu, e, dali, foi incorporado pela legislação francesa, italiana, portuguesa, espanhola e de muitos outros países do continente.

Nas Américas, a questão foi tratada na Convenção Interamericana contra o Racismo, internalizada, pelo Brasil, por meio do Decreto nº 10.932/2022. De acordo com o seu artigo 1º, item 2, discriminação racial indireta "é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico".

Observe-se que as normas que reconhecem a discriminação indireta ora o fazem tendo em mente a mulher, ora o negro. A ideia desse texto é justamente a de aglutinar situações de vulnerabilidade, em perspectiva interseccional, com o escopo de demonstrar que a análise fragmentada – que não associa gênero à raça e à pobreza, principalmente – acarreta a invisibilização dos mais desvalidos.

Interseccionalidade
Abordar a questão racial ao tratar de gênero implica compreender a existência de fatores combinados de opressão que agravam adversidades e necessitam de abordagem conjunta e indissociável. A expressão "interseccionalidade" tem múltiplas facetas, que vão além do binômio gênero-raça[7]. Porém, o recorte metodológico limitará o leque de elementos de análise.

A interseccionalidade lato sensu abarca as consequências da interação entre dois ou mais eixos de subordinação, permitindo inferir como o racismo, o patriarcalismo e outros sistemas criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras [8].

Desigualdades são produtos da existência de hierarquias estruturais [9]. Ser homem, em regra, ainda traz privilégios competitivos. Além do sexo, "na ordem patriarcal de gênero, o branco encontra sua segunda vantagem". "Caso seja rico, encontra sua terceira vantagem, o que mostra que o poder costuma ser macho, branco e, de preferência, heterossexual [10]."

Ignorar essas circunstâncias é ter uma agenda mutilada, que torna invisíveis as pretas, que precisam ser protegidas quando passam por experiências discriminatórias que as brancas não costumam vivenciar[11]. A invisibilidade da mulher negra faz com que seus problemas não sejam nem ao menos identificados[12]. Negar a “carência dupla” sofrida por mulheres negras é dar as costas a um passado escravagista que as coloca como antítese das esferas de poder[13], e, assim, perpetrar injustiças.

Os dois casos a seguir ilustram o que se pretende demonstrar.

O primeiro é o da General Motors, acusada de discriminação de gênero e raça — como coeficientes agregados — na contratação de empregados[14]. O detalhe residia no fato de que, globalmente, o preconceito era indetectável. Isso porque somente os negros homens eram contratados para trabalhar nas linhas de montagem. E apenas as mulheres brancas conseguiam ser admitidas às funções reservadas às mulheres. Logo, a empresa tinha mulheres e tinha negros em seus quadros.[15] Mas as mulheres negras eram excluídas, sem ter como reclamar, embora a junção das variáveis de desproteção deixasse claro o problema. Faltava ligar os pontos.

O segundo é o de Anita Hill, que denunciou seu supervisor — e indicado à Suprema Corte dos EUA —, Clarence Thomas, por assédio sexual[16]. A defesa de Thomas apresentou-o como vítima de racismo, e a acusação contra ele como subterfúgio para sabotar a nomeação de um negro. Isso resultou em uma mobilização do movimento negro a favor de seu nome, reconhecendo nele seu legítimo representante e impulsionando o Senado a homologar sua indicação, por 52 votos a 48[17]. Anita Hill, vítima de assédio sexual, ficou invisível e marginalizada. Já Thomas segue sendo um dos juízes mais conservadores da história da Suprema Corte [18].

Trabalho doméstico
A obra "
A vida invisível de Eurídice Gusmão[19] relata a história — tão comum na década de 1940 —, de uma mulher de classe média, plena de talentos aniquilados, um a um, pela sociedade de sua época. Todavia, o livro reserva um pequeno trecho para assim mencionar a empregada doméstica de Eurídice: "esta não é a história de Maria das Dores. Maria das Dores inclusive só aparece por aqui de vez em quando, na hora de lavar uma louça ou fazer uma cama [20]."

Com lancinante ironia, a autora golpeia o estômago dos seus leitores ao mostrar que existem mulheres discriminadas e existem mulheres que nem sequer existem.

O trabalho doméstico — remunerado ou não — sempre foi menoscabado. As tarefas são "invisíveis, repetitivas, exaustivas, improdutivas e nada criativas" [21]. Além disso, os salários sempre estiveram entre os menores do mercado e à categoria foram assegurados menos direitos.

Daí a razão de festejar a Emenda Constitucional nº 72/2013 — chamada "PEC da Domésticas" —, promulgada para "estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais".  Contudo, a Lcp. nº 150/2015 não cumpriu a promessa do constituinte derivado, na medida em que criou uma subcategoria: há os trabalhadores urbanos e rurais, com todos os direitos; abaixo, os domésticos; e, dentre estes, as diaristas[22], que não têm direito a nada.

Logo no artigo 1º, caput, da Lcp. nº 150/2015, exclui-se da proteção legal todas as empregadas que trabalham "de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal" até duas vezes por semana. Não é possível falar em “equiparação de direitos” se alguém trabalha preenchendo todos os requisitos de um vínculo de emprego (CLT, 3º), mas não é empregado, simplesmente por ser doméstico. Isso não acontece com absolutamente mais nenhuma categoria profissional. 

Não é difícil vislumbrar quem são as atingidas por essa discriminação. No Brasil, mulheres negras libertas de 350 anos de escravidão saíram diretamente da senzala para as cozinhas e lavanderias da casa-grande. Praticamente a única chance de exercerem um trabalho remunerado foi como empregadas domésticas.

A categoria representa 16,8% da ocupação feminina no país[23]. São quase 6 milhões de pessoas, dentre as quais 91,4% são mulheres, e, dessas, 67% são negras, com renda média que não chega a um salário mínimo[24]. Portanto, dizer que as empregadas domésticas que trabalham até duas vezes por semana não são empregadas domésticas é discriminação indireta na veia da preta pobre, e em dose cavalar.  

Além disso, tal discriminação não passa pelo controle de convencionalidade. O Brasil ratificou, por meio do DL nº 172/2017, a Convenção sobre o Trabalho Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos (n° 189), ou seja, ela tem status de emenda constitucional (CF, 5º, § 3º).

De acordo com seus termos, só não é trabalhador doméstico aquele que trabalha "apenas ocasionalmente ou esporadicamente", e, além disso "sem que este trabalho seja uma ocupação profissional" (artigo 1, (c)). No Brasil, entretanto, se uma pessoa trabalha por 50 anos, ininterruptos, todas as terças-feiras e quintas-feiras, não será empregada doméstica. Ademais, a norma determina a tomada de "medidas apropriadas" para garantir que os domésticos "se beneficiem de condições não menos favoráveis que aquelas aplicadas aos trabalhadores em geral, com relação à proteção da seguridade social" (artigo 14), e a legislação nacional simplesmente descartou as diaristas.

Conclusão

A feminização da pobreza — negra, predominantemente — é uma praga cuja erradicação exige a promoção da independência econômica das mulheres, por meio de mudanças que sejam elementos de transformação social (Objetivo 26 da Declaração de Pequim). A exclusão da diarista do conceito de empregada doméstica vai na contramão desse propósito, além de ser inconstitucional, por impactar desproporcionalmente a preta pobre, indiretamente discriminada, e inconvencional, por violar norma internacional equiparada a emenda constitucional.

A única justificativa para manutenção de tal anomalia seria o combalido argumento ad terrorem de que dar direitos às diaristas aumentaria o desemprego. A tese pode até fazer sentido, pois, na época da escravidão, o desemprego entre os escravizados era próximo de zero. Assim, tudo depende da sociedade que se quer construir. O consequencialismo econômico é capaz de explicar qualquer coisa.

Que o mundo no qual você desembarcou dia 4 lhe seja mais justo, Helena.

___________

[1] Essa máxima foi gradativamente distorcida até chegar à sua versão mais famosa, que é: “Roma locuta, causa finita”. (AUGUSTINUS. Contra Iulianum Haeresis Pelagianae Defensorem. Disponível em: <http://www.documentacatholicaomnia.eu/>. Acesso em: 15 out.2023).

[2] SHAKESPEARE. William. Medida por Medida. Porto Alegre/RS: L&PM, 2014, p. 57.

[3] PORTER, Eleanor H. Pollyana. Cotia/SP: Pé da Letra, 2018.

[4] Sex Discrimination Act (1975). 1. Sex discrimination against women. (i) (b).

[5] Si une condition ou exigence qui doit être remplie pour obtenir une rémunération égale pour un même travail finit par exclure les femmes […], l’application de cette condition ou exigence devrait être considérée comme contraire au principe de l’égalité des rémunérations. Ce serait là faire application du principe de l‘adverse impact’ énoncé par la Cour Suprême des États-Unis (affaire Griggs/Duke Power Co.) ainsi que par le Parlement britannique à la section (1) (1) (b) du Sex Discrimination Act.” (Cour de justice de l'Union européenne. Jenkins v. Kingsgate Ltd., Arrêt du 31.3.1981).

[6] Revogada pela Directive 2006/54/CE du Parlement européen et du Conseil du 5 juillet 2006.

[7] A Corte Interamericana reconheceu, e.g., o problema interseccional referente às indígenas (Corte IDH. Caso Fernández Ortega y otros Vs. México. Sentencia de 30 de agosto de 2010) e às descendentes do povo maia. (Corte IDH. Caso Masacre Plan de Sánchez v. Guatemala. Sentencia de 19 de noviembre).

[8] CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. In: Estudos feministas, pp. 171-188, Ano 10, 2002, p. 177.

[9] MACKINNON, Catharine A. Substantive equality: a perspective. Minnesota Law Review, Minneapolis, v. 96, 2011.

[10] SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015, p. 33.

[11] CRENSHAW, Kimberlé. A Intersecionalidade na Discriminação de Raça e Gênero. Cruzamento: raça e gênero, Painel 1, pp. 7-16, p. 9.

[12] RIBEIRO, Djamila. Feminismo negro para um novo marco civilizatório. Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos, v.13 n. 24, pp. 99-104, 2016, p. 101.

[13] KILOMBA, Grada. Plantation memories: episodes of everyday racism. Munster: Unrast, 2012, 124.

[14] U.S. District Court for the Eastern District of Missouri, DeGraffenreid v. GENERAL MOTORS ASSEMBLY DIV., ETC., – 413 F. Supp. 142 (E.D. Mo. 1976). May 4, 1976

[15] CRENSHAW, Kimberlé. Op. cit., p. 13.

[16] HILL, Anita. Believing: our thirty-year journey to end gender violence. Viking, 2021.

[17] TABOAS. Ísis Dantas Menezes Zornoff. Apontamentos materialistas à interseccionalidade. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 29(1): e76725, pp. 1-10, p. 4.

[18] O’DONNELL, Michael. Deconstructing Clarence Thomas. The Atlantic. September 2019 Issue.

[19] BATHALHA, Martha. A vida invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

[20] Idem, p. 38.

[21] DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe [recurso eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

[22] MESQUITA, Gabriela Piai de Assis; MESQUITA, Rodrigo Octávio de Godoy Assis. Trabalho doméstico, racismo e gênero: a necessidade de alteração do arcabouço jurídico-institucional brasileiro para a erradicação do trabalho doméstico análogo ao de escravo, p. 291.

[23] CARVALHO, Mônica Gurjão; GONÇALVES, Maria da Graça Marchina. Trabalho Doméstico Remunerado e Resistência: Interseccionando Raça, Gênero e Classe. Psicologia: Ciência e Profissão, 2023 v. 43, e249090, pp. 1-16, p. 1.

[24] DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Trabalho doméstico.

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