Opinião

Condições e limites jurídicos da defesa da democracia

Autor

  • Fábio Cardoso Machado

    é doutor em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Fundador e professor da Academia Brasileira de Direito e Política.

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22 de outubro de 2023, 11h20

A assimilação, no Brasil, da chamada "democracia defensiva", não poderia vir desacompanhada de uma cuidadosa consideração das condições e dos limites jurídicos a observar por quem venha a manejar quaisquer instrumentos defensivos, a fim de que a reação aos ataques desferidos contra as instituições democráticas não provoque danos ainda maiores à ordem constitucional e às liberdades que o regime deve proteger para continuar sendo democrático.

E uma vez que se trata de mais uma importação judicial de categoria jurídica estrangeira, sem que tenhamos ainda qualquer disciplina legal específica, este breve ensaio se restringirá a certas condições e limites que advêm das próprias exigências internas de uma ordem constitucional que queira ser, verdadeiramente, democrática e de direito.

A ideia de uma democracia defensiva remonta a um artigo de 1937 em que Karl Loewenstein sustentou que o credo democrático e a radicalização das liberdades democráticas não eram suficientes para fazer frente à ameaça do fascismo. Seria preciso adotar mecanismos legais capazes de desabilitarem cada uma das técnicas de que se vale o fascismo para desacreditar e debilitar a ordem democrática.

Nisso consistiria a "democracia militante": uma ordem democrática que não confia que as liberdades democráticas possam, por si sós, fazer frente aos inimigos da democracia, e precisa, portanto, combater cada uma das técnicas desses inimigos em termos que não possam se valer das virtudes e liberdades democráticas para debilitar e destruir o regime.

A normalidade democrática, sustentou Loewenstein, seria para tempos de normalidade. Quando a democracia se depara com um inimigo relevante, certos escrúpulos constitucionais deveriam ser postos de lado e alguns direitos fundamentais deveriam ser suspensos e os poderes do governo reforçados [1].

Segundo levantamentos, a Alemanha é a democracia europeia com o maior repertório de instrumentos defensivos. Os meios de proteção do regime incluem o banimento de partidos que, por seus objetivos ou pelo comportamento de seus membros, procurem deteriorar ou abolir a ordem democrática ou colocar em perigo a existência da república, a proibição de associações que atentem contra a ordem constitucional, a criminalização de manifestações que incitem ódio ou violência contra segmentos da população ou grupos étnicos e religiosos e a suspensão de liberdades políticas, incluindo as liberdades de associação, reunião e expressão, se forem utilizadas para combater os elementos básicos da ordem democrática. Dos países estudados, apenas a Alemanha e a Áustria dispõem de meios de repressão de propaganda contra as instituições democráticas [2].

É compreensível, por razões históricas, que a Alemanha seja a democracia mais defensiva. Mas mesmo lá não deixa de haver uma aguda preocupação com o risco, para a própria democracia, de uma eventual mobilização abusiva, excessiva ou desproporcional dos meios de proteção do regime. Por isso, a prática constitucional alemã só muito excepcionalmente se vale desses meios, e sempre em termos restritivos.

Tanto é assim que Josef Christ, juiz do Tribunal Constitucional alemão, relatou, em recente conferência no TSE, que, em décadas, a proibição de partidos só teve lugar duas vezes, atingindo um partido de índole nazista e o partido comunista alemão. Já a suspensão de direitos fundamentais só foi tentada quatro vezes, mas nunca foi autorizada [3].

Isso sugere que a experiência alemã, em vez de recomendar um amplo e imoderado uso de quaisquer meios de defesa da democracia, vai de encontro à sugestão de Loewenstein e leva muito a sério os "pudores constitucionais" que o constitucionalista tinha em mente. Tais pudores não são, afinal, sem razão, e não podem ser inteiramente postos de lado nem mesmo em circunstâncias excepcionais, pois dizem respeito a certos elementos do regime sem os quais a democracia não resiste e que constituem, eles próprios, a primeira e incontornável barreira defensiva do regime.

A "democracia" é apenas um elemento de um regime que não é só democrático. Para ilustrar o argumento, basta lembrar uma realidade que é conhecida desde Platão e orienta os princípios da boa política desde então: se a democracia não contar com meios de dispersão e limitação do poder, se caracterizando, portanto, como uma espécie de democracia radical, ou seja, como uma forma de governo puramente majoritária e liberta de quaisquer amarras e meios de contenção, a tendência é a de que as massas venham a ser lideradas por demagogos e que estes acabem por tomar para si todo o poder, até que o regime degenere em tirania.

Quer dizer que uma democracia não pode ser preservada e, sendo assim, não pode existir senão no contexto de uma ordem capaz de trazer certo equilíbrio para o arranjo constitucional, mediante o emprego de mecanismos capazes de mitigar os riscos e moderar os excessos do elemento democrático do regime.

Não é verdade, portanto, que quanto mais democracia melhor. A democracia carrega consigo o germe da própria destruição e os meios de dar conta desse perigo são, assim, elementos constitutivos e incontornáveis de qualquer ordem democrática. Quer dizer que a democracia, se quiser persistir, precisa ser constitucional e contar com os meios habituais de moderação do poder. É o que postula desde sempre a ideia do regime misto.

Isso normalmente passa pela estabilização de algumas normas fundamentais que se impõem mesmo à maioria e não ficam, portanto, à disposição de quem governa; pela ordenação do exercício dos poderes democráticos por meio da criação de instâncias e canais institucionais como as próprias eleições, a divisão de atribuições e competências entre diferentes ramos do governo e a adoção de arranjos que acabam por exigir um consenso mais alargado para decisões mais relevantes; pela criação de mecanismos de controle e dispersão do poder, nos moldes da separação dos poderes e dos sistemas modernos de freios e contrapesos; e, finalmente, pela salvaguarda das minorias e mesmo dos indivíduos contra certos excessos que, se não contidos, tendem a destruir o princípio da liberdade em que assenta a democracia e culminam na degeneração do regime em alguma espécie de despotismo em que acaba por reinar o arbítrio e no qual ninguém mais está seguro.

Isso não é um catálogo dos elementos necessários à manutenção de um regime democrático nem quer dizer que toda e qualquer ordem democrática terá que ter tais características exatamente nesses termos. A intenção aqui é muito mais modesta e quer apenas deixar bem estabelecido que uma democracia é sempre algo mais complexo e substancialmente diferente de um regime caracterizado em termos mais simplórios e redutivos, como aquele em que há eleições, ou aquele em que há direitos fundamentais, ou aquele em que há separação de poderes ou controle de constitucionalidade.

Uma democracia é e só pode ser, na prática, um arranjo complexo que conta ou pode contar com tudo isso ou com elementos análogos e muitos outros mais, em termos que a dose de democracia admitida e assimilada pelo regime não seja ela própria excessiva e ponha em perigo a sua existência.

A primeira conclusão que disso se tira é a de que a defesa da democracia nunca pode ser uma defesa da democracia apenas ou apenas dos componentes democráticos do regime. Se a defesa da democracia não se dá em termos que protejam o regime com todos os seus componentes, inclusive dos componentes que têm o papel de moderar e limitar o próprio poder democrático, a sua tendência é destruir ou enfraquecer a democracia. A defesa, então, não pode ser senão da inteireza do regime: ou protege e preserva todos os elementos essenciais do regime, ou não pode ter lugar.

A segunda conclusão não é menos importante: esses elementos todos que acabam por ser constitutivos da ordem democrática, na medida em que são necessários à sua estabilização histórica, são a primeira barreira defensiva da própria democracia. A estabilização de certas normas fundamentais, a dispersão, a limitação e o controle do poder, a sujeição do governo e de todos os demais às mesmas leis e o respeito aos direitos das pessoas e a algumas liberdades são, por si mesmos, os primeiros e mais importantes instrumentos de defesa da democracia.

Toda ordem democrática relativamente bem-sucedida é um amálgama de componentes como esses e outros que vão se articulando como resultado de complexos processos históricos e que acabam por formar um arranjo que não pode ser gravemente perturbado sem grande perigo. Então a democracia não pode ser protegida às custas desses fundamentais elementos constitutivos da ordem democrática, pois sem eles o regime simplesmente deixa de ser o que é e tende a morrer pelo caminho.

Isso tudo ainda remete para um último ponto desta primeira exploração desse difícil tema: nunca podemos negligenciar os perigos do poder, ainda quando queira ser usado para a defesa da democracia.

A limitação do poder é não só atributo como condição da estabilização histórica de uma ordem democrática. Há, portanto, um compromisso que é anterior e condicionante da própria democracia, que é o nosso compromisso com o constitucionalismo. São várias as formas de governo e a democracia é apenas uma delas, mas são os atributos do constitucionalismo que retificam o regime, seja do tipo que for, razão pela qual nunca podem deixar de estar presentes.

O componente democrático do regime deve, então, ser integrado a uma ordem que é antes constitucional e disciplina e limita mesmo o exercício dos poderes democráticos. Sendo assim, não podem, nessa ordem democrática, ser atribuídos quaisquer poderes, a quem quer que seja, sem a indicação dos seus limites e meios de contenção. Precisamos, afinal, ter a segurança de que não serão exercidos em detrimento da preservação do todo daquela ordem em vez de apenas erradicarem certas possíveis ameaças à sua existência.

E isto se coloca com especial relevância quando se trata de instituir meios para a proteção da democracia contra possíveis ameaças internas. Afinal, tais ameaças podem ser apenas reflexos da agitação política decorrente de alguma disputa de poder, e existe sempre o risco de um emprego abusivo daqueles meios por alguma das facções em disputa, como forma de combater, perseguir e vencer os seus adversários políticos. Sem falar na possibilidade sempre presente de que os inimigos do regime democrático venham a capturar eles próprios os instrumentos de defesa da democracia, deles se valendo para aniquilar a resistência de seus eventuais oponentes, incluindo aqueles que, porventura, estivessem dispostos a lutar pela democracia.

Sendo assim, a instituição de instrumentos legais para a defesa da democracia nunca pode pressupor que tais instrumentos serão sempre e necessariamente usados e empregados para o fim apropriado e por democratas genuinamente comprometidos com a democracia.

Nada poderia ser mais perigoso do que deixar cair nas mãos dos inimigos da democracia o poder de excepcionar as regras do jogo democrático e suspender as liberdades que o regime deveria consagrar e proteger. E, havendo esse poder, existe, sempre, um risco real de que isso venha a acontecer. A instituição de meios excepcionais para a defesa do regime não pode, portanto, pressupor uma confiança inabalável nas instituições e nas autoridades competentes, e precisa dar conta do risco de abuso para fins políticos e antidemocráticos.

Diante disso tudo, quais seriam, então, as diretrizes de ordem mais geral de um adequado sistema de condicionantes e limitações para o emprego democrático de meios excepcionais de defesa da democracia? Que antídotos poderiam dar conta do risco de abuso ou de emprego arbitrário dos instrumentos de defesa do regime, para a perseguição de adversários políticos ou mesmo para uma destruição, por dentro, da própria democracia?

Não temos, aqui, a pretensão de ir muito longe. Mas alguns passos já é possível dar. Como ocorre na própria Alemanha e foi destacado no citado evento do TSE, os instrumentos excepcionais da chamada "democracia defensiva" só deveriam poder ser usados a) para a proteção dos elementos fundamentais de uma ordem livre e democrática, b) para dar conta de riscos relevantíssimos ou de circunstâncias excepcionais, c) por instâncias imparciais que, como tais, tenham de se manter de fora da disputa política e tenham compromisso apenas com a estabilidade e a preservação da ordem, e d) conforme critérios claramente definidos que não deixem margem para o arbítrio e sejam sempre submetidos a uma interpretação restritiva.

Ao que acrescentaríamos: a) jamais o próprio regime e as suas instituições podem ser confundidos com as pessoas que detêm autoridade constitucional, dando ensejo ao uso de instrumentos legais para proteger não a democracia e sim aqueles que, eventualmente, possam se esconder detrás daquela autoridade; b) dada a excepcionalidade dos instrumentos de que se vale e o status e relevância dos direitos e liberdades que restringe, a defesa do regime pressupõe o reforço das garantias processuais levantadas em favor dos acusados, sobretudo no que concerne à imparcialidade de quem os julgará  ou seja, a defesa da democracia jamais poderia se dar em detrimento da defesa dos acusados; e c) as instâncias encarregadas da defesa da democracia devem ficar submetidas ao mais rigoroso escrutínio e a mecanismos de controle capazes de prevenir o arbítrio e corrigir eficazmente quaisquer eventuais abusos.

Em suma, o uso indiscriminado de meios de defesa da democracia pode ser tão ou mais deletério do regime quanto as ameaças que se queira combater, e por isso a proteção da ordem democrática precisa dar-se rigorosamente dentro da ordem constitucional. Ameaças à democracia e às suas instituições não podem ser tratadas como se a ruptura da ordem já estivesse consumada, dando lugar a uma espécie de vazio jurídico em que tudo fosse permitido como se não houvesse mais direitos e como se as liberdades já não precisassem ser postas à salvo do arbítrio e da manipulação política.

 


[1] LOEWENSTEIN, Karl. "Militant Democracy and Fundamental Rights, I". The American Political Science Review 31, n. 3 (1937). p. 417-432.

[2] BEIMENBETOV, Serik. "A comparative analysis of 'Defensive Democracy': a cross-national assessment of formal-legal defensiveness in 8 advanced European democracies". Tese de doutoramento apresentada à Universidade de Exeter em 2014. Disponível em https://ore.exeter.ac.uk/repository/bitstream/handle/10871/17661/BeimenbetovS.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 09/10/2023.

[3] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BluZgLSvHt8&t=5708s. Acesso em 09/10/2023.

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