Opinião

Transação tributária: o que mudou com a publicação da Lei nº 14.689/2023

Autores

  • Alan Flores Viana

    é especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) MBE em Energia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) cofundador do Instituto Brasileiro de Arbitragem Tributária (Ibatt) membro efetivo das Comissão de Direito Tributário da OAB/DF e sócio do escritório MJ Alves Burle e Viana Advogados.

  • Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Neto

    é mestre em Regulação e Transformações na Ordem Econômica pela Universidade de Brasília (UnB) e sócio do escritório MJ Alves Burle e Viana Advogados.

20 de outubro de 2023, 16h22

A Lei nº 14.689, publicada em 20 de setembro de 2023, não só disciplina a proclamação de resultados de julgamentos na hipótese de empate na votação no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), como promove algumas alterações no instituto jurídico da transação tributária. O objetivo deste artigo é abordar as nuances dessas mudanças, considerando a prática negocial entre contribuinte e Fisco.

Em linhas gerais, a lei promoveu as seguintes mudanças na transação: a) criou uma modalidade de transação própria para os créditos consolidados após o voto de qualidade no Carf; b) realizou ajustes na transação por adesão do contencioso de relevante e disseminada relevância jurídica; e c) passou a admitir acordos com a Procuradoria-Geral do Banco Central (PGBC).

Alguns temas debatidos durante o processo legislativo não foram contemplados na redação final, como: a) a ampliação da competência para a Receita Federal transacionar; b) a revisão de acordos de transação já celebrados diante de precedente do STF sobre a confiscatoriedade de multas acima de 150% c) a instituição da arbitragem tributária para os casos de empate na votação no Carf.

Quanto à criação de uma nova modalidade de transação, o artigo 2º da Lei nº 14.689/2023 incluiu o §9º-A no artigo 25 do Decreto nº 70.235/1972 para dispor que, na hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade, ficam excluídas as multas fiscais. Além desse abatimento integral e automático da multa, caso o contribuinte opte, dentro de 90 dias, por pagar em até 12 meses o crédito tributário, haverá a exclusão dos juros e não haverá a incidência de encargos legais, restando apenas o saldo principal apurado. A opção pelo pagamento admitirá a utilização de créditos de precatórios ou de saldos acumulados de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSLL. A lei não estabelece limites para o uso do prejuízo fiscal.

Tais condições especiais pré-estabelecidas e com requisitos objetivos para a sua fruição possuem natureza de transação em sua vertente por adesão, uma vez que a vontade da Fazenda Pública já foi manifestada na lei. Diante dessa vontade, caberá ao contribuinte aceitar as concessões oferecidas genericamente e prevenir litígios envolvendo a inscrição e a execução do crédito tributário. 

A respeito dos créditos que foram resolvidos favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade, que já foram inscritos em dívida ativa e que atualmente estão em discussão judicial, o artigo 3º da Lei admite que eles sejam objeto de proposta de acordo de transação tributária individual de iniciativa do sujeito passivo. O parágrafo único previa que a proposta de transação individual envolveria condições “não menos favorecidas” do que as ofertadas na transação por adesão mencionada acima. O dispositivo, porém, foi vetado, com fundamento na generalidade e impessoalidade da norma [1].

Em relação aos ajustes realizados na transação por adesão do contencioso de relevante e disseminada relevância jurídica, rememora-se que a Lei nº 14.375/2022 já havia alterado o artigo 11, §2º, incisos II e III, da Lei 13.988/2020 para a admitir descontos maiores (até 65%) e prazo de pagamento mais estendido (120 parcelas [2]) para os acordos de transação individual, o que resultou em um grande desestímulo à opção pela transação do contencioso.

Poder-se-ia argumentar que o legislador teria optado naquele momento por privilegiar os acordos individuais, em que as cláusulas são negociadas consensualmente, porém não existe motivo relevante para tanto. Pelo contrário, os editais de transação do contencioso têm o potencial de extinguir litígios e reverter provisões de perdas judiciais em arrecadação tributária. Esse potencial já foi reconhecido recentemente pela própria PGFN, ao comentar a possibilidade da publicação de novos editais, tudo em busca da efetivação do instituto da transação na consecução do interesse público [3].

A controvérsia jurídica disseminada e relevante é aquela que engloba divergência de entendimentos nas instâncias administrativa ou judicial e que afeta parcela significativa dos contribuintes integrantes de determinado setor econômico ou produtivo. 

Conforme ensina Andrei Pitten Velloso [4], a proposta fazendária de transação evidencia naturalmente o reconhecimento de certa plausibilidade na tese jurídica sustentada pelos contribuintes, apesar de a lei esclarecer que o edital de adesão não implica reconhecimento do direito. Por isso, vê-se com bons olhos o esforço feito pelo legislador para incentivar essa modalidade de acordo, o que resultou na alteração do §2º, do artigo 17, da Lei nº 13.988/2020, para assegurar descontos de até 65% da dívida e o prazo máximo de quitação de até 120 meses, a depender da natureza das inscrições.

Outra alteração feita na transação no contencioso está na revogação do inciso II, do §1º, do artigo 19, que previa que a adesão ao acordo sujeitaria o contribuinte ao entendimento dado pela administração tributária à questão em litígio em relação a fatos geradores futuros ou não consumados. 

O texto anterior de fato desestimulava a adesão de contribuintes, que, embora pudessem negociar seus débitos com descontos, ficavam proibidos definitivamente de questionar lançamentos futuros diante da imposição de cláusula que os proibia de ter acesso ao Judiciário. Confessar um fato gerador duvidoso pode ser mais prejudicial a uma empresa, caso ele ocorra de forma reiterada, do que manter uma discussão judicial a respeito do tema. Em uma avaliação de risco que envolve a tomada de decisão pela transação tributária ou não, este mostrava-se um item sensível para o interesse em transacionar ou não.

A norma, porém, admite que o edital de adesão estabeleça, a depender do litígio, a necessidade de conformação do contribuinte ao entendimento da administração tributária. A regra deixou de ser mandamental para ser discricionária, ou optativa, a ser negociada durante o processamento do requerimento de transação.

O mesmo ajuste ocorreu em relação ao artigo 19, §3º, da Lei nº 13.988/2020, o qual passou a dispor que o edital poderá estabelecer que a solicitação de adesão abranja todos os litígios relacionados à tese objeto da transação existentes na data do pedido. 

Como último ponto de alteração na transação do contencioso, a Lei nº 14.689/2023 revogou a alínea "b" do inciso II, do artigo 20, da Lei nº 13.988/2020, que vedava acordos em relação a temas pacificados em precedentes persuasivos [5], quando integralmente favoráveis à Fazenda Nacional. Ampliou-se o espaço de transação, mormente em cenários de superação legislativa da jurisprudência, de mutação constitucional, de ajuizamento de ações rescisórias ou de tendência de novo entendimento judicial diante da alteração de composição de tribunais superiores.

Todas essas alterações vão ao encontro de uma política fiscal que busca aumentar ainda mais a atratividade da transação no contencioso tributário, como já se noticia nos veículos de mídia. Como é o caso da recente informação da PGFN acerca da pretensão de se publicar, até o fim deste ano, a possibilidade de negociação de débitos relacionados a teses bilionárias envolvendo a composição da base de cálculo das contribuições do PIS/Cofins [6].

Por fim, a terceira mudança na transação tributária foi a possibilidade conferida pela Lei nº 14.689/2023 de negociação dos débitos inscritos em dívida ativa cuja cobrança incumba à Procuradoria-Geral do Banco Central. Assim, ficou superado o entendimento da PGBC no sentido de que a Lei nº 13.988/2020 não seria aplicável ao Banco Central, diante de uma interpretação literal e excludente do artigo 1º, §4º, da Lei de Transação, que mencionava apenas as Procuradorias Federal e da União.

Em síntese conclusiva, as alterações legislativas buscam ampliar o alcance do instituto de transação tributária, criando modalidades e afastando alguns entraves das já existentes. Destaca-se, em especial, o aprimoramento da transação do contencioso de relevante e disseminada relevância jurídica que admitirá uma maior adesão dos contribuintes a essa espécie de acordo, regramento que auxiliará a missão reconhecida e exitosa da PGFN em buscar cada vez mais a efetividade na recuperação dos créditos classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação. 


[1] Transcreve-se as razões do veto: "Em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público e gera violação ao princípio da isonomia, tendo em vista que a determinação de que a transação aqui proposta 'conterá condições não menos favorecidas do que as ofertadas aos demais sujeitos passivos e considerará o prognóstico do risco judicial de cada processo' poderia não ser adequada na totalidade dos casos uma vez que dispõe de forma genérica e subjetiva, sem estabelecer balizas ou condições. A Lei nº 13.988, de 2020, dispõe sobre a transação tributária e suas modalidades ofertadas aos contribuintes. Nessa Lei, estão delimitados os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária".

[2] Salvo créditos de natureza previdenciária que, por força da Constituição, só podem ser parcelados em 60 meses.

[4] VELLOSO, Andrei Pitten. Transação por adesão no contencioso de relevante e disseminada controvérsia jurídica tributária ou aduaneira. In: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes (coord.). Transação Tributária: homenagem ao jurista Sacha Calmon Navarro Coêlho. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 276.

[5] Artigo 927. Os juízes e os tribunais observarão: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional.

[6] A transação poderá abarcar as seguintes teses: a inclusão do PIS e da Cofins na própria base de cálculo; a inclusão do ISS na base de cálculo do PIS e da Cofins; e a inclusão do crédito presumido do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins. Disponível em https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2023/09/25/contribuintes-vao-poder-negociar-debitos-bilionarios-com-a-uniao.ghtml?GLBID=1b6e256fa036b1d25ed91dea4e76665a46c345a4369467a72694c6739664d536732795a5a544e6f3136356630614f6e716e46596459344652433667585446716e4b72637a2d657a53775345316d36564b6533356f456f584a4643635764457141424c444251773d3d3a303a756b626f776a766a62626d6c7966676f796c7362. Acesso em 25/09/2023.

Autores

  • é especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), MBE em Energia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), cofundador do Instituto Brasileiro de Arbitragem Tributária (Ibatt), membro efetivo das Comissão de Direito Tributário da OAB/DF e sócio do escritório MJ Alves Burle e Viana Advogados.

  • é mestrando em Regulação e Transformações na Ordem Econômica pela UnB (Universidade de Brasília) e sócio do escritório MJ Alves Burle e Viana Advogados.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!