Opinião

​​​​​​​Reflexos da advocacia da concorrência no desenvolvimento do setor portuário

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20 de outubro de 2023, 18h18

Desde a década de 1990, o setor portuário tem passado por constantes reformas estruturais e regulatórias. Os avanços institucionais e o novo marco regulatório fomentaram o crescimento setorial e trouxeram diversos benefícios, tais como abertura à iniciativa privada, maior segurança jurídica e atratividade de investimentos. É em tal contexto que chama a atenção o fortalecimento de um dos pilares principais da atuação do Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (Cade)  a advocacia da concorrência.

Embora o Cade seja reconhecido internacionalmente pela sua excelência em zelar pela manutenção de um ambiente concorrencialmente saudável [1], o Brasil ainda possui resultados fracos de competitividade, se comparado com outras jurisdições [2]. Ciente de que a cultura da concorrência ainda merece ser mais bem enraizada no país, desde 2021 a autarquia tem agido para se concretizar como um "agente indutor da competitividade no Brasil", conforme descrito em seu Plano Estratégico de 2021-2024 [3]. O intuito, portanto, é construir uma forte e sólida cultura competitiva no Brasil para além das próprias fronteiras da atuação da autarquia, a fim de transformar a concorrência em um valor cada vez mais importante para a sociedade e auxiliar a impulsionar o crescimento econômico do país.

Agência Brasil
Agência Brasil

Dentre as diversas iniciativas do Cade nos últimos anos sob o campo de advocacy, observa-se a implementação de uma série de medidas no âmbito do setor portuário, as quais acabaram não apenas por identificar gargalos e restrições legais e infralegais à concorrência como também por gerar efeitos positivos para o seu desenvolvimento.

Nesse contexto, este artigo tem como objetivo trazer breves considerações sobre as medidas adotadas pelo Cade em sede de advocacia da concorrência e seus reflexos para o setor portuário.

Medidas adotadas pelo Cade no setor portuário em sede de advocacy
No âmbito do setor portuário, observa-se, nos últimos anos, a implementação de uma série de medidas e participações do Cade no campo de advocacy. Os cadernos Mercado de Serviços Portuários (2017) e Mercado de Transporte Marítimo de Contêineres (2018) trouxeram importante panorama do setor portuário e da dinâmica do mercado de transporte marítimo de contêineres, além das análises e decisões do CADE nos processos relativos a atos de concentração e a condutas anticompetitivas em tais mercados.

Já em 2022, o Departamento de Estudos Econômicos (DEE) emitiu a Nota Técnica nº 29/2022/DEE/Cade, com relevante estudo temático sobre a cobrança do valor do serviço de segregação e entrega (SSE) por terminais portuários no mercado de armazenagem alfandegada [4]. Ao aprofundar a discussão de um tema que já perdura por mais de duas décadas no âmbito da autarquia, o estudo aponta para a necessidade de se atualizar a jurisprudência do Cade, considerando a evolução do setor, o alto grau de informações disponíveis para aferição da sua legitimidade, racionalidade e incentivos dos agentes envolvidos, além da imprescindibilidade de se aplicar a metodologia de análise sob a regra da razão para as teorias de dano discutidas, dentre outros pontos.

Na visão do DEE, não haveria motivos para considerar o SSE como ilícito, independentemente do nível da cobrança, como vem sendo a interpretação da jurisprudência do Cade nos últimos anos, já que existiriam justificativas legítimas para tanto. O referido estudo é relevante não apenas por aprofundar o conhecimento acerca dos mecanismos de funcionamento do porto em relação ao SSE, mas por servir como material crítico para os casos em tramitação e que ainda serão julgados pelo Cade e pelos demais órgãos competentes. 

Vale destacar ainda a iniciativa do Cade quanto à elaboração do "Relatório de Avaliação Concorrencial" [5] relacionado à avaliação dos setores portuário e de aviação civil no Brasil,  publicado em 2022, do qual participou também a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).  O relatório analisou as políticas públicas existentes para identificar restrições desnecessárias à concorrência e, assim, propôs políticas alternativas capazes de favorecer o ambiente competitivo em tais segmentos. O projeto contou com a contribuição de entidades públicas e privadas relacionadas aos setores envolvidos.

Ao longo do trabalho, o Cade e a OCDE realizaram um diagnóstico sobre as regulações que limitam indevidamente a concorrência, incluindo uma análise sobre os potenciais ganhos econômicos e de eficiências, caso as barreiras avaliadas sejam removidas. Ao final, foram apresentadas 368 recomendações com o propósito de mitigar os prejuízos identificados, além de uma avaliação sobre o impacto que a implementação de tais recomendações provocaria na economia. Foi estimado um benefício econômico de R$ 700 milhões a R$ 1 bilhão por ano, em favor dos consumidores brasileiros [6].

Destaca-se ainda o envolvimento do Cade em análises visando à promoção da concorrência em processos licitatórios relativos a arrendamentos de terminais portuários e concessões de portos organizados. Ao celebrar Acordos de Cooperação Técnica com diferentes órgãos da Administração Pública [7], a autarquia tem participado de grupos de estudo com a finalidade de fornecer subsídios técnicos para avaliação concorrencial no âmbito de tais arrendamentos, criando propostas de encaminhamento para o aperfeiçoamento das ações voltadas à defesa, ao fomento e à disseminação da concorrência no âmbito dos serviços de transportes aquaviários.    

Reflexos para o setor portuário
As medidas adotadas pelo Cade em sede de advocacia da concorrência não apenas têm identificado gargalos e restrições desnecessárias à concorrência, mas também gerado efeitos positivos para o setor portuário.

O relatório elaborado pelo Cade e a OCDE recomendou às autoridades brasileiras o endereçamento de questões relevantes como: a) abolição do monopólio do Órgão de Gestão de Mão de Obra (OGMO) sobre o registro e fornecimento de trabalhadores portuários; b) extinção da escala de rodízio única de praticagem; c) endereçamento da falta de segurança jurídica relacionada à cobrança das taxas portuárias relativas à movimentação de contêineres; d) garantia de maior flexibilização das regras que estabelecem as condições e o procedimento para delegação do processo de arrendamento às autoridades portuárias; dentre tantos outros.

O que se observa, para além de tais recomendações, é que os esforços do Cade, em conjunto com o envolvimento de autoridades públicas e a iniciativa privada brasileira e estrangeira, reforçam o compromisso de que a política de defesa da concorrência deve sempre ser vista constitucionalmente como uma política de estado e, para tanto, deve estar permanentemente na pauta de todos os governos. Em virtude disso, o Relatório Cade/OCDE constitui uma relevante oportunidade para que agentes públicos deem continuidade às suas discussões nos setores envolvidos e reúnam esforços para a implementação das devidas recomendações.

O campo de advocacy tem permitido ainda que o Cade, em conjunto com outros órgãos e autoridades (como Antaq, Ministério da Fazenda, Ministério de Portos e Aeroportos, Tribunal de Contas da União, dentre outras), possam realizar esforços conjuntos e trocar aprendizados, aprofundando o seu conhecimento em diferentes setores da economia e diminuindo muitas vezes a enorme assimetria de informação existente entre os entes públicos e os agentes privados. Esse esforço conjunto também permite que as entidades exerçam, de maneira complementar e coordenada, os seus respectivos mandatos, evitando ainda decisões contraditórias  que geram insegurança jurídica e custos indevidos tanto à administração pública quanto aos seus administrados.

Considerando a evolução institucional do setor portuário, acompanhada da significativa transformação na infraestrutura portuária nas últimas décadas, o Cade tem sinalizado o aprimoramento de seu conhecimento sobre o setor (e.g., a sua dinâmica, os seus gargalos e os incentivos dos agentes econômicos) e aprofundado cada vez mais as suas análises, fato que tem diminuído a assimetria de informação existente com as demais entidades públicas e o setor privado. Nesse sentido, o que se espera é que tal aprimoramento se traduza em decisões mais estruturadas e fundamentadas sobre temas concorrenciais relevantes, tais como a existência de poder de mercado, testes apropriados de price squeeze, a racionalidade (ou não) de operadores portuários aumentarem os custos de seus próprios clientes e a constatação de qualquer inexistência de lock-in em função da sequência de decisões, dentre outras.    

De acordo com o mencionado Relatório Cade/OCDE, após a promulgação do novo marco legal regulatório em 2013 (Lei n.º 12.815/2013), estabelecido como resposta à falta de investimentos e ao crescimento setorial, os terminais portuários privados têm sido o principal motor de investimento do setor nos últimos anos. Desde a promulgação da lei, a carteira de investimentos dos portos privados totalizou aproximadamente R$ 46 bilhões, dos quais cerca de 96% em investimentos em terminais de uso privado (TUPs); aproximadamente 3% em estações de transbordo de carga; e cerca de 1% em instalações portuárias de turismo [8]. O movimento reflete a evolução do setor no Brasil e pode ser observado nas operações analisadas pela autarquia nos últimos anos.

Ainda, em linha com a tendência mundial, o setor portuário está se tornando cada vez mais logisticamente integrado. Esse fato se associa a uma tendência natural pela busca de infraestrutura operacional eficiente e integrada que despenda o menor custo e tempo de operação para o importador, exportador e empresas de navegação, sob pena de perda de competitividade e dispêndio desnecessário de recursos. Essa necessidade é intensificada ainda pelo fato de que, em países em desenvolvimento, como o Brasil, os níveis de eficiência ainda estão aquém do restante do mundo.

O trabalho do Cade/OCDE demonstra que, apesar da relevância do setor portuário brasileiro para o desenvolvimento econômico nacional e para o comércio mundial, os indicadores de desempenho do Brasil para o transporte marítimo estão abaixo da média de todas as outras regiões do mundo. Já com relação ao ambiente regulatório, os serviços de transporte no Brasil são menos abertos ao comércio e a investimentos e menos eficientes do que a média da OCDE ou outras economias comparáveis, como Chile, Colômbia e Costa Rica [9].

Por conta disso, verifica-se a necessidade de se criar condições propícias para investimentos no Brasil. O setor portuário necessita constantemente de investimentos em infraestrutura para viabilizar o acesso de navios cada vez maiores e de garantir capacidade e eficiência operacional, de forma a tornar os portos brasileiros cada vez mais atrativos para o comércio internacional. Alocação de recursos nesse setor beneficia não apenas os agentes econômicos, mas regiões e ecossistemas como um todo, já que diferentes cadeias produtivas associadas à zona portuária necessitam de constante adaptação para receber mais mercadorias e de forma mais eficiente.

Durante a elaboração do relatório, membros do grupo de trabalho fizeram visitas técnicas em portos e diferentes instalações portuárias. Essas ações possibilitam uma melhor compreensão das instalações dos agentes econômicos, investimentos (concretizados e potenciais), gargalos, áreas geográficas, dinâmica de mercado, entre outros fatores. Por conta disso, as visitas técnicas são uma importante ferramenta para que o corpo técnico e os tomadores de decisão saiam de suas rotinas e possam melhor entender setores complexos que muitas vezes se transformaram ao longo do tempo (tal como o setor portuário). Trata-se de uma medida bem-vinda e que deve ser utilizada sempre que possível pelas autoridades, especialmente pelo Cade.        

Por fim, os esforços da autarquia evidenciam que, atualmente, o Cade pode se valer de um volume de informações e de inteligência que antes não estavam disponíveis para analisar e revisitar matérias já conhecidas pela autarquia. A autoridade antitruste tem tido a oportunidade de reanalisar temas, como a legitimidade da cobrança de SSE, o efetivo âmbito geográfico de competição entre terminais de contêineres (considerando também a experiência de outras jurisdições sobre o assunto), índices de herfindahl hirschman – HHI (que avaliam a concentração de mercado) e parâmetros de market shares específicos para setores classificados como essential facilities, além de aspectos concorrenciais quando da análise de potenciais efeitos anticompetitivos advindos de casos concretos ou de concessões portuárias.   

Conclusão
Considerando as medidas adotadas nos últimos anos, é evidente o fortalecimento da atuação do Cade no âmbito da advocacia da concorrência. O intuito é o de construir uma forte e sólida cultura competitiva no Brasil, a fim de transformar a concorrência em um valor cada vez mais importante para a sociedade, auxiliando, dessa forma, o crescimento econômico do país.

No âmbito do setor portuário, a atuação do Cade tem gerado efeitos positivos. As ações da autarquia têm permitido maior coordenação e aprendizado entre entes públicos, evitado decisões contraditórias que provocam insegurança jurídica e custos indevidos, além de acompanhar a evolução significativa do setor nas últimas décadas.

Além disso, tendo em vista a evolução institucional do setor e a significativa transformação na infraestrutura portuária, o Cade tem sinalizado o aprimoramento de seu conhecimento sobre o setor e cada vez mais aprofundado as suas análises. No entanto, é fundamental que tal melhoria também seja efetivamente aplicada em análises e decisões do Cade relacionadas às suas demais vertentes, isto é, ao controle de condutas (atuação repressiva  exemplo: investigação de condutas anticompetitivas) e de estruturas (atuação preventiva  exemplo: análise de atos de concentração).

 


[4] Acompanhamento de Mercado nº 08700.003929/2019-23 (NT 29/2022/DEE/Cade – SEI 1129241).

[5] Relatórios de Avaliação Concorrencial da OCDE: Brasil, lançado em 27 de setembro de 2022. Disponível em: https://www.oecd.org/competition/relatorios-de-avaliacao-concorrencial-da-ocde-brasil-283dc7c1-pt.htm.  [Acesso em: 22/08/2023]

[6] OCDE, 2022, p. 23.

[7] Vide, por exemplo, o Acordo de Cooperação Técnica 07/2019 celebrado entre o Cade e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários – Antaq (SEI 0589347).

[8] Ibidem, p. 24.

[9] Ibidem, p. 151.

Autores

  • é sócio do escritório Figueiredo e Velloso Advogados, responsável pela área de Direito Concorrencial, mestre (LL.M) pela University of California – Berkeley e pós-graduado em Direito Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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