Opinião

Demissão em PAD: cabe recurso hierárquico ao presidente da República?

Autor

  • Alessandro Soares

    é advogado professor de Direito Constitucional e Administrativo na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) doutor em Direito Administrativo Financeiro e Processual pela Universidade de Salamanca e doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP).

19 de outubro de 2023, 6h33

Na esfera federal, a demissão de servidores tem sido praticada por ministros de Estado e autoridades equivalentes. Trata-se de uma competência exercida por delegação do presidente da República, em conformidade com o Decreto nº 3.035, de 27 de abril de 1999. Uma vez demitido, é natural que o servidor sancionado queira interpor recurso hierárquico para julgamento do presidente da República. Seria possível, no entanto, a interposição de recurso hierárquico no caso?  Será que a demissão realizada pelo ministro exaure a instância administrativa?

Uma observação preliminar. Segundo o artigo 84, XXV, da Constituição, compete privativamente ao presidente da República "prover e extinguir os cargos públicos federais, na forma da lei". Implícito no poder de prover cargo público (preencher) está o de desprovê-lo (esvaziar), o que inclui, portanto, o ato de demitir. Quanto à possibilidade de delegação, o parágrafo único do artigo 84 dita que "o presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos ministros de Estado, ao procurador-geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações". Tendo como referência esses dispositivos, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela total legitimidade da delegação a ministro de Estado de competência para aplicar pena de demissão de servidores públicos federais [1].

Voltemos à indagação principal. Seria possível ao demitido recorrer ao presidente da República para rever a sanção aplicada por ministro de Estado? O direito de recurso está delineado no artigo 107, §1o, da Lei nº 8.112/1990: "O recurso será dirigido à autoridade imediatamente superior à que tiver expedido o ato ou proferido a decisão, e, sucessivamente, em escala ascendente, às demais autoridades". Sendo o presidente da República a autoridade imediatamente superior ao ministro, estaria aberta a possibilidade do recurso hierárquico.

Ocorre, porém, que a administração pública sempre interpretou a questão de outro modo. Ressalte-se, sobre esse aspecto, o posicionamento sedimentado no Parecer nº 52/2015/Decor/CGU/AGU, de 11 de junho de 2015, no qual a AGU entendeu que o ministro de Estado, ao demitir servidor, é considerado a autoridade última, sendo, portanto, incabível recurso administrativo hierárquico. O citado parecer da AGU diz ainda: "Caso se admitisse a interposição de recurso ao Presidente da República, perderia sentido o ato de delegação, pois, provavelmente, todas as decisões passariam a ser daquela autoridade. Logo, a finalidade que se pretendia com o ato de delegação, qual seja, a descentralização administrativa, não se justificaria".

Em suma, segundo a AGU, a lógica da delegação de competência está na descentralização e eficiência da administração, não sendo o duplo grau de jurisdição obrigatório em sede administrativa. Essa interpretação tem-se repetido à exaustão, sendo quase um mantra burocrático na esfera federal [2]. Ao demitido caberia, no máximo, um pedido de reconsideração ao próprio ministro ou, conforme a circunstância, um pedido de revisão.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez, tem-se manifestado de forma distinta quanto a essa questão. É o que vemos no Mandado de Segurança nº 10.524/DF (2006) [3], no qual ficou firmado o entendimento de que a negativa de encaminhamento do recurso hierárquico ao presidente da República representava cerceamento ao direito de defesa do servidor público.

Já no MS nº 17.449 (2019) [4], o STJ se debruçou de modo mais detido sobre a matéria, chegando às seguintes conclusões: 1) como a Lei nº 8.112/1990 não regula o recurso hierárquico, aplica-se ao caso a Lei nº 9.784/1999 (Lei do Processo Administrativo Federal); 2) a Lei nº 9.784/1999, ao regular recurso administrativo, não prevê ressalvas ou impedimentos quanto ao seu cabimento; e 3) a decisão adotada no exercício da função delegada deve ser considerada como se tivesse sido editada pelo agente delegado (determinação do artigo 14, § 3o, da Lei nº 9.784/1999). Assim, o STJ manteve sua posição no que diz respeito à possibilidade do recurso hierárquico.

A essa altura, uma objeção poderia ser apresentada: a delegação do presidente ao ministro para decidir acerca da demissão de servidor não significa também delegação para resolver eventuais recursos? No Agravo Interno no Mandado de Segurança nº 28.285 (2023) [5], cujo tema era mais uma vez a questão do recurso hierárquico ao chefe do Executivo, o STJ, além de reafirmar a suas decisões anteriores, destacou que o artigo 13 da Lei nº 9.784/1999 impede a delegação de competência para 1) edição de atos de caráter normativo; 2) decisão de recursos administrativos; e 3) matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade. Impossível ao presidente, então, delegar os poderes em matéria de competência em recurso administrativo hierárquico, pois essa situação compõe uma das vedações previstas na referida lei.

Apesar desse quadro judicial, a administração continua apostando na impossibilidade de recurso hierárquico. O Decreto nº 3.035/1999 foi revogado/substituído pelo Decreto nº 11.123/2022. A nova regulação estipulou, em seu artigo 7º, que "Não caberá interposição de recurso hierárquico ao presidente da República ou ao ministro de Estado em face de decisão proferida em processo administrativo disciplinar proferida com fundamento nas delegações ou subdelegações previstas neste Decreto". Há, de fato, imensas dúvidas sobre a legitimidade do decreto em expressamente criar hipótese de vedação à recurso hierárquico, quando a própria lei não traz previsão a respeito.

Nessa ordem de ideias, o cenário apresentado nos leva a fazer algumas observações.

Se não houvesse delegação do presidente da República, este seria responsável por praticar o ato de demissão e não haveria possibilidade de recurso hierárquico. Ao que tudo indica, a delegação de competência foi realizada com o intuito de evitar a manifestação do presidente e estabelecer uma lógica de desconcentração decisória com base no princípio da eficiência. Ao efetivar a delegação a um agente inferior, contudo, o presidente imediatamente se transformou em autoridade recursal.

Desse modo, o ministro, ao exercer competência delegada, não atua como última instância da estrutura administrativa federal. A lógica da eficiência que inspirou a delegação gerou efeito contrário, pois abriu oportunidade para recursos hierárquicos, cujo fundamento está no direito constitucional da ampla defesa e do contraditório (artigo 5, LV, da Constituição). O Decreto nº 11.123/2022 dita, explicitamente, a impossibilidade de recurso hierárquico ao presidente e, como dissemos, é duvidoso que um ato infralegal possa criar uma limitação ao direito recursal. De fato, decisões recentes do STJ têm garantido o recurso hierárquico ao presidente da República. Para além do debate jurídico, do ponto de vista prático, esses recursos terão pouca probabilidade de reverterem a sanção aplicada, uma vez que a tendência natural é o presidente seguir a decisão proferida pelo ministro.

 

[1] RMS 28047, relator Ricardo Lewandowski. Órgão julgador: 2ª Turma. Julgamento em 06.12.2011 Publicação: 19.12.2011.

[2] Vide Parecer nº 68/2019/Decor/CGU/AGU.

[3] MS 10524/DF, relator ministro Hélio Quaglia Barbosa. Órgão Julgador: 3ª Seção. Julgado em 22.03.2006, DJe 03.04.2006.

[4] MS 17.449/DF, relator ministro Mauro Campbell Marques. Órgão Julgador: 1ª Seção. Julgado em 14.08.2019, DJe 01.10.2019.

[5] AgInt no MS 28285/DF, relator ministro Assussete Magalhães. Órgão Julgador: 1ª Seção. Julgado em 18.04.2023, DJe 24.04.2023.

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