Opinião

A transação tributária municipal: possibilidade de aumentar a receita

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18 de outubro de 2023, 13h18

A complexidade da legislação tributária nacional, o elevado número do contencioso tributário no país e a dificuldade em recuperar os créditos executados judicialmente são problemas históricos que dificultam uma atuação eficiente da administração tributária, especialmente municipal.

Dados divulgados pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN em Números 2020) [1], demonstraram que o estoque dos créditos tributários atingiu o patamar aproximado de R$ 2,4 trilhões, envolvendo mais de 19 milhões de débitos sob a responsabilidade de 4,9 milhões de devedores. Isso demonstra a elevada judicialização, causando efeitos nefastos para a economia, segurança jurídica, investimentos e implementação de políticas públicas.

Com base em auditoria que teve por objetivo a avaliação da eficiência do contencioso tributário administrativo, o Tribunal de Contas da União identificou que o tempo médio de duração do contencioso em cada instância do Processo Administrativo Fiscal (PAF) está muito acima do padrão internacional de 90 dias (média de dois a quatro anos) e, ao final do processo, apenas 5% do valor das autuações mantidas é arrecadado aos cofres do Tesouro Nacional [2].

O mais preocupante é que este trabalho realizado pelo Tribunal de Contas da União estimou que seriam necessários 58 anos para julgar todo o estoque de processos.

Diante de tal cenário, a negociação e a consensualidade, emergiram como soluções indicadas para superar as mazelas do contencioso tributário e a ineficiência na recuperação do crédito tributário. As formas alternativas de solução de conflito estão expressamente indicadas como soluções propostas nas novas Diretrizes e Recomendações Técnicas para o Aperfeiçoamento da Gestão Fiscal dos Estados Brasileiros publicadas pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), bem como nas diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) [3].

Com o Código de Processo Civil de 2015 há um fortalecimento da ideia de incentivar a promoção da autocomposição pela atividade praticada pelos juízes, advogados, advogados públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

Mesmo diante da inflexibilidade do princípio da indisponibilidade do interesse público, o direito administrativo tem sido influenciado pela evolução legislativa para a formação de uma nova fase de estímulo à composição de litígios. É diante deste cenário que a Administração Tributária tem a oportunidade de implementar os instrumentos e mecanismos postos à sua disposição, em atenção aos novos paradigmas do direito contemporâneo da eficiência e consensualidade.

Como visto, a transação é um instrumento posto à disposição de todos os entes federados, como forma alternativa de solução de conflitos tributários e meio adequado para arrecadação de créditos de difícil recuperação.

A principal especificidade desta medida, e talvez a grande vantagem, é a possibilidade de o próprio contribuinte apresentar propostas de pagamento, dentro das suas possibilidades financeiras.

Em tempos atuais, a participação do devedor na iniciativa de pagamento do crédito tributário é ínfima na maioria dos casos, ficando à Fazenda Pública a responsabilidade de ditar as regras de pagamento, como por exemplo, nos famosos Parcelamentos Especiais e Refis. O instituto da transação tributária visa resgatar os primados do princípio da igualdade e da capacidade tributária, cujo objetivo é racionalizar a cobrança do tributo e permitir que cada contribuinte apresente individualmente suas condições de pagamento.

Com uma legislação adequada de transação tributária haverá condições de estabelecer um importante canal de diálogo entre o fisco e o contribuinte, com vistas a resolver conflitos derivados do processo tributário. Em lugar da Administração tributária legalista, avessa à comunicação com a sociedade, permite-se o surgimento de uma Administração tributária dialógica e consensual [4].

Ao permitir que os contribuintes possam quitar seus débitos tributários por meio da transação, com a prévia análise de perfil econômico de forma individualizada, estará da mesma maneira, inaugurando a possibilidade de uma administração aberta à participação, na qual há espaço para diálogo entre fisco e contribuintes. Tal perspectiva é condizente com uma dimensão pluralista do direito público, preocupada com a eficiência e efetividade dos resultados almejados e que visa à edição de atos mais permeáveis para a consideração dos interesses dos administrados.

Em vez de uma posição cômoda e legalista, a Administração Pública poderá chamar o contribuinte para participar do processo de construção do procedimento de pagamento, sendo ouvido  dentro das suas necessidades  antes da decisão administrativa. Enquanto o modelo tradicional de vinculação à lei não gerava resultados satisfatórios, podemos ter a substituição por um modelo gerencial em que estabeleça objetivos claros e com metas determinadas que poderão atender conjuntamente aos interesses da Fazenda Pública e do contribuinte. 

É necessário superar aquela visão conservadora que, em nome do cumprimento rígido do princípio da indisponibilidade, praticava-se atos sem qualidade que geravam resultados maléficos para o Estado. Não adianta a Administração Pública manter um gasto astronômico em custas judiciais e honorários de sucumbência para ficar recorrendo eternamente aos tribunais sem probabilidade de sucesso.

As alterações legislativas contemporâneas têm fortalecido cada vez mais o contexto para que as partes utilizem os meios alternativos de solução de conflitos, lembrando que se trata de institutos idôneos introduzidos pelo legislador ordinário e que em nada se contrapõe aos ditames constitucionais.

Neste passo, a transação é um meio apto a promover a regularidade fiscal do contribuinte inadimplente, sem necessidade de paralisação da sua atividade econômica, especialmente no atual momento de crise econômica desencadeada pela pandemia do Coronavírus. Além disso, a transação tributária promove uma análise casuística do perfil de cada devedor, com mecanismos e condições diferenciados para cada perfil de contribuinte com débitos, em atendimento aos princípios da capacidade contributiva, isonomia, eficiência, justiça fiscal e do interesse público.

Em respeito ao princípio da capacidade contributiva, as legislações que instituírem a transação tributária devem apresentar requisitos objetivos para que seja garantida a isonomia no momento da avaliação das propostas dos contribuintes. Isso quer dizer que ao se dispor da cobrança tributária, deve ser avaliado, além do interesse fazendário, também as condições que garantam a capacidade contributiva. Deve-se analisar, por exemplo, de forma individual, o histórico fiscal do devedor, a economicidade da medida, a sua situação econômica, o tempo de duração do processo em Juízo, a chance de êxito da causa, etc.

Nesse particular, importa ressaltar que a transação é um modelo muito mais eficaz do que os Programa de Recuperação Fiscal (Refis), visto que não serão mais necessárias alterações legislativas anuais para efetivação das negociações. Além disso, segundo Nota Técnica 3 elaborada pela Unafisco Nacional [5], os parcelamentos especiais (Refis) beneficiam primordialmente os grandes contribuintes, pois mais de 68% dos parcelamentos especiais são concedidos a contribuintes diferenciados, aqueles com faturamento anual acima de R$ 150 milhões.  Por outro lado, a transação tributária considera a capacidade de pagamento do contribuinte, de forma que o benefício seja concedido na medida dessa capacidade, refletindo a justiça fiscal, o interesse da arrecadação e o interesse público.

O modelo de transação tributária implantada no Brasil utilizou o exemplo norte-americano, vez que possui bastante similaridade com o instituto do "Offer in Compromise", praticado pelo Departamento da Receita Federal – Internal Revenue Service (IRS) –, dos Estados Unidos da América. Nesse ponto, ressalte-se que o modelo norte-americano é referência mundial sobre o assunto, considerando que os Estados Unidos possuem mais de cem anos de experiência na negociação de dívidas fiscais.

O programa Offer in Compromise (ou OIC), nos Estados Unidos, é um programa do (IRS[6], que permite que determinados contribuintes elegíveis com uma dívida fiscal não pagam, negociem um valor inferior ao total devido para liquidar a dívida. O Departamento da Receita Federal (IRS) considera um conjunto único de fatos e circunstâncias do contribuinte como: Capacidade para pagar; Renda; Despesas; e Patrimônio líquido. Em suma, o objetivo do programa OIC é aceitar a oferta de compromisso quando o valor oferecido representa o máximo que o governo espera receber de determinado contribuinte dentro de um período de tempo razoável.

Denota-se, dessa forma, um afastamento do modelo que considera exclusivamente o interesse privado, notadamente com os programas especiais de parcelamento (Refis), sem qualquer análise casuística do perfil de cada devedor e, consequentemente, uma aproximação da diretriz alinhada com os princípios da capacidade contributiva, isonomia, eficiência, justiça fiscal e do interesse público.

No âmbito federal, a Medida Provisória nº 899/2019, convertida posteriormente na Lei nº 13.988/20, regulamentou a transação tributária.  De acordo com os dados divulgados pela PGFN [7], foram celebrados 268.215 acordos de transação, formalizados com cerca de 66 mil pessoas físicas e mais de 201 mil pessoas jurídicas, permitindo a regularização de 819.194 inscrições na dívida ativa da União. Do total, aproximadamente R$ 60 bilhões eram classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, ou seja, um montante de recursos que dificilmente ingressaria nos cofres da União sem o advento do instrumento da transação.

Existem várias experiências bem sucedidas no âmbito nacional, sendo que no município de São Paulo, a transação tributária foi autorizada pela Lei 17324/2020, permitindo que, em juízo de oportunidade e conveniência, poderá ser celebrada a transação sempre que, motivadamente, entender que a medida atenda ao interesse público. Também existe a Lei 13.028/2022, a qual instituiu a mediação tributária no município de Porto Alegre.

Neste mesmo sentido, o município de Blumenau, no estado de Santa Catarina, de uma forma pioneira, regulamentou o instituto da transação tributária através da Lei 8.532/2017.  De uma forma inovadora, a legislação do município de Blumenau estabeleceu um sistema interessante em que uma Câmara de Transação analisará obrigatoriamente as condições pessoais do contribuinte, a fim de respeitar o princípio da capacidade contributiva no momento do acordo administrativo. As concessões realizadas pelo contribuinte e município para fins de transação importará em descontos percentuais sobre a multa e os juros incidentes sobre os créditos, podendo avançar progressivamente sobre o crédito principal. Esses descontos, disciplina a lei, serão concedidos conforme a somatória das notas atribuídas pela Câmara de Transação.

Desta forma, o instituto da transação tributária, ao mesmo tempo que se aproxima do princípio da capacidade contributiva, atende o princípio da eficiência, na medida em que racionaliza a cobrança dos tributos. Tal perspectiva condiz com uma dimensão pluralista do direito público em matéria tributária, com visão voltada a eficiência e efetividade dos resultados almejados e que visa à edição de atos mais permeáveis para a consideração dos interesses dos administrados, levando em consideração, a economia e celeridade processual.

 


[4] OLIVEIRA, Gustavo Justino de; SCHWANKA, Cristiane. A administração consensual como a nova face da Administração Pública no Sec. XXI: fundamentos dogmáticos, formas de expressão e instrumentos de ação. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro, nº 10, p. 276-277, abr.-jun. 2008.

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