Opinião

Impossibilidade de revisão de contratos administrativos, com efeitos retroativos

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17 de outubro de 2023, 20h26

A Constituição determina que, ressalvados os casos previstos na legislação, as obras, serviços, compras e alienações da Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, serão contratados com terceiros, mediante processo de licitação, que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta.

Nesse sentido, a equação econômico-financeira de um contrato administrativo, é definida no momento da apresentação da proposta pelo então licitante, e não da assinatura ou da vigência do ajuste, podendo ser invocada, no decorrer da contratação, tanto pela Administração como pela contratada, a fim de que sejam mantidas as condições efetivas da proposta.

Para prevenir ou equalizar o eventual desequilíbrio econômico-financeiro de um contrato administrativo, a depender da situação concreta, as partes têm à disposição os seguintes instrumentos: a) reajuste; b) revisão; c) atualização monetária; e e) repactuação.

O reajuste, em sentido estrito, tem por objetivo preservar o valor do contrato, frente à inflação. Trata-se de modificação periódica, no valor do ajuste, atrelada à perda do poder aquisitivo da moeda. Este índice deve estar previsto no contrato.

A revisão, por sua vez, cuida-se de alteração nas cláusulas econômico-financeiras do contrato, em decorrência de fatos supervenientes e imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que modifiquem extraordinariamente os custos do ajuste, culminando na necessidade de adequação destas cláusulas para que correspondam à nova realidade econômica e financeira vivenciada. Trata-se de um direito das partes, que independe de previsão no contrato, pois decorre diretamente da lei, podendo ser suscitado tanto pela Administração como pela contratada.

Já a atualização financeira, tem como objetivo recompor a perda do poder aquisitivo da moeda, decorrente da inflação, da data final do período previsto para o adimplemento de cada parcela até a data de seu efetivo pagamento.

Por fim, a repactuação, que trata-se de uma ferramenta jurídica atrelada às contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra ou predominância de mão de obra. Consiste na alteração de cláusulas econômico-financeiras, para refletir a variação dos componentes dos custos do contrato, notadamente àqueles que decorrem de acordos, convenções e dissídios coletivos de trabalho, devendo estar prevista no contrato.

O Tribunal de Contas da União, possui entendimento no sentido de que pedidos de restabelecimento de equilíbrio econômico-financeiro de contratos, devem ser formulados, pela contratada, junto ao ente público, antes da eventual prorrogação do ajuste, para o período. Isso porque, para a Corte de Contas, quando as partes convencionam, em termo aditivo, que a vigência inicialmente pactuada no instrumento contratual será prorrogada, ratificando as demais cláusulas contratuais, estabelecem que o preço (uma das cláusulas do ajuste) está mantido para o próximo período de vigência, ocorrendo, nesse sentido, preclusão para pedidos posteriores de reequilíbrio, referente ao período envolvido.

Este entendimento foi consolidado na nova Lei de Licitações, a qual dispõe, no parágrafo único, de seu artigo 131, que "o pedido de restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro deverá ser formulado durante a vigência do contrato e antes de eventual prorrogação".

Contudo, no que diz respeito ao instituto da revisão, o qual constitui foco de exame deste artigo, o entendimento em apreço, hoje consolidado na legislação, merece uma análise crítica.

O fundamento da revisão, encontra-se previsto no artigo 124, inciso II, alínea "d", da nova Lei de Licitações, com redação semelhante à do artigo 65, inciso II, alínea "d", da, ainda vigente, Lei 8.666/93:

"Artigo 124, Lei 14.133/21. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
II – por acordo entre as partes:
d) para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que inviabilizem a execução do contrato tal como pactuado, respeitada, em qualquer caso, a repartição objetiva de risco estabelecida no contrato."

A revisão refere-se a fatos supervenientes e imprevisíveis, ou previsíveis, mas de consequências incalculáveis, que desequilibram a equação econômico-financeira do contrato, inviabilizando a execução de seu objeto tal como inicialmente ajustado, culminando na necessidade de que as partes adotem medidas para equalização do problema.

Contudo, ao contrário do reajuste, e até mesmo da repactuação, sua configuração envolve uma análise ampla, criteriosa, complexa, minuciosa e, muitas vezes, demorada, tanto pelo particular que a invoca, como pela Administração que a analisa, abrangendo diversas etapas.

O professor Marçal Justen Filho, ensina, nesse sentido:

"(…) a primeira consiste na verificação de todos os custos originariamente previstos pelo contratado para a formulação de sua proposta. A segunda etapa é a investigação dos custos que efetivamente oneraram o particular ao longo da execução do contrato. A terceira etapa é a comprovação da ocorrência de algum evento imprevisível e superveniente apto a produzir o desequilíbrio entre os custos estimados e os efetivamente existentes. A quarta etapa reside na adoção de providência destinada a reduzir os encargos ou a ampliar as vantagens, de modo a assegurar a manutenção da relação original". (Curso de direito administrativo [livro eletrônico] / Marçal Justen Filho. 5. ed. Capítulo 9. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018).

Considerando a complexidade envolvida nas etapas que compõem a análise, a configuração e a efetiva demonstração, pela contratada, de situação que acarrete na necessidade de revisão de valores contratuais, para fazer face ao reequilíbrio econômico-financeiro de um contrato, nos termos do artigo 124, inciso II, alínea "d", da Lei nº 14.133/21, complexidade esta também presente para a Administração que deve proceder a análise conclusiva e criteriosa sobre o pedido da contratada, nem sempre se faz exequível a formalização, entre as partes, das cláusulas de revisão, no exato e correspondente momento em que se faz imprescindível e inadiável a simples prorrogação de prazo do ajuste.

Tratam-se de situações distintas: uma diz respeito ao valor contratual e outra ao prazo contratual, não havendo relação de interdependência entre elas, de modo que a formalização de uma não deveria implicar na preclusão da outra.

Nesse sentido se manifesta o professor Joel de Menezes Niebuhr (grifos acrescidos):

"Quem concorda em estender o prazo do contrato não está com isto realizando comportamento logicamente incompatível com a repactuação, reajuste ou revisão. Um diz respeito ao prazo e o outro ao valor do contrato. Um não depende do outro, são coisas distintas. Não há razões para confundi-las, pelo menos não há razões legítimas. (…) Dessa sorte, em que pese o silêncio da Lei nº 8.666/93, pode sim ocorrer a preclusão temporal se o direito à repactuação, ao reajuste e à revisão não for exercido na vigência do contrato ou antes da assinatura de termo aditivo de prorrogação, desde que isto esteja previsto expressamente e com todas as letras no contrato administrativo. No silêncio da Lei e do contrato, não há de falar em preclusão temporal, muito menos, como já acentuado, em preclusão consumativa e lógica, estas últimas totalmente impertinentes à espécie." (NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. Belo Horizonte, Fórum, 2015, p. 1056s).

No caso da revisão, as partes estão lidando com fatos supervenientes e imprevisíveis, ou previsíveis de consequências incalculáveis, situação diversa daquela que envolve a simples prorrogação contratual, cuja previsão é, quase sempre, esperada. Nesse sentido, o levantamento de todos os dados, informações, especificações e documentos aptos a demonstrar que o particular faz jus ao reequilíbrio econômico-financeiro de um contrato, decorrente de fatos supervenientes e imprevisíveis, ou previsíveis de consequências incalculáveis, pode levar tempo a ser consolidado e efetivamente apresentado ao ente público, em razão das complexidades envolvidas. Da mesma forma, a análise minuciosa do requerimento protocolado pelo particular, também pode demandar, da Administração, um certo tempo para conclusão. Essa é a razão pela qual nem sempre é possível formalizar, no mesmo instrumento de aditamento, e na mesma data, a prorrogação de prazo e a revisão de valores contratuais.

O professor Joel de Menezes Niebuhr é exatamente nesse sentido (grifos acrescidos):

"Ocorre que, muitas vezes, o contratado precisa reunir documentos para apresentar à Administração pedido de revisão do contrato, o que demanda algum tempo. Demais disso, a Administração também consome algum tempo para avaliar o pedido de revisão. Então, continuando no exemplo, embora o evento que enseja a revisão tenha ocorrido em 1º de junho, o contratado somente formulou o pedido em 8 de junho e a Administração somente se pronunciou em 25 de agosto. Como dito, o contratado faz jus à revisão desde a data do evento que a autoriza, nada obstante o pedido dele tenha sido formulado posteriormente e a Administração tenha reconhecido o direito a ela ainda mais tarde. Isso significa que a revisão opera efeitos ex tunc, isto é, os efeitos dela retroagem à data do evento que lhe serve de fundamento".

Também importante observar as lições do professor Marçal Justen Filho:

"A Lei proíbe, implicitamente, que o contrato preveja efeitos financeiros retroativos a período anterior à sua lavratura.
(…)
De todo o modo, é imperioso diferenciar, em primeiro lugar, efeito retroativo do contrato e efeito retroativo do instrumento contratual. A relação jurídica entre Estado e um terceiro não se confunde com o instrumento escrito que a formaliza. Por isso, a vedação ao efeito retroativo deve ser reputada como uma regra que se aplica à relação jurídica, visando a evitar que a relação jurídica imprima às partes direitos ou deveres atinentes ao período anterior ao aperfeiçoamento da avença. Outra é a questão da formalização de direitos e deveres, que possam surgir no relacionamento contratual entre as partes. É perfeitamente compatível com a ordem jurídica que direitos e deveres surjam, depois de avençada a contratação, ainda que sejam formalizados em época posterior. Isso envolve duas ordens de hipóteses. A primeira relaciona-se com a questão de contratações verbais. Tal como acima exposto, reputam-se cabíveis contratações verbais em extensão mais ampla do que o previsto no artigo 60, parágrafo único, da Lei 8.666/1993. E tal deriva de imposições constitucionais, atinentes à indisponibilidade dos interesses fundamentais. A segunda situação tem relação com aditivos contratuais. Pode ser inevitável, ao longo da contratação, a ocorrência de fatos cujos efeitos jurídicos somente serão devidamente apurados em momento posterior. Assim, o caso mais evidente é o da recomposição da equação econômico-financeira da contratação. É evidente que essa hipótese envolve, na esmagadora maioria dos casos, eventos ocorridos anteriormente. Logo, produz-se a formalização em momento posterior. Quando se invoca a vedação ao efeito retroativo, pretende-se, na maior parte dos casos, reprovar evento de outra ordem. Trata-se de reprovar a realização de prestação pela parte antes de sua formalização por escrito. Assim se passa, por exemplo, quando a Administração desembolsa pagamentos mais elevados do que os previstos contratualmente, somente produzindo aditivo contratual em época posterior" (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos Marçal Justen Filho. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019).

Quando se invoca a vedação ao efeito retroativo, pretende-se, na verdade, evitar a realização de prestação pela parte antes de sua formalização por escrito. Assim, o que se visa vedar, é o desembolso, pela Administração, de pagamentos mais elevados do que aqueles previstos contratualmente, de forma prévia à formalização de aditivo contratual nesse sentido.

Não se mostra adequada a aplicação de preclusão à situação sob análise, pois, ao firmar termo aditivo de prorrogação contratual, a contratada não pode simplesmente perder os direitos que a lei lhe assegura, quanto à possibilidade de recomposição do reequilíbrio econômico-financeiro, especialmente no caso da revisão, que decorre de situações que não guardam qualquer relação de interdependência com o prazo contratual. Ora, se envolve fatos supervenientes e imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, como pode a legislação exigir das partes comportamento de previsibilidade para o caso?

O próprio Tribunal de Contas da União, já emitiu decisão valendo-se deste raciocínio:

"O reequilíbrio econômico-financeiro pode se dar a qualquer tempo; consequentemente não há que se falar em periodicidade mínima para o seu reconhecimento e respectiva concessão. Com efeito, se decorre de eventos supervenientes imprevisíveis na ocorrência e (ou) nos efeitos, não faria sentido determinar tempo certo para a sua concessão. Na mesma linha de raciocínio, não pede previsão em edital ou contrato, visto que encontra respaldo na lei e na própria Constituição Federal, sendo devida desde que presentes os pressupostos.
25. Nesse sentido, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes (Comentando as licitações públicas – Série: grandes nomes. Rio de Janeiro: Temas e Idéias, 2002, p. 185) ensina que “enquanto o reajuste e a repactuação têm prazo certo para ocorrer e periodicidade pré-definida, o reequilíbrio pode se dar a qualquer tempo (…)". […] (Acórdão TCU nº 1.563/2004 – Plenário).

Assim, em que pese a jurisprudência da Corte de Conta da União, consolidada no parágrafo único, do artigo 131, da nova Lei de Licitações, no sentido de que o pedido de restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro deverá ser formulado antes de eventual prorrogação do contrato, há fundamentos sólidos para críticas a este entendimento, notadamente no que pertine à revisão dos contratos administrativos.

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