Opinião

Neville Chamberlain e o Supremo Tribunal

Autor

  • João Carlos Souto

    é professor de direito constitucional doutor em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (Ceub) procurador da Fazenda Nacional e autor do livro Suprema Corte dos Estados Unidos – Principais Decisões (4ª ed editora Atlas).

16 de outubro de 2023, 10h20

A Europa da década de 1930 assistiu, num misto de perplexidade e inércia, a construção, pela Alemanha, de uma estrutura bélica poucas vezes testemunhada na história. França e Inglaterra, embora ameaçadas pela máquina de guerra germânica, escolheram o caminho da passividade e da crença que o pior poderia ser evitado via diplomacia, muito embora os sinais, especialmente já no fim da década, apontavam justamente no sentido o contrário.

O resultado, a Segunda Guerra Mundial, foi uma das páginas mais tristes da História: países destruídos, milhões de vítimas fatais, uma desumanidade e um cenário de devastação muito mais grave do que Voltaire eternizou no clássico Poema sobre o Desastre de Lisboa.

Spacca
Atribui-se ao então primeiro-ministro inglês, Neville Chamberlain, parte da responsabilidade pelo início da catástrofe da Segunda Grande Guerra, por não ter sido enérgico o suficiente contra as exigências do Führer, em setembro de 1938, ao celebrar, juntamente com França e Itália, o "Acordo de Munique", que em síntese expressava a concordância dos signatários em ceder parte do território da então Tchecoslováquia à Alemanha. Embora o acordo tenha sido assinado igualmente pela França, Chamberlain é considerado o maior responsável porque foi grande entusiasta e a concordância da Inglaterra foi decisiva para idêntica postura francesa.

Chamberlain, um homem de muitas qualidades, tornou-se símbolo de fraqueza e sua falta de firmeza fez surgir a expressão appeasement, que se pode traduzir como concessão política, material, territorial que um país faz a outro militarmente mais forte na esperança de evitar um conflito bélico. Que não conseguiu evitar porque logo depois a Alemanha invadiu a Tchecoslováquia e a anexou. Em 1939 a Polônia, depois a França…

O Supremo Tribunal Federal, a mais alta Corte de justiça do Brasil, a partir de 1988 assumiu atribuições mais largas que desembocam em um protagonismo somente superado, talvez, pela Suprema Corte dos Estados Unidos, que em 1954 pôs fim à segregação racial oficial (Brown v. Board of Education) e em 1973 liberou o aborto (Roe v. Wade), decisão que permaneceu por quase 50 anos, até junho de 2022.

Com a Constituição de 1988 o STF lentamente deu início ao exercício de uma prerrogativa que já existia entre nós desde a Constituição de 1891, mas que nunca antes havia sido exercida de forma tão larga: aborto, direito de greve de servidores públicos, criminalização da homofobia, reconhecimento de uniões homoafetivas, desocupação da terra indígena Raposa Serra do Sol; são, entre outros, exemplos maiúsculos de um poder que o STF jamais experimentara e que só conhecida dos livros, de relatos da Corte estadunidense, antiga a superar dois séculos.

O STF empoderado começou a incomodar. Em 2019 assumiu a presidência da República um capitão do Exército que anos antes havia sido expulso daquela Força. A partir desse momento a relação de equilíbrio entre os poderes experimentou enorme fissura, culminando com ataques frequentes à Corte e a alguns dos seus ministros, vítimas de uma virulência jamais vista, instigada pelo titular do Poder Executivo federal.

O mais importante Tribunal do país, aquele que a Constituição disse ser seu guardião, foi ameaçado diuturnamente. Ministros foram objeto de ataques verbais e perseguições: em Nova York, dentro de aviões e em filas de embarque. Recentemente (14.07.23), na Itália, o ministro Alexandre de Moraes e sua família sofreram agressões verbais e ao que tudo indica físicas também. A então presidente do STF, ministra Rosa Weber, determinou busca e apreensão na residência dos acusados. Foi o bastante para que setores da comunidade jurídica passassem a enxergar na determinação uma quebra do Estado de Direito, da legalidade etc.

A Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) foi criada em 1993 e só regulamentada pela Lei 9.868/99. Entre 1993 a 1999 o STF julgou várias ADCs com base em sua jurisprudência. Mais ou menos nesse período o Tribunal "criou" a figura da "pertinência temática", pela qual alguns dos legitimados do artigo 103 da Constituição não eram "totalmente" legitimados para propor Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).

Pouco se reclamou quando o STF buscou alternativas para a omissão do legislador. Agora, em 2023, parece exagerado reclamar quando o STF busca afastar as ameaças que ainda persistem contra a Democracia brasileira mesmo depois das eleições de 2022 e da tentativa de golpe do 08 de janeiro.

A omissão de Neville Chamberlain custou caro à Europa e ao mundo. O STF conhece bem a história dos anos 1930 e age corretamente ao usar de suas prerrogativas para não permitir que ela se repita por aqui.

*Artigo publicado anteriormente, em inglês, nos Estados Unidos, sob o título Brazil's Federal Supreme Court Grapples With the Specterof Neville Chamberlain, em 31/8/23, no portal Jurist.org

Autores

  • é professor de Direito Constitucional (UDF), mestre e doutor (suma cum laude) em Direito (Ceub), procurador da Fazenda Nacional, autor de "Suprema Corte dos Estados Unidos — Principais Decisões" (Atlas, 4ª ed/2021).

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