Opinião

35 anos da Constituição de 1988: desafios e conquistas

Autores

  • Marcelo Antonio Theodoro

    é doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) pós-doutor pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) professor associado da Universidade Federal de Mato Grosso e líder do Grupo de Pesquisa em Direito Constitucional e Hermenêutica (GConst).

  • Kennedy Bispo

    é graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e membro do Grupo de Pesquisa em Direito Constitucional e Hermenêutica (Gconst).

14 de outubro de 2023, 15h18

Há 35 anos completados neste mês de outubro, a promulgação da Constituição trouxe conquistas democráticas inegáveis para a sociedade brasileira, embora tenha flertado com retrocessos que poderiam nos fazer mais lamentar do que comemorar essa data. As efemérides, se alguma utilidade tem, é a de nos chamar a reflexões e balanços sobre o evento que aniversaria.

A resiliência decantada pelo ilustre professor da FGV Oscar Vilhena Vieira em célebre artigo publicado no Jubileu de prata (VIEIRA, Oscar Vilhena, 2013) não se mostrou suficiente sem a atuação das instituições, em especial o Congresso  especificamente por meio do Senado , a sociedade civil organizada e, claro, com algum protagonismo inesperado, o Supremo Tribunal Federal.

Spacca
O órgão de cúpula do judiciário brasileiro ascendeu às manchetes dos jornais e plataformas eletrônicas de notícias em razão das decisões no sentido de salvaguardar o Estado Democrático e, em alguma medida, nos últimos anos, enfrentar uma crise sanitária decorrente da pandemia da Covid-19, na contramão da desastrosa condução política do executivo federal e da corrupção também endêmica nas esferas políticas estaduais e municipais.

Nesse particular do protagonismo judicial, o Estado brasileiro passou a enfrentar um novo desafio. Além da perda da credibilidade pela classe política perante a população brasileira, com a estigmatizante nódoa da corrupção, sobreveio na experiência constitucional uma desinteressada campanha de deslegitimação do Poder Judiciário que, embora eventualmente ultrapasse os limites da jurisdição por circunstâncias várias, tornou-se sistematicamente suscetível a ataques que buscam, antes, a ruptura com a ordem constitucional estabelecida na Constituição, e não críticas legitimas contra os eventuais excessos.  

Outro fenômeno dos últimos anos foi sem dúvidas, o recrudescimento das diferenças ideológicas que acentuou uma divisão que sempre existiu na sociedade brasileira, mas que tomou proporções nunca vistas, ameaçando até mesmo como já se disse, a democracia e as suas instituições. E é nesse sentido que a presente reflexão pretende se deter.

Importante esclarecer que os dissensos ideológicos fundados nas diferentes formas de conceber a experiência social na vida pública ou privada são saudáveis à maturação de uma experiência constitucional plural, todavia, o que se percebe na realidade brasileira contemporânea é a perda da capacidade de construir consensos que são e devem ser fundamentados na busca pelo cumprimento dos objetivos republicanos eleitos na constituinte.

A liberdade de expressão, tão cara e imprescindível ao Estado democrático de Direito é uma conquista civilizatória do constitucionalismo liberal desde o século 18.

Com a Constituição de 1988, criaram-se muitas expectativas em torno do exercício das liberdades públicas de expressão, notadamente se considerados os 21 anos de arbítrio que lhe antecedeu, época em que grande dos cidadãos críticos foram silenciados pela violência física ou pela violência política e institucional do regime militar.

Manifestar-se, buscar informações, ser informado, transmitir informações, tudo isso faz parte do chamado núcleo essencial do direito à liberdade de expressão consagrado não somente na Carta de 1988, mas também na Convenção Americana de Direitos Humanos, e que hoje se refletem na imprensa livre, na vedação da censura e no acesso à informação.

Mas há grandes desafios.

O advento da sociedade em rede, amplificada desde 1988 até os dias atuais com a evolução da tecnologia da informação e a popularização das redes sociais operadas pelas big techs  das quais pouco sabemos ainda acerca dos seus objetivos e poderio de domínio sobre o conteúdo do que nos é informado, muitas vezes definidos pelos famigerados "algorítimos"  é uma nova realidade. E esta realidade pode se mostrar por vezes perversa, especialmente com a constatação da proliferação das "fake news" ou manipulação das informações, do discurso de ódio cada vez mais crescente e finalmente da ameaça não mais velada ao próprio sistema democrático.

A miríade de mensagens protetivas da liberdade de expressão e seus corolários na CRFB-88 não desmerece ao contrário objetiva proteger o conjunto de direitos humanos internalizados no texto constitucional e apresentados em forma de princípios e regras, desde seu preâmbulo, permeando seus capítulos, mas especialmente abrindo-se para os tratados e convenções internacionais, como expressa o artigo 5, §2º.

Direito à vida, à saúde, à liberdade religiosa e pluralidade política devem conviver harmonicamente. A proibição da tortura, a proteção da infância e da juventude, dos idosos, das pessoas com deficiência, da comunidade LGBTQIAP+ são alguns dos vetores constitucionais contidos no capítulo que traz um rol exemplificativo dos direitos fundamentais.

A proteção aos vulneráveis, o combate à pobreza e à marginalização são objetivos que se juntam ao combate a todas as formas de discriminação, que foi amplificado com a internalização do tratado internacional ao qual o Brasil foi signatário e que agora, além de fazer parte do "bloco de constitucionalidade", é também formalmente constitucional.

É possível afirmar que não há direitos absolutos na Constituição de 1988. Mas há sim direitos fundamentais que decorrem dos direitos humanos que foram incorporados pelo constituinte originário e que hoje nos possibilitam compreender um sistema muito pródigo na proteção dos homens e mulheres desse Estado brasileiro.

Mas se a proteção constitucional é tão ampla, por que não se diz o mesmo acerca da sua efetividade?

Se o direito e em especial a Constituição como fonte de direito pode muito, por certo não pode tudo. As políticas públicas do executivo nas suas três esferas precisam ter esse sentimento constitucional, sem os velhos desvios da corrupção e da ineficiência. O legislativo deveria pautar-se na finalidade pública como horizonte para integração normativa que de fato visasse o bem-estar da sociedade e não os próprios interesses fisiológicos e eleitoreiros.

Por fim, o Supremo Tribunal Federal a par de muitas vezes se mostrar como esperança da garantia da ordem jurídica e contra os desmandos dos demais poderes, não pode, ele próprio se tornar o tirano, desrespeitando por vezes a separação dos poderes e legislando quando deveria interpretar e dar efetividade à Constituição.

A Constituição completa 35 anos sem vencer os desafios para os quais foi erigida em oposição ao estado autocrático. Evoluções ocorreram, mas nenhum texto por si é suficiente para transformar uma sociedade sem que esta mesmo busque sua emancipação.

Tal emancipação pode sim vir por meio de reformas constitucionais. Mas pouco ou quase nada muda, se a sociedade organizada e pacificamente não buscar as mudanças. Respeito à Constituição, especialmente a essa Constituição que um dia foi chamada cidadã, é um começo, haja vista a vocação para os direitos humanos nela contida.

Mas o apego à democracia também requer respeito, assim como respeito é o que se espera em relação aos pobres, às mulheres, idosos, aos negros, às crianças, à população LGBTQUIA+, aos imigrantes, enfim à diversidade como um todo, ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado. Sem respeito, falharemos miseravelmente nesse projeto que é tão promissor, que é o Brasil da Constituição de 1988.

O povo brasileiro deve compreender que, a pesar das vicissitudes da institucionalidade, somente a busca obstinada pela efetividade dos direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição tornará possível a construção de uma nação autodeterminada, pois são essas diversidades que ela busca proteger que dão forma e completude à identidade nacional.

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pós-doutor pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professor associado da Universidade Federal de Mato Grosso e líder do Grupo de Pesquisa em Direito Constitucional e Hermenêutica (GConst).

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