Opinião

Eficácia jurídica na instrumentalização do vínculo obrigacional pela via eletrônica

Autores

14 de outubro de 2023, 7h08

A adaptação à tela social pós-moderna requer do Direito uma performance minimamente elástica. Em um contexto de aceleração intensa dos processos de internacionalização e mundialização próprios à dinâmica capitalista, assimila-se a tecnologia como ferramenta essencial para o desenvolvimento e a manutenção das relações intersubjetivas, sobretudo a nível de negócios e de mercado escalonado.

Numa perspectiva transindividual, observa-se que o padrão de comportamento dos consumidores, impulsionados pela pandemia do Covid-19 e com recorte aqui específico para as empresas de crédito, se inclinou à manifestação de vontade contratual por intermédio dos meios eletrônicos, ao considerar que a contenção de contato físico à época da crise culminou numa preferência massiva por procedimentos que visassem à flexibilidade e à acessibilidade na forma de adesão e de aceite.

No que se refere à classificação de negócio jurídico em si, contrato é todo acordo de vontades entre partes, desde que atendidos e observados os seguintes requisitos legais: agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei (Brasil, 2006).

Uma digressão mais atenta acerca, especificamente, dos contratos digitais, aponta ora para uma lacuna legislativa ora para uma ausência de entendimento doutrinário consolidado. Observa-se que, sob pena de fomentar a insegurança jurídica, a temática sobre a regulamentação é suprida, em regra, via fonte jurisprudencial, a qual, não obstante não se preste à inovação normativa, contribui para expectativa de interpretação e de modus operandi na condução dos casos concretos.

Por não se tratar de inovação normativa, e sim de fonte material secundária, os precedentes ficam circunscritos, no entanto, à extensão interpretativa dos critérios essenciais à estrutura do ato jurídico, como o aspecto volitivo.

Vê-se que, no plano da validade do negócio jurídico, a partir da escada ponteana [1], a regra que se opera é a de que a forma de contratação é livre, sendo as exceções previamente fixadas em lei no artigo 107 do Código Civil. Nesse sentido, a escolha da forma de pactuação não obsta a finalidade negocial, que pode se explicitar tanto na contratação física quanto na eletrônica.

Mas a discussão sobre contratos digitais está para além da forma prescrita na qual o contrato foi firmado, de modo a melhor se aproximar de uma análise sobre como se dá o cumprimento e, consequentemente, a exteriorização, de uma das condições para validade desse negócio jurídico a vontade. Em síntese, duas decisões recentes que envolvem contratos digitais ajudam a dirimir essa questão:

A 17ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, diante da apelação (n° 1005329-07.2021.8.26.0077) de uma empresa de crédito, a qual requereu provimento ao pedido de reconhecimento da relação contratual que versava sobre empréstimo consignado por meio eletrônico, firmou entendimento no sentido de que a biometria facial valida a manifestação da vontade nos contratos digitais, de maneira a condenar a parte autora ao pagamento de multa de litigância de má-fé.

O relator do recurso, o desembargador Afonso Bráz, ao longo do voto, pontua os detalhes observados no contrato objeto da lide que amparam seu entendimento, sendo 1. número de celular utilizado para pela parte apelante diariamente não divergia do utilizado para contratação eletrônica; 2. a foto da biometria digital — que compreende na captura de dados para análise facial — era similar ao documento de identificação pessoal da parte apelante.

No entendimento acima retratado, é possível verificar ao menos dois procedimentos operacionais que constroem lastro probatório favorável às empresas de crédito [2], quais sejam: 1. registro do Internet Protocol (IP) utilizado na contratação digital; 2. investimento em software para análise de comparação de fotos.

A segunda decisão, também do Tribunal de Justiça de São Paulo, dessa vez da 18ª Câmara de Direito Privado, proferiu acórdão que fortalece a decisão da 17ª Câmara de Direito Privado, no sentido de validar empréstimo consignado contratado por meio digital pela soma de fatores de autenticação:

"Contudo, como se sabe, inexiste vedação legal em relação à contratação por meio digital, e no caso, repita-se, o instrumento se encontra devidamente assinado eletronicamente, com a combinação de diversos fatores de autenticação que atestam a integridade da manifestação de vontade, mediante biometria (impressão digital e selfie) e juntada de documentos pessoais (fls. 81/104), o que, por certo, garante a validade jurídica do documento.
(…)
Desse modo, no tocante ao requisito da forma, a inexistência de contrato impresso, com a assinatura física das partes, mostra-se irrelevante para a comprovação do vínculo obrigacional (…)."

Nesse sentido, a implementação da Medida Provisória 2200-2, 2001 a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileiras (ICP-Brasil), apesar de não afastar a ausência de lacuna legislativa, contribui para observância dos princípios da integridade, bem como da autenticidade, próprios à segurança da informação, ao viabilizar a emissão de certificados digitais para identificação virtual do cidadão e atuar como uma possibilidade de identidade virtual verificada de pessoas físicas e jurídicas.

Ao parametrizar as duas decisões, que se situam como importantes precedentes, é imprescindível que as empresas de crédito se atentem, na fase burocrática da contratação, aos gaps de certificação (registro, certificação de tempo, serviço biométrico e exigência de documentos pessoais).

A atuação diligente previne principalmente a judicialização de demandas que versam sobre contratos fraudulentos, ou seja, contratos em que foram utilizados dados de terceiros, à revelia do consentimento do consumidor-contratante, em ações manejadas sob fundamento em eventual fortuito interno [3] e defeitos relativos à prestação de serviços.

A eficácia jurídica da contratação por via eletrônica não retira a responsabilidade objetiva das empresas de crédito no que tange aos deveres e princípios protecionistas do Código de Defesa do Consumidor [4], sendo certo de que a liberdade de forma na exteriorização da autonomia de vontade não exime as empresas das obrigações comuns às modalidades contratuais típicas.

Em verdade, por analogia, ao considerar as repercussões jurídicas que afetam as empresas de crédito, sobretudo quanto ao caráter indenizatório dos riscos de empreendimento, não é forçoso concluir que a modalidade eletrônica possui força probatória idêntica àquela dos contratos físicos, desde que seja instruída com documentos considerados essenciais pelos tribunais e regida, enfim, pelos princípios gerais do direito, pelos bons costumes e pelas normas de ordem pública.

 


Referências
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.

BRASIL. Lei Nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1990.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 479. As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, [2012]. Acesso em: 04 set. 2023.

Mello, Marcos Bernardes de. Contribuição ao estudo da eficácia do negócio jurídico pendente conditione. In: Revista de direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, n. 32, p. 65-85 1977.

REANI, Valéria. Será que os contratos digitais possuem eficácia jurídica? OAB 3ª subseção de Campinas, Campinas, 2017. Disponível em: https://oabcampinas.org.br/sera-que-os-contratos-digitais-possuem-eficacia-juridica/. Acesso em: 08 ago 2023.

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. 17ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n° 1005329-07.2021.8.26.0077. Apelante: Banco C6 Consignado S/A. Apelado: Cleia Braga Silva. Relator: Afonso Bráz. São Paulo, 2022.

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. 18ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n° 1092750-29.2022.8.26.0100. Apelante: Cristiano Neres Santos. Apelado: Banco Bmg S/A Relator: Henrique Rodriguero Clavisio. São Paulo, 2023..

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!