Opinião

Law and Economics à brasileira: o consequencialismo inconsequente

Autores

  • Maurício Zockun

    é advogado sócio da Zockun Advogados professor de Direito Administrativo nos cursos de graduação especialização mestrado e doutorado da PUC-SP livre-docente e doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP. 

  • Carolina Zancaner Zockun

    é professora de Direito Administrativo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-doutora em Democracia e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae – Centro de Direito Humanos (IGC/CDH) da Universidade de Coimbra (UC) mestre e doutora em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e procuradora da Fazenda Nacional.

13 de outubro de 2023, 6h05

O direito não "nasce" por geração espontânea
Aplicar o direito é interpretá-lo. O direito não irradia automaticamente os seus efeitos sem que haja um ato de vontade tendente a aplicá-lo ou reconhecer a sua incidência em uma situação concreta. Até em relação aos denominados atos administrativos produzidos sem vontade, há necessidade de interpretar um comando normativo para, a partir dessa interpretação, instrumentalizar a produção dessa espécie de ato administrativo (o que se dá, por exemplo, com uma placa de trânsito, uma faixa de pedestre, um sinal luminoso etc.).

E não há nada de novo ou genial nessa constatação. Isso porque toda a comunicação humana formalizada por meio de signos demanda que o produtor e o destinatário desses comandos o interpretem. E como o direito instrumentaliza os seus comandos por meio de signos, aplicar o direito é interpretá-lo.

O "intérprete médio" do direito
Como o direito pretende proporcionar as condições necessárias para que os comportamentos sociais sejam previsíveis, os destinatários dos comandos legais são os seus intérpretes por excelência. Afinal, se eles não compreenderem o conteúdo, sentido e alcance do comportamento prescrito em vista da ocorrência de uma dada situação, o objetivo do direito será frustrado.

E por esta razão que a hermenêutica clássica assinala que os primeiros métodos de interpretação são, precisamente, a interpretação gramatical dos comandos (no contexto em que esses comandos foram empregados) e a compreensão dos signos contidos na lei em seu sentido comum ou vulgar. Nada mais razoável. Afinal, como o direito é construído para ser compreendido pela população em geral, esses dois métodos hermenêuticos proporcionam ao "intérprete médio" um papel de destaque na construção do conteúdo, sentido e alcance dos comandos legais. Isso significa que a população em geral se qualifica como "intérprete médio" do direito, sendo que o método de interpretação adotado por esses exegetas tem sua relevância jurídica e social.

Quer-se com isso dizer que a interpretação dos comandos normativos não está reservada a um grupo de iniciados (nós, os operadores do direito). Nós podemos interpretar — e é conveniente que façamos isso —, mas assumimos um papel de destaque nas "divididas de bola", campo no qual surgem as dúvidas interpretativas reais e, por força dessas dúvidas, podem emergir o litígio.

Quando o "intérprete médio" perde o seu protagonismo hermenêutico?
A uso da linguagem natural nas normas jurídica tem a virtude de permitir que um maior número de destinatários compreenda o seu significado. Essa linguagem, no entanto, é usualmente permeada de alta carga de ambiguidade e vagueza, o que se procura reduzir, mas não eliminar, pela utilização da linguagem técnica. Genaro Carriò e Agustín Gordillo já trataram com grande proficiência do tema.

Quando a linguagem natural perde espaço nas normas jurídicas para a linguagem técnica, o "intérprete médio" cede o seu lugar de destaque para o "intérprete qualificado", ainda que estes últimos não raramente adotem critérios inadequados e incoerentes, como Lenio Streck cansa de denunciar aqui na ConJur.

Como o "intérprete qualificado" entra em campo "na dividida de bola", há casos em que situações jurídicas contrárias à ordem jurídica acabam irradiando os seus efeitos, por muito tempo e para muitos destinatários, inclusive. E como o direito trata esses casos?

O "intérprete médio", fiado na ideia de previsibilidade e segurança – que justificam a existência do próprio direito — poderia concluir que, em casos como esse, valeriam as máximas: "deixa como está", "se mexer, piora" ou, ainda, "pau que nasce torto, morre torto". Mas são justamente esses casos — de "dividida de bola" — que o "intérprete médio" cede espaço para o "intérprete qualificado".

E foram dois notáveis "intérprete qualificados" que deram tratamento técnico à questão construindo os institutos 1) da "barreiras à invalidação", ideia defendida por Weida Zancaner e 2) da "proteção da confiança", pensamento de Almiro do Couto e Silva. Esses dois autores edificaram os alicerces do que, atualmente, afirma-se ser o "consequencialismo", introduzido em 2018 no artigo 20 da LINDB.

Convalidação e barreiras à invalidação: as mães do consequencialismo
Há tempos se enfrenta no direito questões relacionadas aos vícios dos atos jurídicos. Em seu "The General Principles of Constitutional Law in the United States of America", Thomas Cooley afirmava que atos contrários à ordem jurídica eram inexistentes e não produziam efeito algum. Entre nós — e a exemplo do que se processou em outras Nações —, a nulidade absoluta dos atos normativos inválidos foi sendo relativizada, pois reconheceu-se a necessidade de estabilização dos efeitos dos atos inválidos pela existência das denominadas "barreiras à invalidação" ou, ainda, pela sua reprodução, desde que fosse possível suprimir o vício que contaminava o ato anterior.

Sucede que a hipótese de "barreira à invalidação" não é definida objetivamente na legislação, o que é compreensível, pois o legislador é incapaz de antever a situação nas quais esse tratamento deverá ser dispensado.

O artigo 27 da Lei federal 9.868, por exemplo, possibilita a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade "…tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social…". Note-se que os conceitos utilizados pela lei para viabilizar a adoção da "barreira à invalidação" são abertos. Afinal: Qual aspecto da segurança jurídica deve ser considerado para esse fim? Qual o excepcional interesse público em pauta?

Os conceitos adotados na Lindb são igualmente vagos, pois o artigo 20 prevê que "Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão". Quais as consequências práticas relevantes para esse fim?

Pois bem, uma das réguas para mensurar as consequências das decisões administrativas e judiciais passou a ser, precisamente, as econômicas. Ou seja: a preservação ou supressão de atos inválidos (ou dos seus efeitos) poderá tomar como critério os efeitos econômicos virtuosos ou ruinosos que possam advir da decisão judicial a ser tomada. Assim, a economia e o direito também dialogam nesse campo, o que fez emergir o campo do Law and Economics (como dizem os fãs da adoção de rótulos estrangeiros).

O "intérprete qualificado" do direito é o "intérprete médio" da economia
Ideias relacionadas à economia estão presentes em mais de 50 passagens na Constituição da República. A Constituição faz referência à "integração econômica", "aproveitamento econômico", "desenvolvimento econômico", "categoria econômica", "poder econômico", "abuso do poder econômico", "zona econômica", "direito econômico", "qualificação econômica", "economia de despesas", "complexo geoeconômico", "economicidade", "economia pública", "conhecimentos econômicos", "ordem econômica", "natureza econômica" e segue.

O "intérprete médio" é capaz de compreender parte desses conceitos, pois existe uma noção ordinária e comum a respeito de economia. Assim, a primeira ideia que surge ao pensamento do "intérprete médio" a respeito de economia é a moderação de gastos, controle de despesas, uso eficiente dos recursos disponíveis e assim por diante. Se temos contas a pagar, queremos poupar ou saber quanto estamos endividados e como gerenciar essa dívida, temos noções rudimentares de economia. Mas essas noções nos tornam economistas e, portanto, "intérpretes qualificados" nesse campo? Evidentemente não!

Permita-nos dizer o óbvio: nós, operadores do direito, sabemos tanto de economia quanto o gentil taxista que nos conduz a uma reunião ou ao tribunal. Melhor dizendo: acreditamos que o taxista possa saber um pouco mais de economia do que nós, pois no curso do dia ele tem que apurar quanto lhe falta para cumprir a meta, em vista dos custos diários que incorre e da expectativa de prosseguir na atividade nos dias que virão. Cremos que o gentil taxista é melhor conhecedor de economia do que a média dos operadores do direito.

Economista é uma profissão regulamentada, exigente da conclusão de um curso de bacharelado de quatro anos com diretrizes curriculares específicas. Ao lado dos dicionários jurídicos, também existem os dicionários de economia, que podem ser lidos aqui e aqui, por exemplo. Como no direito, existem várias correntes econômicas (pois economia não é uma ciência exata, como esclarece Delfim Neto). As correntes do pensamento econômico foram, por exemplo, reproduzidas em um mapa mental disponibilizado pela USP. E isso sem falar dos economistas comportamentais, que procuram explicar a economia em vista de elementos da psicologia e, assim, valem-se de uma linguagem mais acessível e palpável ao "intérprete médio" e, por isso mesmo, ganham seguidores (fazemos referência, muito exemplificativamente, a Daniel Kahneman, Amos Tversky, Richard Thaler, Cass Sunstein, Dan Arielycass entre outros).

Ou seja: como é inegável a relação entre direito e economia (Law and Economics), cada "intérprete qualificado" deveria atuar no seu campo. Assim, se a preservação ou supressão de atos inválidos (ou dos seus efeitos) pode tomar como critério os efeitos econômicos virtuosos ou ruinosos que possam advir da decisão judicial a ser tomada, é importante que um "intérprete qualificado" em economia seja convocado por um operador do direito para esclarecer esse ponto.

O "intérprete qualificado" do direito decidindo com base em resultados econômicos, mas sem ouvir o "intérprete qualificado" da economia: "Law and Economics" à brasileira
Recentemente o STF julgou constitucional o Regime Diferenciado de Contratação (RDC) previsto na Lei federal.

O que chama atenção nesse julgado? A quantidade de passagens nas quais argumentos econômicos são lançados para justificar a validade da lei veiculadora do RDC. Até aí nenhuma surpresa, pois o direito acolhe essa possibilidade, já que o julgador deve considerar as consequências práticas da decisão, aí se incluindo seus reflexos econômicos.

Nesse julgamento do STF, afirmou-se, por exemplo, que 1) o RDC é um instrumento de simplificação do processo e criação de incentivos econômicos mais racionais; 2) que não se pode descuidar da dimensão econômica do RDC, sem os aportes próprios da Law and Economics (cita-se Richard Posner, por exemplo, cuja produção científica já foi rapidamente analisada nesta ConJur), 3) que as instituições importam no desenvolvimento econômico e que, portanto, o RDC se prestaria a isso (cita-se, por exemplo, duas publicações econômicas: Journal of economic growth e Journal of Economic Perspectives); 4) que na teoria econômica do agente-principal, pode-se dar a denominada seleção adversa (adverse selection), hipótese na qual o Estado, sem informações precisas sobre a qualidade do que está contratando, prioriza a redução do preço da contratação, em detrimento da qualidade do objeto licitado; 5) que o RDC cria um incentivo econômico ao contratado para que ele zele pela qualidade dos projetos; e 6) que a remuneração variável representa mecanismo de incremento da racionalidade econômica do contrato administrativo. São considerações econômicas em um julgado da Suprema Corte.

Entretanto, só um "intérprete qualificado" em economia estaria habilitado para afirmar 1) qual a racionalidade econômica buscada por meio do RDC e, ainda, se ela é atingida por meio desse instrumento; 2) se o RDC efetivamente se presta ao atendimento da ideia segundo a qual "as instituições importam", sob uma ótica econômica, evidentemente; 3) se a denominada "seleção adversa", pelo ângulo econômico, efetivamente ocorre (considerando, uma vez mais, que a economia não é uma ciência exata); e, parando por aqui, 4) se a remuneração variável, no caso da RDC, é um mecanismo de racionalidade econômica ou, pelo contrário, pode desaguar em resultado oposto.

Interessa ao questionamento em pauta o seguinte: quem lançou esses pensamentos e afirmou as supostas conclusões econômicas em abono ao RDC? Foi um "intérprete médio" ou um "intérprete qualificado" em economia? Respondemos: foi um operador do direito, que não raramente envereda por esse campo escorado em elementos de "economia comportamental" — como afirmam Mariana Pargendler e Bruno Meyerhof Salama —, cuja compreensão, por ser mais fácil e palpável, o leva a equivocadamente acreditar que passou a ser detentor de suficiente conhecimento sobre o tema para decidir em termos empíricos no campo da economia (sem o auxílio, portanto, do "intérprete qualificado").

Levando o consequencialismo econômico a sério
Nós, operadores do direito, estamos acostumados com argumentos retóricos. Procuramos argumentos que justifiquem a nossa tomada de posição. Se em algumas ocasiões se deve considerar os efeitos econômicos da decisão, para manter ou suprimir um ato jurídico qualquer, temos que acalmar o rábula econômico que habita em nós — pois somos "intérpretes médios" nesse campo — e dar voz aos "intérpretes qualificados".

Afinal, as consequências econômicas das decisões judiciais não podem ser apenas argumentos retóricos. Como "intérpretes médios", temos que realizar a autocontenção e evitar avançarmos no campo das consequências econômicas da manutenção ou supressão dos atos normativos sem "ouvir os universitários", como se diz no jargão.

O nosso sistema normativo confere todos os meios para que os "intérpretes qualificados" em economia sejam ouvidos pelos operadores do direito. É necessário, pois, lastro probatório fornecido por esses "intérpretes qualificados" para que, ao final, seja possível decidir em vista das possíveis consequências econômicas (e essas consequências são possíveis — e não certas —, pois a economia não é uma ciência exata). Parece que os constitucionalistas-processualistas já se deram conta disto (como esclarecem Fredie Souza Didier e Rafael Alexandria Oliveira).

E o direito fornece os instrumentos necessários para isso, inclusive em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Basta rememorar que o artigo 9º da Lei da ação direta de inconstitucionalidade, por exemplo, admite a realização de audiência pública para "…ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria".

Que tal, então, os "intérpretes qualificados" do direito ouvirem os "intérpretes qualificados" da economia antes de decidirem com base nos efeitos econômicos virtuosos ou ruinosos que supostamente podem advir de uma decisão? E mais: que tal ouvirmos outros "intérpretes qualificados" nos campos em que somos meros "intérpretes médios"?

Autores

  • é advogado sócio da Zockun Advogados, professor da PUC-SP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) e diretor científico do Instituto de Direito Administrativo Paulista (IDAP). Presidente da Comissão especial de Direito Administrativo do Conselho Federal da OAB.

  • é professora de Direito Administrativo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós-doutora em Democracia e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae – Centro de Direito Humanos (IGC/CDH) da Universidade de Coimbra (UC), mestre e doutora em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e procuradora da Fazenda Nacional.

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