Regras da reserva

Suprema Corte dos EUA julga legitimidade para processar por discriminação

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9 de outubro de 2023, 9h43

A cadeirante Deborah Laufer processou mais 200 hotéis de pequeno e médio portes, nos EUA, porque eles não trazem, em seus websites, informações sobre acessibilidade de pessoas com deficiência física. Ela alega que esse é um caso de discriminação, que viola a "Regra da Reserva", criada pela regulamentação federal da Lei dos Americanos com Deficiência (ADA — Americans with Disabilities Act). Um desses processos foi parar na Suprema Corte.

Sean Pavone
Ao fazer a audiência para debater o caso Acheson Hotels v. Laufer, os ministros da corte tiveram de discutir com os advogados das partes — e entre eles — mais do que a questão da discriminação. Debateram se a autora tem legitimidade para processar; se a definição de "testers" (averiguadores) de discriminação é válida para ela; se a ação está prejudicada (moot) por perda de seu objeto e se a deve ser trancada, como pedido pela autora inicial da ação recentemente, mas que o hotel se contrapõe.

A "Regra da Reserva" ("Reservation Rule") requer que os websites de hotéis, como parte dos serviços de reserva online, "identifiquem e descrevam, em detalhes, as instalações em seus quartos e outras dependências que facilitam o acesso de pessoas com deficiência física, de forma que elas possam se movimentar de forma independente".

Os hotéis não são obrigados a oferecer acessibilidade a pessoas deficientes, mas deve ficar claro no website se oferecem ou não essa facilidade, para que as pessoas com deficiência física possam decidir se fazem ou não uma reserva antes de viajar, em vez de descobrir, só na chegada, que o hotel não está preparado para servi-las. O Acheson Hotels e os outros mais de 200 hotéis processados não obedeciam a essa regra.

"Testers" (averiguadores)
Deborah Laufer se descreve nas ações como uma "tester" — nesse caso específico, uma pessoa que averigua se os sistemas de reservas online de hotéis cumprem a "Regra da Reserva", mesmo que ela não tenha intenção de se hospedar em qualquer deles, e então pede uma liminar na justiça, que os obrigue a cumprir a regra. Enfim, ela busca na internet hotéis que não obedecem a regra e os processa.

"Testers" são pessoas que participam de uma investigação para confirmar — e delatar — casos de discriminação — um processo aceito pela justiça dos EUA: em Havens Realty v. Coleman (1982), a Suprema Corte decidiu a favor de uma organização de direitos civis, que enviou duas mulheres, uma negra e uma branca, para tentar alugar um apartamento em um condomínio da Havens Realty.

A mulher negra foi rejeitada porque, segundo a empresa, não havia mais unidades disponíveis. A mulher branca foi aceita e pôde escolher entre unidades disponíveis. Se uma família negra tenta sozinha alugar um apartamento e é rejeitada, pode suspeitar que é vítima de discriminação — mas isso pode ser difícil provar. Mas se, em seguida, uma família branca tenta alugar o mesmo apartamento e consegue, fica fácil provar a discriminação.

Legitimidade processual
A Suprema Corte decidiu que a averiguadora negra tinha legitimidade para mover uma ação por discriminação habitacional, porque, apesar de ela não ter intenção de alugar um apartamento, ela sofreu um "dano particularizado", quando alegadamente lhe mentiram por causa de sua raça. Portanto, ela tinha legitimidade para processar a empresa imobiliária.

O caso de Deborah Laufer é diferente. Uma antiga decisão da Suprema Corte diz que demandantes não têm legitimidade processual para apresentar "reclamações generalizadas" em uma corte federal. Isto é, um demandante deve alegar que sofreu um dano e que esse dano só foi causado a ele, não  a um determinado grupo de pessoas que não participam da demanda — ou seja, o dano deve ser "particularizado".

Durante a audiência, a ministra Ketanji Brown Jackson, que é negra, deu o exemplo de um restaurante racista: "Imagine um homem negro observando o restaurante negando serviços a pessoas negras ou tratando pessoas brancas melhor do que as negras — e decide processar o restaurante, embora não tenha solicitado seus serviços. Ela não tem legitimidade para processar, porque não sofreu qualquer dano, particularmente."

Esse é o caso da mulher que processou o hotel, ela disse. Ela não se hospedou no Acheson Hotels. Nem sequer teve intenção de fazê-lo. Na verdade, a desobediência do hotel à "Regra da Reserva" prejudica todas as pessoas com deficiência que tentam fazer uma reserva online, em vez de alguma em particular.

No caso da mulher negra que tentou alugar um apartamento, no entanto, ela foi uma vítima particularizada de discriminação racial.

No caso California v. Texas (2021), um juiz conservador acatou o argumento de demandantes republicanos de que um dispositivo da Affordable Care Act (lei conhecida como "Obamacare", o seguro de quem não tem dinheiro para pagar um plano particular) seria inconstitucional, porque "é um dispositivo que não faz nada, literalmente". E que o único remédio para isso seria revogar toda a lei (da qual os republicanos não gostam).

A Suprema Corte decidiu que ninguém tem legitimidade para mover uma ação para contestar um dispositivo da lei que não faz nada, porque ninguém sofre qualquer dano por um dispositivo de lei que não faz nada.

"Mootness" e trancamento da ação
Na audiência, os ministros e advogados discutiram também se ação deveria ser trancada, com base na doutrina conhecida como "mootness" — é o caso de uma ação prejudicada, porque, em algum ponto, ela perde o objeto litigioso, como se sabe.

No caso em julgamento, embora houvesse uma disputa válida, em certo ponto a disputa deixou de existir: o hotel atualizou seu website, prestando informações para deficientes; a autora inicial da ação desistiu do litígio — uma das razões foi que três de seus advogados foram punidos porque tentaram extorquir dinheiro dos hotéis, propondo um acordo para extinguir a ação.

Isso seria suficiente para declarar a ação prejudicada (moot). Porém, os advogados do hotel, que foi processado, não querem o trancamento da ação (embora alguns ministros tenham declarado que esse deveria ser o caso). Eles querem que a ação seja julgada, para os ministros decidirem sobre a legitimidade para processar — e desestimular outras pessoas moverem ações semelhantes.

Com informações do Jurist, Vox, USA Today e Washington Post.

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