Opinião

Combate ao trabalho escravo e o dever de proteção das possíveis vítimas

Autores

  • Luciano Aragão Santos

    é procurador do Trabalho coordenador da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília.

  • Thiago Gurjão Alves Ribeiro

    é procurador do Trabalho e mestre em Direito Internacional pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais e do Desenvolvimento (Genebra).

6 de outubro de 2023, 20h32

Muito se falou nos últimos tempos, em função de casos de grande repercussão e dos resultados da operação "resgate 3" — que retirou 532 pessoas do trabalho escravo — sobre o que acontece com as pessoas resgatadas nos desdobramentos das operações de combate ao trabalho escravo. É importante esclarecer alguns aspectos fundamentais daquilo que é a resposta imediata mais importante que o combate ao trabalho escravo pode oferecer: a proteção que deve ser conferida a cada pessoa identificada como submetida a tais situações de exploração.

A subsistência de situações de exploração do trabalho em condições que configuram formas de escravidão moderna não é uma exclusividade do Brasil. Estimativas [1] divulgadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), pela Organização Internacional para Migrações (OIM) e pela organização Walk Free, relatam a existência de 27,6 milhões de vítimas no mundo, distribuídas por todas as regiões e em diversos setores da economia. Um problema global exige um enfrentamento de semelhante perspectiva, com fundamento em normas internacionais e suporte nas orientações, recomendações e melhores práticas divulgadas por organismos internacionais especializados.

O Protocolo Suplementar à Convenção sobre Trabalho Forçado da OIT, aprovado em 2014 juntamente com a Recomendação nº 203, que traz diretrizes para sua aplicação, colocam em destaque a importância das medidas de proteção de trabalhadores identificados como submetidos ao trabalho escravo. A Recomendação nº 203 preconiza a necessidade de se adotar medidas de proteção eficazes para satisfazer as necessidades de todas as vítimas, incluindo aquelas necessárias à respectiva assistência imediata. O Protocolo de Palermo, que trata da proibição do tráfico de pessoas, também afirma a necessidade de se proteger e assistir as vítimas, incluindo medidas para protegê-las — especialmente mulheres e crianças — da revitimização.

Para orientar o desenho de políticas públicas de proteção das vítimas, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) produziu a publicação "Mecanismos Nacionais de Referência: reunir esforços para proteger os direitos das pessoas submetidas ao tráfico de pessoas[2].  Dentre outras importantes diretrizes, a publicação – importante referência também fora da União Europeia [3] — orienta os países a instituírem mecanismos de identificação precoce de vítimas, o que é considerado essencial para evitar novas violações de direitos humanos.

De acordo com a Osce, a chamada identificação preliminar (preliminary identification) de possíveis vítimas é considerada o primeiro estágio para a garantia de direitos, passando-se em seguida ao necessário período de recuperação e reflexão que deve ser assegurado às pessoas identificadas. Alerta a Osce que "a identificação e proteção das vítimas de tráfico não pode depender do sistema de justiça criminal e da sua capacidade de produzir condenações", visto que "o sistema de justiça criminal funciona sob regras e procedimentos muito diferentes[4].

Portanto, as melhores práticas internacionais nos ensinam que para assegurar o direito à proteção de pessoas identificadas como possíveis vítimas de trabalho escravo, faz-se necessário garantir a respectiva identificação preliminar, o que deve ser feito pelas autoridades às quais seja atribuída tal competência. A partir dessa identificação, devem ser adotadas as subsequentes medidas de proteção e garantia de direitos – o que não pode depender de qualquer medida relacionada à persecução do crime de tráfico de pessoas ou de exploração de trabalho em condições análogas à escravidão.

No Brasil, a política pública de combate ao trabalho em condições análogas à escravidão atribuiu aos auditores-fiscais do trabalho — autoridades administrativas especializadas no reconhecimento de violações a disposições legais de regulação do trabalho — a missão precípua de identificar preliminarmente os trabalhadores submetidos a condições análogas às de escravo, operacionalizando o chamado resgate e realizando a emissão de guias para o recebimento de seguro-desemprego [5]. O benefício assegurado por lei garante a subsistência financeira do trabalhador no período de recuperação e reflexão de três meses.

A prática de tais atos administrativos pelos auditores-fiscais constitui etapa fundamental para a garantia dos direitos dos trabalhadores, permitindo o seu afastamento da situação identificada como irregular e o recebimento do benefício que garante um período de recuperação. Juntamente com a auditoria-fiscal, as instituições que atuam nas operações em parceria interinstitucional vão buscar, no âmbito das respectivas competências, a garantia dos direitos sonegados pelos exploradores, inclusive o adimplemento das verbas trabalhistas sonegadas, além das indenizações devidas em cada caso. O Ministério Público do Trabalho, nesse contexto de garantia de direitos, ainda adota as medidas extrajudiciais e judiciais que se façam necessárias para a regularização da conduta trabalhista e para a reparação dos danos de natureza coletiva.  

A importante atuação relacionada à investigação criminal e propositura de ação penal não guarda relação com as medidas adotadas para proteção imediata da possível vítima e respectiva garantia de direitos. Deve-se preservar, qualquer que seja o deslinde das medidas adotadas na seara criminal, a eficácia dos atos administrativos de identificação, resgate e proteção dos trabalhadores.

Assim, em tempos em que os membros da comunidade internacional aceleram e intensificam esforços para que se chegue à erradicação do trabalho escravo até 2030, compromisso que integra os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável [6], é importante lembrar e reafirmar alguns pilares da política pública brasileira de combate ao trabalho escravo, que se alinham com as melhores práticas internacionais.

Com efeito, a partir da identificação de possíveis vítimas de trabalho escravo pelas autoridades competentes — no caso, os auditores-fiscais do trabalho —, devem ser adotadas as necessárias e imediatas medidas de proteção para a garantia de direitos das pessoas identificadas como vítimas, assegurando-se a necessária eficácia e efetividade aos atos administrativos praticados por tais autoridades. A partir do ato administrativo que materializa o resgate, devem ser adotadas as correlatas medidas de proteção, com a garantia de direitos e cessação da situação de exploração.

É possível avançar ainda mais na proteção conferida às pessoas que foram submetidas ao trabalho em condições análogas à escravidão, inclusive com a ratificação do Protocolo Suplementar à Convenção sobre Trabalho Forçado da OIT. Mas além de avanços, é preciso que as instituições que se engajam no combate ao trabalho escravo, inclusive aquelas que integram o sistema de justiça, cerrem fileiras e garantam a efetividade das medidas de proteção asseguradas pela política pública brasileira.

Somente com a conjugação de esforços de todos poderemos chegar à almejada, necessária e prometida erradicação do trabalho escravo. É desse engajamento que dependem milhões de vítimas no mundo e no Brasil, que precisam ser urgentemente identificadas e protegidas. Para além dos compromissos solenes, todas essas pessoas precisam conhecer uma efetiva proteção, garantido não só o seu pleno resgate da situação de exploração como o acesso a direitos, em especial o de ter uma vida com autonomia e dignidade.

 


[1] "Global Estimates of Modern Slavery: Forced Labour and Forced Marriage", OIT, OIM e Walk Free, 2022.

[2] "National Referral Mechanisms – Joining Efforts to Protect the Rights of Trafficked Persons: A Practical Handbook – Second Edition", OSCE, 2022. A publicação foi produzida com o apoio de um Grupo Consultivo, do qual o autor Thiago Gurjão Alves Ribeiro participou como membro.

[3] Por exemplo, é utilizada pelos Escritório para o Monitoramento e Combate ao Tráfico de Pessoas dos Estados Unidos como literatura de referência na avaliação de projetos na Etiópia, Namíbia e Quirguistão. “Evaluation Report: Evaluation of National Referral Mechanisms”, disponível em https://www.state.gov/wp-content/uploads/2023/09/DevTech-NRM-Evaluation-Report_FINAL_2022.09.19_PDF.pdf.

[4] "National Referral Mechanisms – Joining Efforts to Protect the Rights of Trafficked Persons: A Practical Handbook – Second Edition", OSCE, 2022.

[5] Lei nº 7.998/1990, art. 2º-C.

[6] Meta 8.7 dos ODS.

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