Opinião

Instituto da legítima a partir da autonomia privada e da solidariedade familiar

Autores

  • Amanda Hansen Klauck

    é advogada pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério Público pós-graduanda em Advocacia Contratual e Responsabilidade Civil (FMP) membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) tesoureira do Núcleo do IBDFAM em Novo Hamburgo/RS integrante da Comissão do Jovem Ibedermano. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Família Sucessões Criança e Adolescente e Constituição Federal junto ao PPG da Fundação Escola Superior do Ministério Público e pesquisadora no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direito Civil Constitucional Família Sucessões e Mediação (NEDFAM) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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  • Rafaela Rojas Barros

    é advogada pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Família Sucessões Criança e Adolescente e Constituição Federal junto ao PPG da Fundação Escola Superior do Ministério Público e coordenadora da Comissão de Direito de Família e Empresa do IBDFAM/RS.

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6 de outubro de 2023, 11h19

Muito se discute sobre a necessidade ou não de revisão da legítima no direito sucessório brasileiro. Em virtude disso, a presente pesquisa destina-se a responder se o instituto, tal como positivado hoje, deve permanecer ou não no ordenamento e se sim, de que maneira. Para tanto, num primeiro momento, revisitar-se-á o instituto da legítima, trabalhando-se com algumas noções propedêuticas do direito sucessório para, então, explanar o seu conceito e o seu funcionamento a partir dos princípios da autonomia privada e da solidariedade familiar.

Ato contínuo, discorrer-se-á a respeito das diferentes correntes doutrinárias existentes sobre a matéria — e que seguem sendo tema de amplos debates  para, após adentrar no âmbito das transformações pelas quais a família passou e vem passando nos últimos tempos, apurar se a legítima está em consonância com a família hodierna. Logo, busca-se concluir, a partir das premissas escolhidas, se deve o instituto permanecer no ordenamento jurídico brasileiro tal como posto hoje.

Portanto, este artigo apresentará um viés conclusivo e reflexivo acerca da atual disposição do instituto da legítima, a fim de demonstrar se este, atualmente, interfere de maneira adequada ou inadequada na vida privada dos sujeitos membros das famílias brasileiras e/ou respeita, de forma satisfatória, o princípio da autonomia privada e da solidariedade familiar. A pesquisa classifica-se como dedutiva, descritiva e bibliográfica.

A legítima no direito sucessório brasileiro
O Código Civil de 1916 era calcado em um modelo sucessório destinado a atender aos interesses estatais (NEVARES, 2023, p. 341). Neste mesmo sentido, em face da necessidade inequívoca de adaptação aos fatos contemporâneos e fenômenos sociais, a Constituição Federal colocou em expansão o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, abrindo espaço para a valorização das questões pessoais em detrimento das patrimoniais, o que foi corroborado pelo Código Civil de 2002, em que pese tal evolução não tenha sido abordada com tamanha proporção no âmbito das sucessões.

No Direito Brasileiro, a legítima (artigo 1.829, CC) trata de uma parcela reservada aos denominados herdeiros necessários, sendo eles os descendentes, ascendentes, o cônjuge e o companheiro, de modo que para esses sujeitos é destinado o montante de 50% (cinquenta por cento) da totalidade dos bens da herança, uma vez que o legislador os presume como sendo os entes mais próximos e com significativa afinidade com o autor da herança. Assim, importa verificar se essa reserva, existente desde o Código Civil de 1916, acompanha as mudanças sociais da família no país, mormente em decorrência do fato de a lei, não raras vezes, se distanciar da vontade real do detentor do patrimônio.

O Código Civil menciona que a sucessão dar-se-á por lei ou disposição de última vontade, nos termos do artigo 1.786. Com efeito, denota-se que a ampla liberdade no Direito Sucessório somente poderá ser exercida na hipótese de realização de testamento, quando o testador não possuir herdeiros próximos a si e, caso o testamento caducar ou for julgado nulo. Caso existam sucessores necessários (artigo 1.845, CC), ao tempo da morte, o autor da herança poderá dispor apenas de cinquenta por cento do acervo hereditário.

Existe, ainda, uma terceira opção, a qual se refere à possibilidade de o testador declarar sua última vontade no testamento, regrando sobre a sua parte disponível, de modo que a outra parcela do patrimônio segue a obrigatoriedade da legítima, sendo reservada a importância de cinquenta por cento aos herdeiros necessários.

Na ausência de testamento válido, far-se-á o chamamento das pessoas legalmente aptas a sucederem por intermédio da ordem de vocação hereditária.

Evolução do conceito de família e correntes doutrinárias acerca do instituto da legítima
Para adequar a legítima a uma leitura contemporânea, condizente com os valores constitucionais, deve-se estar a par da mudança nos conceitos de família, que hoje se constrói a partir da própria autonomia da vontade dos indivíduos. De toda forma, não se pode olvidar que a família, tida como a base primordial da sociedade, goza de proteção estatal, tendo, além dos normativos legais expressos, a proteção por meio do Princípio da Solidariedade Familiar, o qual consiste em solidariedade recíproca entre cônjuges e companheiros, ascendentes e descentes quanto à assistência moral e material.

Assim, não se ignora que o direito brasileiro deva conciliar a liberdade de dispor do autor da herança  autonomia privada  com a proteção à toda e qualquer forma de constituição familiar. Mas a questão é: como?

Doutrinadores como Paulo Lôbo defendem a permanência do instituto no ordenamento, em seu percentual já consolidado e de maneira fixa, consoante nossa realidade jurídica desde a Lei Feliciano de 1907 (LÔBO, 2013). Os motivos para tanto são os mais diversos, máxime considerando-se que a adequação social e jurídica da legítima possuem raízes no fundamento da dignidade da pessoa humana, da preservação da família, no princípio da solidariedade familiar, na garantia do patrimônio mínimo e na função social da propriedade. (TARTUCE, 2022, p. 261)

O primeiro desses motivos diz com a busca de garantir o direito fundamental à herança. O segundo, com a presunção legal da vontade do autor da herança em ter seus bens transmitidos aos parentes mais próximos, por supostamente guardarem íntima relação consigo. Por certo que tal fundamento não está incólume às críticas, como os que defendem que cairia ele por terra com a existência de um filho anterior ao casamento. Por consequência, a viúva meeira seria preterida em prol de um filho não desejado pelo autor da herança (MADALENO, 2020, p. 361). Por outro lado, no entanto, não se pode deixar esse filho desprotegido por um genitor irresponsável, inobstante a existência ou não de outra família socioafetiva ou registral, diga-se de passagem.

Por último, tem-se como motivo de defesa a sua permanência o fundamento social de proteção da família, em consonância com o preceito constitucional de que a família, como base da sociedade, deve ser protegida pelo Estado.

Inobstante existir aqueles que pensem que proteção é justamente "dar aos filhos condições para que possam, quando adultos, trabalhar como pessoas honradas e úteis à sociedade" (RAMOS, 2014, p. 110), os defensores do instituto fundamentam que os herdeiros restariam protegidos com o patrimônio familiar, em especial os vulneráveis.

Outros, por sua vez, apesar de defenderem sua permanência, não defendem sua imutabilidade. São a favor da flexibilização do instituto, ou seja, ao mesmo tempo em que se mantém a legítima e uma parcela indisponível da herança aos herdeiros necessários, é possibilitada uma parcela maior disponível ao testador (TARTUCE, 2022, p. 261).

Tal flexibilização poderia ocorrer através da diminuição da parcela indisponível de 50% para 25%, por exemplo, ou então pela flexibilização na forma em que se poderia realizar atribuições da legítima, sendo possível dar uma destinação maior da herança àqueles herdeiros mais vulneráveis e abrindo uma maior possibilidade à efetivação do planejamento sucessório, já que a legítima deve assegurar o mínimo existencial da pessoa humana, não devendo incentivar o ócio exagerado dos herdeiros.

Princípios da autonomia privada e da solidariedade familiar
Inicialmente, importa registrar que a autonomia privada não deve ser confundida com a autonomia da vontade. Em relação ao âmbito familiar, denota-se que a autonomia privada está ligada a ideia de liberdade acerca das questões particulares, de modo a satisfazer a felicidade e real intenção do sujeito. Tal premissa resta verificada na autorização legal de livre disposição testamentária, admitindo que o autor da herança direcione os seus bens, na parte disponível de 50% do seu patrimônio, como lhe convém.

O sistema sucessório vincula o autor da herança aos herdeiros necessários, isto é, àqueles que preenchem o rol da legislação civil. Todavia, mister fomentar que as relações familiares não se esgotam nos laços sanguíneos, mormente porque o verdadeiro sentido de família pode ser originado em sentimentos de afeto. É cediço que a estrutura familiar sofreu mudanças expressivas ao longo do tempo.

Embora se defenda a amplitude da autonomia privada, a fim de que o falecido possa dispor por mera liberalidade do patrimônio de sua titularidade em uma proporção justa  com a consequente diminuição do quantum da legítima , escolhendo, portanto, a quem será destinado o seu patrimônio, tal restrição encontra raízes profundas na proteção familiar e em aspectos sociais e econômicos.

Logo, não se pode minimizar que o atual cenário brasileiro versa sobre latentes crises financeiras, além da diminuição da expectativa de vida da população, considerando que a destinação da legítima, no entendimento de Tartuce (TARTUCE, 2022, p. 219-264), configura uma reserva em tempos de crise econômica, de modo que a possibilidade de variação do instituto somente trará, por ora, mais instabilidade em um momento que já é de turbulência.

Pode-se dizer, pois, que a autonomia privada confere, atualmente, 50% (cinquenta por cento) de liberdade ao autor da herança para dispor sobre seu patrimônio como lhe convém, por intermédio de testamento. Não se descarta, porém, a possibilidade futura de aumento deste patamar, mormente em razão de que o direito sucessório clama por modificações pontuais  tais como as aqui mencionadas  desde que haja um amparo satisfatório de proteção ao grupo dos vulneráveis, e de estabilidade social para que não surtam efeitos nefastos.

A legítima é sustentada na solidariedade familiar, sendo essa quem fundamenta a sua imperatividade. Para Rolf Madaleno, a existência da legítima no ordenamento jurídico brasileiro origina-se da crença de ser injusto que os filhos ou demais descendentes, os ascendentes, ou outras pessoas afetivamente próximas do sucedido pudessem ser afastadas da sucessão, "baseando-se sua concessão no argumento do officium pietatis, estando o testador moralmente obrigado a deixar para seus herdeiros próximos uma parte dos seus bens". (MADALENO, 2020, p. 363). É dizer, é a solidariedade familiar um dos motivos pelos quais a legítima é imperativa.

Muitos defendem a permanência do instituto. Outros, por sua vez, defendem sua extirpação do ordenamento jurídico brasileiro, já que consideram sua existência uma intervenção indevida do Estado nas relações privadas, e em especial no direito do autor da herança de testar o patrimônio da maneira que melhor lhe aprouver, sem ter que justificar nada para ninguém. Em outras palavras, que o instituto estaria ferindo o princípio da autonomia privada dos indivíduos.

Argumentam que justamente em nome da autonomia privada, quem tem condições de melhor avaliar quais são as pessoas que devem usufruir do legado deixado é o autor da herança, sem qualquer limitação/intervenção estatal.

Criticam que ao estabelecer o direito à legítima, o legislador presume que o cônjuge supérstite poderia viver tranquilamente com a sua meação ou, no máximo, com 75% dos bens do casal, o que não prospera, ainda mais em se considerando as famílias de baixa renda, cujo patrimônio basicamente é a residência onde residem.

Outra crítica é no tocante a ordem dos ascendentes, sendo natural que o cônjuge que não possua descendentes vivos deseje que a integralidade do patrimônio permaneça com o cônjuge sobrevivente. Do modo como hoje está posta a ordem de vocação hereditária e sua relação com a parcela indisponível, impede-se que se faça cumprir a vontade do autor da herança.

Outrossim, "ao invés de legitimar o princípio da solidariedade familiar, cria uma relação de clientelismo entre filhos e pais, desvirtuando, dessa forma, o conceito original que fundamenta a legitima, qual seja, o vínculo familiar" (RIBEIRO, 2021).

Considerações finais
Do estudo da legítima tal como posta hoje no ordenamento jurídico pátrio, partindo das premissas da autonomia privada e da solidariedade familiar, bem como da evolução da família e seu contexto atual, adentrou-se na pesquisa das correntes doutrinárias existentes sobre a matéria.

Conforme exposto, o Código Civil de 2002, corroborado com a Constituição Federal, garante aos herdeiros necessários a importância de 50% (cinquenta por cento) do patrimônio do autor da herança, se tratando do instituto da legitima, o qual está esculpido no Artigo 1846 do aludido diploma legal. Neste sentido, a livre disposição dos bens encontra limites na parte disponível, referente ao percentual restante, podendo ser exercida por intermédio de testamento, quando o testador não possuir herdeiros próximos a si ou, caso o testamento caducar, for julgado nulo.

Denota-se que os fenômenos que versam sobre o direito das sucessões, com a respectiva releitura de seus institutos, assumem um debate amplo para abranger uma série de contribuições significativas oriundas das mudanças constantes no âmbito das famílias, de modo a repensar sobre o espaço da autonomia privada no campo sucessório.

Assim, para que o instituto possa assumir uma função social mais humanizada dentre seus aspectos patrimoniais e concretizar a solidariedade familiar de forma mais efetiva, crê-se, nesse primeiro momento, que podem existir outras formas eficazes de garantir a proteção do princípio sem interferir na autonomia privada de testar, através do direito securitário e alimentar, por exemplo.

De todo modo, o estudo é incipiente. Há de se ter a segurança de que a solução mais acertada guardará adequação com a família atual. Isto posto, defende-se a imperiosidade do encontro de outras soluções que sejam capazes de, no mínimo, fazer com que o autor da herança possa repensar sua responsabilidade parental para com seus filhos.

 

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Referências bibliográficas
CAHALI, Francisco José. Curso avançado de direito civil. Vol. 6, 2000.

GOMES, Orlando. Sucessões. Atualização de Humberto Theodoro Júnior. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

LÔBO, Paulo. Direito constitucional à herança, saisine e liberdade de testar. In: Anais do IX Congresso Brasileiro de Direito de Família Famílias: Pluralidade e. 2013.

MADALENO, Rolf. Da ordem de vocação hereditária. Parte II. Cap IX. 2020.

RAMOS, Carlos Pérez. La autonomia de la voluntad em las sucesiones y la libertad de testar. In: RUIZ, Aguilar; GUAJARDO-FAJARDO, Arjona; MANSILLA, Cerdeira Bravo de (coords.). Autonomia privada, família y herancia em el siglo XXI: cuestiones actuales y soluciones de futuro. Madrid: Thompson Reuters/ Arazandi; Revista Arazandi de Derecho Patrimonial, nº 33, 2014.

TARTUCE, Flávio. A necessidade de revisão da legítima no Direito Sucessório brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 31. ano 9. p. 219-264. São Paulo: Ed. RT, abr./jun. 2022.

Autores

  • é advogada, pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério Público, pós-graduanda em Advocacia Contratual e Responsabilidade Civil (FMP), membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), tesoureira do Núcleo do IBDFAM em Novo Hamburgo/RS, integrante da Comissão do Jovem Ibedermano. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Família, Sucessões, Criança e Adolescente e Constituição Federal junto ao PPG da Fundação Escola Superior do Ministério Público e pesquisadora no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direito Civil, Constitucional, Família, Sucessões e Mediação (NEDFAM) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

  • é advogada, pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Família, Sucessões, Criança e Adolescente e Constituição Federal junto ao PPG da Fundação Escola Superior do Ministério Público e coordenadora da Comissão de Direito de Família e Empresa do IBDFAM/RS.

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