Opinião

Pode ministro afastar compulsoriedade do comparecimento de convocado por CPI?

Autor

  • Letícia de Mello

    é mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) especialista em Direito e em Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP) especializanda em Direito Penal Económico pelo Instituto de Direito Penal Económico Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (IDPEE) em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) professora advogada e associada à The European Law Students Association (Elsa) e ao Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE) ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e à Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

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3 de outubro de 2023, 19h17

Trata-se de uma pergunta simples, mas que envolve uma complexidade técnico-jurídica e institucional de monta indescritível. Por isso, as próximas linhas serão dedicadas precisamente ao assunto. Mais atentamente, buscar-se-á analisar se é juridicamente possível, e do ponto de vista institucional recomendado, que um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) dispense o comparecimento de um convocado para depor numa sessão ocorrida no âmbito de uma comissão parlamentar de inquérito, doravante CPI.

Dirão alguns: mas e o direito ao silêncio? Bom, uma leitura atenta das decisões da Corte demonstrará que de há muito está consolidada a jurisprudência no sentido de concessão da ordem de Habeas Corpus garantindo o direito ao silêncio aos depoentes, com esteio no entendimento de que ninguém é obrigado a produzir provas contra si.

Entretanto, as decisões não tinham como uma praxe a dispensa do cidadão convocado de comparecimento em sessão.

Verifica-se, pois, que tal paradigma fora mutacionado. Explico. Abriu caminho ao novel entendimento não a decisão proferida pelo ministro Kassio Nunes Marques, ao dispensar o comparecimento de Marília Alencar, ex-subsecretária de Inteligência da Secretaria de Segurança do Distrito Federal, ao depoimento perante a comissão [1]. Rememore-se, por exemplo, a decisão do então ministro Celso de Mello, no ano de 2019, que concedeu a Taiguara Rodrigues dos Santos a dispensa de comparecimento em sessão da CPI do BNDES [2].

Registra-se desde já que o argumento anterior não legitima a medida adotada pelos ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça. Só demonstra que o problema não é dotado de ineditismo  como na imprensa se faz parecer. Assim, deve-se sobrevalorizar a honestidade acadêmica, com a finalidade de o debate não se dê em um nível baixo.

Andemos.

Recentemente, sobreveio ao conhecimento de todos a decisão do ministro André Mendonça, que concedeu a ordem de Habeas Corpus impetrado pela defesa de Osmar Crivelatti, que fora um dos alvos da operação deflagrada pela Polícia Federal, no curso deste ano, e cujo intento é o desmonte de um suposto esquema de venda, nos Estados Unidos, de presentes recebido pelo então presidente Jair Bolsonaro [3]. O depoimento de Crivelatti se daria na condição de testemunha e ocorreria em 19 de setembro de 2023.

Sem adentrar no mérito político-ideológico, eis que se busca uma análise desde um ponto de vista técnico-jurídico, cabe o questionamento acerca da legitimidade do STF para, em decisão monocrática (problema acerca do qual devemos falar em outra oportunidade!), liberar os convocados de comparecerem às sessões de oitiva ocorridas em âmbito das CPIs.

Desvelado o problema que ensejou a mobilização e motivou a construção argumentativa da presente análise, deve-se delinear as particularidades que circundam o objeto e em que medida e sobre qual perspectiva serão abordados.

O primeiro ponto que merece destaque é o de saber se há esteio normativo a amparar a decisão dos ministros que, como se viu, em inúmeras ocasiões, não apenas nas duas citadas no introito, dispensam o comparecimento de depoentes (testemunhas/investigados) às CPIs. Após, deve-se questionar, não despretensiosamente, se o direito ao silêncio, insculpido na Constituição brasileira, sobrepõe-se ao dever de comparecimento dos convocados em âmbito de CPI, cuja previsão também é constitucional.

Antes de adentrar nas particularidades, deve-se responder sucintamente ao questionamento seguinte: afinal, o que é uma CPI?

A CPI é um instrumento jurídico de índole investigativa que, através de um rito próprio, este regulamentado no Regimento Interno do Senado Federal (Título VI, Capítulo XIV) e pelas Leis nº 1.579/1952, 10.001/2000 e 10.679/2003, tem por escopo último fiscalizar a administração pública. Conforme aduz a própria Constituição brasileira, a natureza jurídica das CPIs é de um procedimento investigativo e que a comissão tem poderes análogos ao do Poder Judiciário.

Nesse sentido, deve-se recordar, por exemplo, que o RISF (Regimento Interno do Senado Federal) prevê, em seu artigo 153, que aplicar-se-ão, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal aos atos de natureza processual praticados no âmbito da CPI.

Logo, infere-se, disso, duas importantes premissas: a uma, que parece, de fato, que o comparecimento à sessão instaurada no âmbito da CPI, tal qual ocorre em âmbito investigativo ordinário e igualmente no curso processual, em relação à inquirição de testemunhas, é impositiva; a dois, que o que permanece indiscutível é a possibilidade, já assegurada de há muito tempo pelos tribunais, de o investigado permanecer em silencio, ser acompanhado por causídico e, nos casos em que for investigado, não prestar compromisso como testemunha.

Realizando uma incursão em algumas das últimas decisões do Supremo, percebe-se uma certa ausência de unicidade lógico-argumentativa. No âmbito decisório de provimentos anteriores, como o da lavra do ministro Celso de Mello, no ano de 2019, a dispensa de compulsoriedade de comparecimento fora justificada da seguinte forma:

"Sendo esse o contexto, passo a examinar o pleito cautelar deduzido pelos ora impetrantes. E, ao fazê-lo, observo, desde logo, que, embora o ofício de convocação indique que o ora paciente participará da reunião da CPI na condição de testemunha, a mera circunstância que venho de referir revela que o paciente em questão ostenta, inequivocamente, a posição de investigado.
Essas são as razões, que me levam a acolher o pleito cautelar formulado, nos presentes autos, pelos impetrantes, de modo a assegurar ao ora paciente (Taiguara Rodrigues dos Santos) o direito de não comparecer, para fins de interrogatório, perante a CPI do BNDES, sem que possa ele sofrer, em razão do legítimo exercício dessa prerrogativa fundamental, qualquer restrição em seus direitos ou privação de sua liberdade." [4]

Naquela ocasião, inclusive, não havia, pelo que se refere da decisão, em seu inteiro teor, nenhum ato formal de investigação em desfavor do convocado.

Contudo, algo chama a atenção: há alguns meses, mais precisamente em agosto do ano corrente, o ministro André Mendonça, num Habeas Corpus impetrado pela defesa de Miguel Gutierrez, em caso análogo ao dos convocados e dispensados pelos Ministros André Mendonça e Kassio Nunes Marques, proferiu uma decisão apontando que:

"Na condição de testemunha, o comparecimento do paciente não constitui mera faculdade, sendo impositivo, sob pena de interferência indevida do Judiciário nas atividades investigativas da Comissão Parlamentar de Inquérito, por conseguinte, no próprio Poder Legislativo. Importante ressaltar, neste caso, que compete á CPI, tendo em vista os poderes instrutórios próprios de autoridades judiciais que detém, “solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão”, nos termos do inc. V, do §2º, do artigo 58, da CRFB." [5]

 Em que pese a decisão refira que a condição de investigado afastaria a compulsoriedade de comparecimento, percebe-se claramente que há um limite muito tênue nas razões de fáticas de ambos os casos. No âmbito do HC 175.121/DF, não nenhuma menção concreta à existência de um procedimento investigatório ou de alguma ação penal em curso. Assim como o mesmo não fora apontado em concreto nas decisões mais recentes.

A questão que se analisou acima desemboca, por fim, no questionamento que é central par fechar a simplória análise: Pode um ministro do Supremo Tribunal afastar a compulsoriedade do comparecimento de um indivíduo convocado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito? E, mais do que isso: Tal interferência atenta contra o princípio da separação de poderes que vem insculpido no artigo 2º, da Constituição brasileira?

Conforme amplamente divulgado na mídia, a resposta é afirmativa entre alguns dos membros Poder Legislativo.

Conforme apontado por Maia: "Não há dúvida que uma decisão monocrática, superando a convocação dessa comissão, desequilibra os Poderes" [6]. No entendimento dele: "É preciso que haja uma definição efetiva da possibilidade de a CPI existir ou não, porque obviamente o instrumento mais importante que se dispõe é justamente a convocação daqueles que o conjunto da CPI aprova em requerimentos, que nós julgamos pertinentes" [7].

Para a Relatora da CPMI, a Senadora Eliziane Gama, as decisões como essas são preocupantes e "ferem de morte o parágrafo 3º do artigo 58 da Constituição Federal" [8], e acrescenta:

"Porque se você tem uma decisão dessa de forma reiterada, você acaba trazendo prejuízos graves para o trabalho de uma CPI. Para a CPI existir, tem que ter o polimento de datas, quebra de sigilos, mas você também tem que ter o depoimento. Uma CPI sem depoimento tem um prejuízo muito grave. Então eu acho que nós precisamos tomar outras medidas." [9]

Um raciocínio lógico pode até não dar conta de resolver toda e qualquer celeuma, mas, não é este o caso. A Constituição materializa um desenho institucional e delimita as funções típicas e atípicas de cada um dos Poderes.

Ora, o artigo 58, §3º, da Constituição é cristalino. A questão é, pelo que se deduz das decisões analisadas, bem como dos debates gerais, a incompatibilidade dos poderes investigativos das CPI’s e o direito ao silêncio e vedação à autoincriminação.

Nesse aspecto, parece não haver dúvidas de que andaram bem os ministros que historicamente concediam e concedem a ordem de Habeas Corpus para garantir aos conduzidos o direito ao silêncio. Contudo, a discussão de fundo não trata disto que, reitere-se, é sagrado — sobretudo porque é um postulado que se desdobra num direito fundamental insculpido no artigo 5º, da Constituição.

A gravidade se revela no fato de que se reiterou uma fundamentação decisória que não encontra nenhum respaldo legal do qual se possa inferir que se o convocado a prestar depoimento na CPI for investigado por outro órgão, o seu comparecimento para depor é convolado de compulsório para facultativo. A par disso, que é muito, não é o que a Constituição dispõe, desde uma análise sistemática, sobre a questão.

A partir disso, entende-se que há interferência direta nas atribuições do Poder Legislativo o fato de o STF afastar o comparecimento dos convocados a deporem em CPIs por meio de decisões, sobretudo monocráticas.

Ao afastar a compulsoriedade do comparecimento dos convocados, o STF esvazia a própria autoridade do Poder Legislativo, o qual está delineada, para tais fins, no artigo 58, §3º, da Constituição.

Tem-se, por fim, que é harmoniosa a convivência dos dispositivos constitucionais que atribuem ao Legislativo a função investigativa com o que assegura o direito ao silêncio e, por conseguinte, a vedação de práticas que induzam à autoincriminação.

As três decisões citadas no presente texto, que afastam a compulsoriedade de comparecimento dos depoentes, afronta a coerência do próprio ordenamento e demonstra que se trata de escolhas arbitrarias e não de decisões jurídicas conforme a Constituição: escolhe-se quem vai comparecer às sessões da CPI. E, conforme insiste Lênio Streck: "Decidir não é o mesmo que escolher. Decidir é um ato de responsabilidade política" [10].

Acrescenta-se como complemento: deve-se observar a Constituição e não parece que as últimas decisões reflitam o conteúdo da Carta Maior em sua inteireza.

 

 


[1] Vide STF, HC nº 229.632 MC/DF.

[2] Vide STF, HC nº 175121 MC/DF.

[3] Vide STF, em HC232643/DF.

[4] Vide STF, HC 175.121 MC/DF.

[5] Vide STF, HC 230.646/RJ. A mesma fundamentação fora usada no HC n° 230.624/DF.

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