PEC do "equilíbrio entre os poderes" e desejo de Poder Constituinte do Congresso
2 de outubro de 2023, 13h19
A PEC do "equilíbrio entre os poderes" (nº 55/2023) procura conferir ao Congresso competência para sustar decisões do Supremo Tribunal Federal que tenham transitado em julgado e que extrapolem os limites constitucionais. Para isso, a proposta de emenda constitucional prevê a necessidade de apresentação de proposta de Decreto Legislativo por 1/3 dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado, bem como deliberação por 3/5 de cada Casa Legislativa. O poder atribuído ao Congresso não poupa nem mesmo a sacrossanta imutabilidade da coisa julgada. De fato, não é o primeiro nem será o último projeto de emenda do gênero.
Talvez nomeá-la como PEC da "reação" fosse mais condizente com o seu conteúdo. O espírito do projeto é sobretudo de revanche, de quem teve o ego agredido e vilipendiado. Com raiva, é possível fazer absurdos, até rasgar a Constituição em praça pública.
A artilharia legislativa é imensa e pesada: tudo mirando a cabeça do Executivo e sem possibilidades de reação popular autônoma (iniciativas quanto a referendos, plebiscitos e revogações de mandato). Seria isso democrático? Difícil dizer. Mas eis que a Constituição trouxe uma regra incômoda para o modelo hegemônico parlamentar instituído: cumpre ao Supremo Tribunal Federal a guarda maior da Constituição (artigo 102, caput, da CF/88).
Não é de hoje que Legislativo e Judiciário se digladiam pela autoridade de dizer o sentido último da Constituição. Uma visão mecanicista do princípio do equilíbrio entre os poderes é incapaz de compreender os problemas políticos reais que envolvem a ação do Estado. Como sugere Edouard Lambert, em seu clássico livro O governo dos juízes e a luta contra a legislação social nos Estados Unidos (1921), mais cedo ou mais tarde a pretensão de um equilíbrio entre os poderes encontra o seu duro destino na afirmação de uma supremacia, sem a qual não haveria unidade de direção governamental.
Nos Estados Unidos, por exemplo, os conflitos políticos fizeram com que a primazia do poder de guarda da Constituição fosse reservada à Suprema Corte (Marbury vs Madison — 1803). Na Inglaterra e França, por sua vez, tal tarefa recaiu, ao menos de início, sobre o Parlamento, órgão político por excelência. Assim, o dogma da separação de poderes de Montesquieu foi-se acomodando aos fatores reais de poder de cada país.
Na PEC do "equilíbrio entre os poderes", o que estamos vendo, portanto, é uma tentativa de alteração completa da estrutura constitucional estabelecida em 1988 e consolidada desde então. Impõe-se, no fundo, uma supremacia total do Legislativo sobre os demais poderes a República. Não se trata apenas de definir um novo guardião da Constituição, mas também de completar a lógica do presidencialismo de coalizão, centralizando todas as decisões políticas essenciais do País na esfera institucional do Legislativo, garantindo o insulamento do processo político em um órgão de representantes eleitos. Sob a aparência da democratização está a oligarquização da esfera política.
Com efeito, a PEC do "equilíbrio entre os poderes" não tende simplesmente a abolir o modelo de separação de poderes definido pelo constituinte de 1987-1988, o que por si só já ofende a cláusula de intangibilidade (pétrea) da Constituição, mas efetivamente o destrói. Aqui reside toda dimensão brutal da inconstitucionalidade desse projeto e o seu absurdo completo.
A PEC do "equilíbrio entre os poderes" somente poderia ser considerada "legítima" em uma situação: caso o Congresso exercesse Poder Constituinte originário. Nessa hipótese, no entanto, não haveria mais Constituição.
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