Opinião

PEC do "equilíbrio entre os poderes" e desejo de Poder Constituinte do Congresso

Autores

  • José Eduardo Martins Cardozo

    é ex-ministro da Justiça professor da PUC-SP e consultor no caso inglês de Mariana (pelas vítimas).

  • Alessandro Soares

    é advogado professor de Direito Constitucional e Administrativo na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) doutor em Direito Administrativo Financeiro e Processual pela Universidade de Salamanca e doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP).

2 de outubro de 2023, 13h19

A PEC do "equilíbrio entre os poderes" (nº 55/2023) procura conferir ao Congresso competência para sustar decisões do Supremo Tribunal Federal que tenham transitado em julgado e que extrapolem os limites constitucionais. Para isso, a proposta de emenda constitucional prevê a necessidade de apresentação de proposta de Decreto Legislativo por 1/3 dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado, bem como deliberação por 3/5 de cada Casa Legislativa. O poder atribuído ao Congresso não poupa nem mesmo a sacrossanta imutabilidade da coisa julgada. De fato, não é o primeiro nem será o último projeto de emenda do gênero.

Talvez nomeá-la como PEC da "reação" fosse mais condizente com o seu conteúdo. O espírito do projeto é sobretudo de revanche, de quem teve o ego agredido e vilipendiado. Com raiva, é possível fazer absurdos, até rasgar a Constituição em praça pública.

Spacca
O domínio do Poder Legislativo sobre o Executivo é uma marca de nosso presidencialismo de coalizão (ou subordinação). A teor da Constituição, os legisladores podem derrubar vetos presidenciais, não aprovar medidas provisórias, sustar atos do Executivo, aprovar emendas constitucionais sem passar por sanção do presidente, julgar crime de responsabilidade do presidente da República etc.

A artilharia legislativa é imensa e pesada: tudo mirando a cabeça do Executivo e sem possibilidades de reação popular autônoma (iniciativas quanto a referendos, plebiscitos e revogações de mandato). Seria isso democrático? Difícil dizer. Mas eis que a Constituição trouxe uma regra incômoda para o modelo hegemônico parlamentar instituído: cumpre ao Supremo Tribunal Federal a guarda maior da Constituição (artigo 102, caput, da CF/88).

Não é de hoje que Legislativo e Judiciário se digladiam pela autoridade de dizer o sentido último da Constituição. Uma visão mecanicista do princípio do equilíbrio entre os poderes é incapaz de compreender os problemas políticos reais que envolvem a ação do Estado. Como sugere Edouard Lambert, em seu clássico livro O governo dos juízes e a luta contra a legislação social nos Estados Unidos (1921), mais cedo ou mais tarde a pretensão de um equilíbrio entre os poderes encontra o seu duro destino na afirmação de uma supremacia, sem a qual não haveria unidade de direção governamental.

Nos Estados Unidos, por exemplo, os conflitos políticos fizeram com que a primazia do poder de guarda da Constituição fosse reservada à Suprema Corte (Marbury vs Madison — 1803). Na Inglaterra e França, por sua vez, tal tarefa recaiu, ao menos de início, sobre o Parlamento, órgão político por excelência. Assim, o dogma da separação de poderes de Montesquieu foi-se acomodando aos fatores reais de poder de cada país.

Na PEC do "equilíbrio entre os poderes", o que estamos vendo, portanto, é uma tentativa de alteração completa da estrutura constitucional estabelecida em 1988 e consolidada desde então. Impõe-se, no fundo, uma supremacia total do Legislativo sobre os demais poderes a República. Não se trata apenas de definir um novo guardião da Constituição, mas também de completar a lógica do presidencialismo de coalizão, centralizando todas as decisões políticas essenciais do País na esfera institucional do Legislativo, garantindo o insulamento do processo político em um órgão de representantes eleitos. Sob a aparência da democratização está a oligarquização da esfera política.

Com efeito, a PEC do "equilíbrio entre os poderes" não tende simplesmente a abolir o modelo de separação de poderes definido pelo constituinte de 1987-1988, o que por si só já ofende a cláusula de intangibilidade (pétrea) da Constituição, mas efetivamente o destrói. Aqui reside toda dimensão brutal da inconstitucionalidade desse projeto e o seu absurdo completo.

A PEC do "equilíbrio entre os poderes" somente poderia ser considerada "legítima" em uma situação: caso o Congresso exercesse Poder Constituinte originário. Nessa hipótese, no entanto, não haveria mais Constituição.

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