Opinião

Do Caso Ximenes Lopes vs Brasil ao Caso Guevara Díaz vs. Costa Rica

Autor

  • Yara Singulano

    é advogada do escritório Naves Fleury mestra em Famílias Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

21 de novembro de 2023, 11h21

A Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou, no final de setembro, o arquivamento definitivo do caso Ximenes Lopes vs Brasil. Quase 20 anos depois da sentença condenatória, proferida em 2006, a CIDH reconheceu o cumprimento integral das medidas impostas  ao Estado brasileiro [1].

O caso é paradigmático não apenas porque foi a primeira condenação do país perante o tribunal regional. Trata-se, também, do primeiro processo a respeito de violações de direitos humanos de uma pessoa com deficiência julgado pela CIDH. A este respeito, ficou assentado pelo tribunal que “(…) A vulnerabilidade intrínseca das pessoas com deficiências mentais é agravada pelo alto grau de intimidade que caracteriza os tratamentos das enfermidades psiquiátricas, que torna essas pessoas mais suscetíveis a tratamentos abusivos quando são submetidas a internação” [2].

Damião Ximenes Lopes, pessoa com deficiência, estava internado para tratamento psiquiátrico há três dias em uma casa de repouso privada, porém ligada ao Sistema Único de Saúde, quando veio a óbito. A morte, registrada inicialmente como resultado de causas naturais, posteriormente foi relacionada a maus tratos sofridos pelo paciente na clínica.

No julgamento, o Estado brasileiro foi considerado responsável pela violação dos direitos à vida, à integridade pessoal, às garantias judiciais e à proteção judicial, previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos — tratado internacional incorporado ao ordenamento pátrio pelo Decreto nº 678/1992. Ao condenar o Brasil, a Corte IDH impôs ao país uma série de medidas reparatórias aos familiares de Damião, bem como medidas de não repetição.

Quanto às medidas de não repetição impostas, em abril desse ano o governo brasileiro criou, por meio do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o curso “Direitos Humanos e Saúde Mental — Curso Permanente Damião Ximenes Lopes”, visando à capacitação dos profissionais da área, e ensejando, assim, o encerramento definitivo do caso pela corte [3].

Importante mencionar, ainda, que o envolvimento do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) nas audiências de cumprimento de sentença do caso Ximenes Lopes reverberou na elaboração da Resolução 487/2023, de 15 fevereiro de 2023, que “Institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei nº 10.216/2001, no âmbito do processo penal e da execução das medidas de segurança” [4].

Fica evidente, portanto, que as decisões da Corte, não apenas em virtude do caráter simbólico de uma condenação internacional e a consequente pressão política e social por mudanças, mas também graças às medidas de não repetição fixadas pelo tribunal, têm efetivo potencial de promover mudanças estruturais significativas nos países americanos, ampliando de forma concreta o grau de proteção aos direitos humanos no continente.  

Todavia, no Caso Ximenes Lopes vs Brasil, a CIDH não avançou na proteção dos direitos humanos das pessoas com deficiência de forma específica, sobretudo quanto ao seu direito de não serem discriminadas. É o que nos revela a leitura do voto do juiz brasileiro que atuou no caso (antes da corte alterar seu entendimento para vedar a participação em processos contra seus próprios países), Cançado Trindade, o qual alertava para “a necessidade de ampliação do conteúdo material do jus cogens”:

42. A Corte poderia e deveria ter dedicado mais tempo à fundamentação da supracitada proibição de jus cogens, tal como o vinha fazendo até a emissão de seu transcendental Parecer nº 18, de 2003 (cf. infra). Tratando-se do primeiro caso ante esta Corte sobre portadores de deficiências mentais (parágrafo 123), poderia e deveria ter se aprofundado mais a respeito.
43. Ora, as pessoas portadoras de deficiências (mais de 600 milhões de pessoas, ou seja, aproximadamente 10% da população mundial) integram estes segmentos mais vulneráveis da população, e em relação a elas assume transcendental importância o princípio básico da igualdade e não-discriminação36. A Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Pessoas Portadoras de Deficiências de 1999 atribui capital relevância a este princípio, reiteradamente invocado tanto em seu preâmbulo como em sua parte operativa (artigos I(2)(a) e (b), II, III(1), IV(1), V(2) e VI(1) e (5)). No entanto, na presente Sentença, a Corte refere-se a ele de modo, a meu ver, tão só oblíquo e insatisfatório (par. 105), quando, em sua própria jurisprudência, há elementos preciosos que poderia ter fortalecido sua fundamentação” [5]. (p. 13 do voto).

De fato, é no julgamento do caso Luis Fernando Guevara Díaz vs. Costa Rica, ocorrido em junho de 2022, que a CIDH solidifica a proteção das pessoas com deficiência, notadamente, ao seu direito de não serem discriminadas, uma “virada paradigmática” na jurisprudência da Corte [6].  

O senhor Guevara Díaz é uma pessoa com deficiência mental, que trabalhava no Ministério da Fazenda da Costa Rica exercendo funções semelhantes às de um auxiliar de serviços gerais. Apesar de ser um funcionário elogiado e de ter sido aprovado em primeiro lugar no concurso, o senhor Guevara não conseguiu permanecer no cargo, tendo sido preterido por sua condição de pessoa com deficiência [7].

Impende destacar que, na sentença, a Corte consignou que “los derechos humanos son interdependientes e indivisibles por lo que no es admisible la hipótesis de que los DESCA queden abstraídos del control jurisdiccional de este Tribunal[…]” [8] (p. 20). Em outras palavras, afirmou-se, categoricamente, a normatividade dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, o que significa que eventuais violações podem ser judicializadas perante o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos. Parecem encerradas, assim, maiores discussões sobre a aplicabilidade direta do artigo 26 da CADH e a questão da progressividade dos Desca.

Sobre a questão, vale ressaltar a construção argumentativa do voto concorrente apresentado pelo juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch. Trazendo em retrospectiva diversos casos julgados anteriormente pelo tribunal, Mudrovitsch demonstra como tem sido delineada a jurisprudência a respeito dos Desca na Corte IDH, argumentando favoravelmente à justiciabilidade direta dessa categoria de direitos, a qual, segundo ele, trata-se de “um auténtico estado del arte consolidado en la jurisprudencia de la Corte y parte integrante del lenguaje común del SIDH” [9] (p. 11 do voto concorrente).

Ainda conforme o voto do juiz brasileiro, “La Corte se toma, en lenguaje dworkiniano, los Desca em serio; no los ve solamente como compromisos programáticos, o como meros objetivos políticos que ceden ante escenarios contingentes” (p. 9). E, especificamente sobre a proteção das pessoas com deficiência, aduz:

“45. Existe, por tanto, una conexión indisociable, especialmente en el ámbito de la garantía de los derechos de las personas con discapacidad, entre la protección del derecho a la igualdad y la promoción del derecho al trabajo. No hay isonomía sin beneficios estatales positivos vinculados a la construcción de un entorno laboral inclusivo.
46. Por lo tanto, la protección de una persona con discapacidad objeto de discriminación únicamente sobre la base del artículo 24 de la Convención es insuficiente o, como mínimo, indiferente a todo un conjunto de acciones que deben ser adoptadas para acoger y realizar plenamente el derecho al trabajo y el derecho especial a la inclusión. Por lo tanto, con el debido respeto a la opinión divergente, restringir el análisis del presente caso al ámbito de los derechos civiles me parece um error que puede y debe evitarse.
47. En este punto, es necesario afirmar que la interdependencia entre los derechos de las diferentes generaciones no apoya el argumento de que la justiciabilidad directa de los DESCA es innecesaria. La actuación de la Corte sólo será eficaz y transparente cuando se consideren de forma explícita y completa todos los motivos invocados en cada caso, con la construcción de una línea argumental que abarque todo el plexo de derechos violados.” [10] (p. 10)

A posição a favor da justiciabilidade direta dos Desca não foi unânime — foram 4 votos a 2. A divergência casuística entre juízes da própria Corte evidencia a necessidade de que suas decisões privilegiem os precedentes do tribunal, a serem interpretados como verdadeiros standards protetivos consolidados e que, como tal, não admitem retrocesso — devem, isso sim, ser progressivamente ampliados. Nesse sentido foi o voto do juiz Rodrigo Mudrovitsch:

61. La estabilidad de la jurisprudencia de la Corte – así como el respeto por el vocabulario de la protección de los derechos humanos que ha desencadenado – es, em definitiva, la mayor garantía de que los derechos humanos no constituirán meras pautas de valoración para la adhesión opcional. Si los Estados han ratificado el tratado y se han adherido soberanamente a la jurisdicción contenciosa de la Corte, sus precedentes se convierten en guías relevantes que requieren una carga especial de argumentación cuando y si un día se trata de abandonarlos – lo que no parece ser el caso de DESCA, especialmente después de un período pandémico que ha impuesto más sufrimiento y desigualdad en uno de los continentes más desiguales del planeta.
62. Las generaciones de juristas que nos han precedido en estas magistraturas han dejado, en definitiva, un valioso legado que se ha integrado en el corpus de la Convención y que debe ser honrado, no sólo por su calidad argumental, sino porque, como se ha dicho en otro lugar, “la libertad no encuentra refugio en uma jurisprudencia de dudas.” [11] (p. 12-13)

A consolidação da Corte Interamericana como um tribunal de precedentes (ou Tribunal Constitucional Interamericano, como defende Legale), que buscar manter a integridade de sua jurisprudência, bem como a progressiva e constante ampliação do alcance das normas sobre direitos humanos, é crucial para conferir-lhes proteção efetiva. Passados 35 anos desde a conclusão do Protocolo adicional à CADH sobre os Desca — “Protocolo de San Salvador”, o reconhecimento expresso da justiciabilidade direta dessa categoria é o resultado natural da aplicação da Convenção Americana enquanto documento vivo, que evolui junto com a sociedade.

A respeito, Cesar Lucas, Copetti Santos e Ghisleni aduzem que  “o Direito Antidiscriminatório, a partir do caso Guevara Díaz vs. Costa Rica, tem sido e será encabeçado pelo SIDH como uma categoria central de análise para reconstruir instituições nacionais numa perspectiva anticapacitista e, de um modo geral, antidiscriminatória, inclusive viabilizando a justiciabilidade direta dos Desca” [12] (p. 417).

Tal perspectiva é que conferiu, no Caso Guevara Díaz vs. Costa Rica, um patamar protetivo muito mais significativo para as pessoas com deficiência, embasado em uma interpretação robusta a respeito dos princípios da igualdade e da não discriminação, em comparação à decisão proferida no Caso Ximenes Lopes vs Brasil, anos antes.


[1] https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/outubro/brasil-conclui-cumprimento-de-sentenca-da-corte-idh-sobre-o-caso-damiao-ximenes-lopes . Acesso em: 11/11/2023.

[2] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf. Acesso em: 11/11/2023.

[3] https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/outubro/brasil-conclui-cumprimento-de-sentenca-da-corte-idh-sobre-o-caso-damiao-ximenes-lopes. Acesso em: 11/11/2023.

[4] https://atos.cnj.jus.br/files/original2015232023022863fe60db44835.pdf. Acesso em: 11/11/2023.

[5] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf. Acesso em: 11/11/2023.

[6] “Um corpo intruso”: direito antidiscriminatório e justiciabilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais na Corte Interamericana de Direitos Humanos: uma análise a partir do Caso Guevara Díaz vs. Costa Rica. Artigo de Doglas Cesar Lucas, André Leonardo Copetti Santos e Pâmela Copetti Ghisleni. P. 429. Disponível em: https://periodicos.unicesumar.edu.br/index.php/revjuridica/article/view/11925. Acesso em: 16/11/2023.

[7] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_453_esp.pdf. Acesso em: 11/11/2023.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_453_esp.pdf . Acesso em: 11/11/2023.

[11] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_453_esp.pdf . Acesso em: 11/11/2023.

[12] “Um corpo intruso”: […].

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