Opinião

Mitigação da responsabilidade civil dos sites de marketplace pelo STJ: análise do REsp 2.067.181

Autores

  • Ana Carolina de Morais Lopes

    é diretora presidente da Ágora Consultoria Jurídica membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Digital e Direitos Culturais da Ufersa (Digicult).

  • Lucas Bezerra Vieira

    é advogado especialista em startups e novas tecnologias sócio do escritório QBB Advocacia coordenador da Setorial Nacional de Empreendedorismo e Inovação do Livres membro do Grupo de Estudos Avançados em Processo e Tecnologia da Fundação Arcadas (USP) e membro da comissão de Startups da OAB-SP

12 de novembro de 2023, 6h30

Nos últimos anos, o comércio online tem passado por uma revolução significativa, e os marketplaces desempenharam um papel fundamental nessa transformação. Tais plataformas apresentam o diferencial de conectar vendedores e compradores em um ambiente único, proporcionando uma variedade impressionante de produtos e serviços, muitas vezes em escala global. Essa abordagem inovadora tem se tornado cada vez mais popular e está moldando a maneira como as transações online ocorrem.

A ascensão dos marketplaces tem sido impulsionada por diversos fatores. Primeiramente, eles oferecem conveniência e variedade inigualáveis aos consumidores. Com apenas alguns cliques, é possível explorar uma ampla gama de produtos de diferentes marcas e vendedores, comparar preços e avaliações, tudo em um único local. Isso economiza tempo e esforço, tornando a experiência de compra mais eficiente e agradável.

Para os vendedores, os marketplaces oferecem uma vitrine virtual pronta, permitindo que pequenas empresas e empreendedores acessem um público global sem os custos e desafios tradicionalmente associados à criação de uma loja online independente. Essa democratização do comércio eletrônico tem permitido que uma variedade maior de produtos e serviços encontre seu caminho até os consumidores.

Apesar dos bônus advindos desse modelo de negócio, uma questão turbulenta paira quando ocorre algum vício ou falha nos produtos ou serviços adquiridos por meio de tais provedores. Afinal, sobre quem recai a responsabilidade em tais circunstâncias?

Para compreender o tema, é preciso se debruçar sobre o conceito de provedor e suas modalidades. A  primeira norma a abordar a atuação dos provedores online foi a Lei Federal nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet). Ao tratar desse tema, o Marco Civil definiu duas categorias: o provedor de conexão ou acesso à internet e o provedor de aplicações na internet.

Em que pese a simplicidade da lei, ao longo dos anos, a doutrina e os tribunais pátrios trouxeram à baila espécies de provedores, dentro dos gêneros trazidos pela legislação. A título de exemplo, o autor Marcel Leonardi conceitua cinco espécies, sendo eles o provedor de backbone, o provedor de acesso, o provedor de correio eletrônico, o provedor de hospedagem e provedor de conteúdo [1].

De acordo com Leonardi, os provedores de conteúdo são pessoas naturais ou jurídicas que promovem a disponibilização, na internet, as informações criadas pelos provedores de informação, utilizando-se, para tal, de servidores próprios ou de serviços de um provedor de hospedagem [2]. Nesse ponto, o autor faz uma distinção, que por vezes passa despercebida pela doutrina, na a diferença entre o provedor de conteúdo e o provedor de informação, uma vez que esse último seria apenas o responsável pela criação das informações divulgadas através da Internet, isto é, o verdadeiro autor das informações disponibilizadas pelo provedor de conteúdo [3].

Naturalmente, como toda discussão jurídica relevante, os temas chegaram às cortes superiores. No julgamento do Recurso Especial 1.316.921/RJ, um dos primeiros a detalhar conceitualmente o tema ainda no ano de 2012, a ministra relatora Maria Isabel Gallotti ratificou a construção doutrinária, ao expor que, na Internet, há uma multiplicidade de atores oferecendo diferentes tipos de serviços e utilidades para os usuários. Nas palavras da julgadora:

“Os provedores de serviços de Internet são aqueles que fornecem serviços ligados ao funcionamento dessa rede mundial de computadores, ou por meio dela. Trata-se de gênero do qual são espécies as demais categorias, como: 1) provedores de backbone (espinha dorsal), que detêm estrutura de rede capaz de processar grandes volumes de informação. São os responsáveis pela conectividade da Internet, oferecendo sua infraestrutura a terceiros, que repassam aos usuários finais acesso à rede; 2) provedores de acesso, que adquirem a infraestrutura dos provedores backbone e revendem aos usuários finais, possibilitando a estes conexão com a Internet; 3) provedores de hospedagem, que armazenam dados de terceiros, conferindo-lhes acesso remoto; 4) provedores de informação, que produzem as informações divulgadas na Internet; e 5) provedores de conteúdo, que disponibilizam na rede os dados criados ou desenvolvidos pelos provedores de informação ou pelos próprios usuários da web.”

Nesse ínterim, os provedores de conteúdo seriam uma espécie abrangida pelo gênero provedor de aplicações na internet. Tal diferenciação foi assentada no julgamento do Recurso Especial 1.383.354/SP [4], do ano de 2013, que trouxe à baila também que os sites que realizam a intermediação de venda, como os marketplaces, são entendidos como uma espécie do gênero de provedores de conteúdo, tendo em vista que esses não editam, organizam ou gerenciam as  informações relativas às mercadorias inseridas pelos usuários (provedores de informação).

Nada obsta que provedor de informação e provedor de conteúdo subsistam na mesma pessoa, mas é importante que haja distinção entre eles, tendo em vista as consequências que podem surgir, sobretudo, quando tratamos de responsabilidade no âmbito consumerista.

Com supedâneo no artigo 18 do Marco Civil da Internet, os provedores de acesso à internet são isentos de qualquer responsabilidade advinda de atos de terceiros [5]. Todavia, o mesmo não se aplica aos provedores de aplicação, os quais serão responsabilizados de forma subsidiária em caso de descumprimento de ordem judicial para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, excetuando-se a situação do artigo 21 [6] do Marco Civil da Internet.

Entretanto, quando falamos de uma relação de consumo, na qual há vulnerabilidade do consumidor, houve a adoção, pelo sistema de normas que abrangem a relação de consumo, da chamada responsabilidade civil objetiva, pela qual o fornecedor de produtos e serviços responde independentemente de culpa. Igualmente, o Código de Defesa do Consumidor impõe uma responsabilização solidária aos fornecedores pelo vício serviço ou produto via de regra.

Não é segredo que a posição do Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando se trata da responsabilização dos sites de marketplace por vício ou defeito no produto ou serviço, gira em torno do enquadramento desses sites na figura de fornecedor, razão pela qual o marketplace que divulga ofertas de bens ou serviços, utilizando-se para tal de sua área virtual, é igualmente responsável na cadeia de consumo.

Ocorre que há mitigações para essa regra que vem sendo fortalecidas pela Corte. No  Recurso Especial 1.316.921/RJ, do ano de 2012, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que os provedores de aplicações de busca na Internet não respondem pelo conteúdo do resultado das buscas realizadas por seus usuários, assim como não podem ser obrigados a exercer um controle prévio do conteúdo dos resultados das buscas feitas e não podem ser obrigados a eliminar do seu sistema os resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão. Tal entendimento se coaduna, inclusive, com a tese de repercussão geral 786 do Supremo Tribunal Federal, consoante a qual é incompatível com a Constituição Federal a ideia de direito ao esquecimento.

Tal decisão reverberou na jurisprudência do Tribunal, de modo que no  Recurso Especial 1.444.008/RS, em 2014, ficou assentado que o provedor de buscas de produtos que não realiza qualquer intermediação entre consumidor e vendedor não pode ser responsabilizado por qualquer vício da mercadoria ou inadimplemento contratual.

Acompanhando essa tendência, no mês de agosto de 2023, o STJ, através do julgamento do  Recurso Especial 2.067.181/PR (2023), que teve como origem a fraude da venda de um veículo na plataforma Olx, decidiu que a responsabilidade depende de como a plataforma foi usada no negócio pelo consumidor, pois a forma como a loja virtual é usada influencia diretamente no nexo de causalidade. Afinal, se não houve intermediação direta da venda, não houve contribuição do marketplace para o dano ao consumidor.

Influenciou diretamente na avaliação da relatora Nancy Andrighi (também relatora dos casos anteriormente citados), a existência diversas modalidades de sites de comércio eletrônico, que repercutem diretamente na responsabilidade para com o consumidor, os quais são:

“1) lojas virtuais: o fornecedor utiliza a internet para comercializar seus produtos ou serviços de forma exclusiva ou complementar. Ou seja, o titular do site é o próprio fornecedor; 2) compras coletivas: são anunciadas promoções de fornecedores, com a disponibilização de cupons para aquisição, que são trocados por produtos ou serviços junto ao fornecedor anunciante. Como exemplo, pode-se mencionar: www.peixeurbano.com.br. 3) comparadores de preços: buscam na internet as ofertas que estão sendo realizadas em outros sites de e-commerce e listam-nas ao internauta de forma comparativa. O usuário, por meio de link, é direcionado o estabelecimento virtual do vendedor, por isso o negócio é concretizado fora da plataforma do comparador de preços; 4) classificados: consiste em um portal no qual os usuários podem anunciar produtos e serviços, mediante a realização de um cadastro prévio, que podem ser adquiridos on-line. Os sites classificados não comparam preços, apenas enumeram os anúncios conforme a categoria eleita pelo internauta. Como exemplo de sites classificados, cita-se: 5) intermediários: comercializam bens de terceiros, que se cadastram previamente em sua base de dados. Os sites intermediários interferem diretamente na negociação entre anunciante e adquirente. Tal interferência pode ser parcial, se o negócio tem início na plataforma eletrônica e termina fora dela, ou total, quando realizado integralmente em seu site. São exemplos de sites intermediadores: www.mercadolivre.com.br e. (Teixeira, Tarcísio. Comércio Eletrônico – conforme o marco civil da internet e a regulamentação do e-commerce no Brasil. 1. Ed. Editora Saraiva, 2015, pp. 138-149; SANTOS, Manoel J. Pereira. Responsabilidade civil dos provedores de conteúdo pelas transações comerciais eletrônicas. In: Responsabilidade Civil na Internet e nos demais meios de comunicação. 2. E. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 146-166)” [7].

De acordo com a Corte, uma vez que os sites de marketplace funcionem apenas como divulgadores de publicidade e não como intermediadores da venda ao consumidor, não haverá responsabilização do marketplace por possíveis danos ensejados ao consumidor.

Ao adentrar no mérito de como a plataforma foi usada pelo consumidor e realizar a comparação com o sites de classificados, a ministra replicou o entendimento do Recurso Especial 1.383.354/SP (2013), também de sua relatoria, consoante o qual, devido aos sites classificados auferirem receita por meio de anúncios publicitários, não cobrando comissão pelos negócios celebrados, não se lhes pode impor a responsabilidade de realizar a prévia fiscalização sobre a origem de todos os produtos, por não se tratar de atividade intrínseca ao serviço prestado. Logo, o site de classificados não responde por vícios ou defeitos do produto ou serviço.

Em contrapartida, os sites de intermediação recebem pagamento pelos serviços que oferecem, tipicamente em forma de comissões que são uma porcentagem do valor da venda. Portanto, a depender do caso concreto, o mesmo site de marketplace poderia ser classificado ora como um mero site de classificados, ora como uma plataforma de intermediação genuína.

Portanto, o julgado delimitou ainda mais a responsabilização dos sites de marketplace nas relações de consumo, tendo em vista que o dever de indenizar vai depender não somente da atividade do provedor, mas de como foi a sua participação direta no negócio jurídico, tendo em vista que tais circunstâncias implicarão na quebra ou não do nexo de causalidade, presente no trinômio da responsabilização civil.

 

[1] LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de internet. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005, p. 20-30.

[2] LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de internet. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005, p. 27.

[3] LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de internet. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005, p. 27.

[4]Trecho da ementa do julgado: “[…]2. O serviço de intermediação virtual de venda e compra de produtos caracteriza uma espécie do gênero provedoria de conteúdo, pois não há edição, organização ou qualquer outra forma de gerenciamento das informações relativas às mercadorias inseridas pelos usuários.[…]”.

[5] “Artigo 18. O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros”.

[6] “Artigo 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo”.

[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ação de compensação por danos materiais e morais.Acórdão de no REsp: 2067181 PR 2023/0128219-9, relator: ministra Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 08/08/2023, T3 – Terceira Turma, Data de Publicação: DJe 15/08/2023).

Autores

  • é diretora presidente da Ágora Consultoria Jurídica, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Digital e Direitos Culturais da Ufersa (Digicult).

  • é advogado, sócio do QBB Advocacia, coordenador da Setorial Nacional de Empreendedorismo e Inovação do Livres, ex-presidente da Comissão de Inovação e Startups da OAB/RN, membro do Grupo de Estudos Avançados em Processo e Tecnologia da Fundação Arcadas (USP).

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