Opinião

Incompatibilidade da exigência de relação de bens de sócios controladores e administradores

Autor

  • João Paulo Neves Maia

    é assistente de juiz de direito no Tribunal de Justiça do Paraná graduando em direito pela FACNOPAR pós-graduando em direito processual penal contemporâneo pela FACNOPAR.

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11 de novembro de 2023, 6h00

A Lei n° 11.101/2005 foi editada a fim de prever meios de recuperação de empresas em crise, além do tratamento daquelas inviáveis, em que a falência é o instituto aplicável para fins de maximizar os ativos e o saldar os créditos do maior número possível de credores.

Buscando criar um ambiente de maior negociação entre a empresa devedora e seus credores, além de transferir a estes a deliberação sobre a viabilidade econômica da empresa e, consequentemente, seu futuro no mercado (artigo 35, I, “a”, da Lei n° 11.101/2005), a LREF buscou mecanismos para fornecer aos credores o maior número de informações possíveis a respeito da empresa. O maior exemplo é a quantidade de documentos exigidos para instruir a petição inicial do pedido de recuperação, a luz do artigo 51 da referida lei.

Para Marcelo Barbosa Sacramone, a quantidade e a complexidade dos documentos exigidos juntos com a petição inicial são importantes, não para o julgado avaliar a viabilidade econômica da empresa no momento de deferir o processamento da recuperação judicial, mas sim para propiciar aos credores uma análise mais acurada sobre a viabilidade do devedor e seu plano de recuperação judicial. [1]

Nesta perspectiva, o artigo 51, VI, da LREF exige que, no momento da propositura do pedido de recuperação judicial, seja acostado à inicial a “a relação dos bens particulares dos sócios controladores e dos administradores do devedor”. Tal exigência ocorre independentemente da responsabilidade limitada ou ilimitada dos sócios pelas dívidas sociais da empresa, além de não necessitar de qualquer evidência de abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade e confusão patrimonial.

Em outras palavras, independentemente do tipo societário ou da existência de fraude por parte dos sócios controladores e administradores, a não apresentação de relação de seus bens particulares, de forma detalhada, levará ao indeferimento do pedido de recuperação judicial, deixando a empresa sem a proteção legal conferida pela lei, o que prejudica a economia, trabalhadores, consumidores, além dos próprios credores, que se verão impossibilitados de negociarem melhores condições de recebimento de seus créditos.

Contudo, o referido dispositivo da legislação falimentar é avesso à Constituição, de forma que se pode falar em sua inconstitucionalidade, uma vez que viola frontalmente o direito fundamental à intimidade, expressamente consagrado no artigo 5°, X, da Carta Magna, in verbis: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Ademais, o artigo 8° da Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra o direito à intimidade o reconhecendo como verdadeiro direito humano, decorrente do valor universal da dignidade da pessoa humana, sendo sua violação passível de responsabilização.

Por outro lado, segundo o professor Flávio Martins: “embora não previstos expressamente na Federal, o sigilo bancário e o sigilo fiscal são constitucionalmente tutelados, pois estão implícitos no artigo 5°, X (direito a intimidade)” [2].

Com efeito, exigir a relação detalhada dos bens dos sócios controladores e administradores da empresa que pretende se beneficiar da recuperação judicial, sem qualquer justificativa para utilização no feito ou indícios de fraude ou confusão patrimonial, viola frontalmente o direito fundamental à intimidade, sobretudo porque não há sequer espontaneidade em tal fornecimento, tendo em vista que, em nome do bem da empresa, os sócios acabam fornecendo.

Após a juntada da referida documentação, em muitos processos em trâmite nem sequer é atribuído sigilo aos referidos documentos, o que possibilita a qualquer cidadão, em consulta ao processo de soerguimento, ter acesso a dados privilegiados dos sócios, como de suas contas bancárias, declarações fiscais, entre outros. Ainda, em que pese nos processos em que os magistrados são diligentes e atribuem sigilo a tais documentos ao público em geral, os credores da recuperanda ainda poderão ter acesso ao conteúdo das informações prestadas pelos sócios, o que não se justifica do ponto de vista constitucional e das finalidades do processo de recuperação empresarial.

Além disso, tal disposição também é afronta direta à limitação da responsabilidade empresarial, criada para melhor alocação de riscos e de recursos, na medida em que exige do sócio administrador ou controlador a juntada de documentos que, a princípio, não possuem relação nenhuma com o patrimônio da empresa, de forma a violação à separação patrimonial de ambos os entes.

A respeito disso, leciona o professor Marcelo Barbosa Sacramone:

A exigência de apresentação de bens particulares dos sócios apenas se justifica se estes possuírem responsabilidade ilimitada perante os débitos sociais, como no caso das sociedades em comum, das sociedades em comandita simples em relação aos sócios comanditados, das sociedades em comandita por ações em relação aos sócios diretores da sociedade em nome coletivo.” [3]

Assim, não se verifica a necessidade da exigência da documentação do artigo 51, VI, da Lei n° 11.101/2005, a não ser que seja justificado o fornecimento pelos credores em razão de abuso de personalidade jurídica ou fraude que configura a necessidade de fornecimento.

Por fim, visando a compatibilizar a exigência da legislação falimentar com a Constituição, a melhor escolha seria optar pelo não fornecimento dos documentos supra indicados, ou, ao menos, atribuir sigilo de justiça total, limitando-se a visualização ao juízo, ao Ministério Público, ao administrador judicial e a eventuais credores que justifiquem a necessidade de ter acesso, após decisão judicial fundamentada sobre, em respeito aos valores constitucionais aplicáveis.

[1] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 3. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022. p. 305.

[2] MARTINS, Flávio. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. rev. ampl. São Paulo, SaraivaJur, 2021. p. 851.

[3] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 3. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022. p. 311.

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